19 Fevereiro 2018
Chatham House é um dos institutos de política externa mais importantes do Reino Unido. Mas nesta quarta-feira, dia 14 de fevereiro, o seu foco não estará voltado sobre um presidente ou organização como o Banco Mundial, tampouco ao futuro da União Europeia após o Brexit, mas a um líder religioso: o Papa Francisco. E esta vai ser a terceira vez nas últimas semanas que a Bretanha volta a sua atenção ao papa.
Duas semanas atrás, o instituto mantido pelo Foreign Office, ministério das relações exteriores, conhecido como Wilton Part levou delegados ao Vaticano para se reunirem com o papa e discutir o extremismo religioso violento, enquanto esta semana a encarregada da polícia metropolitana, Cressida Dick, esteve em Roma para conversar com Francisco sobre escravidão moderna.
A reportagem é de Catherine Pepinster [1], publicada por The Guardian, 08-02-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este engajamento confirma o papa como uma das principais figuras dos nossos tempos. Em 13 de março, completar-se-á cinco anos desde que o Cardeal Jorge Bergoglio, de Buenos Aires, elegeu-se líder de 1.3 bilhão de católicos, após a renúncia chocante do Papa Bento XVI.
Desde então, Bergoglio, que na eleição assumiu o nome de Francisco em homenagem a São Francisco de Assis, tornou-se enormemente popular. Nas mídias sociais, até mesmo ateus declaram: “Adoro esse cara!” Líderes de igrejas companheiras, como o líder dos ortodoxos, o patriarca ecumênico Bartolomeu, e o arcebispo de Canterbury, Justin Welby, políticos e outras figuras públicas buscam reunir-se com ele. O evento na Chatham House irá explorar o papel da Igreja Católica na diplomacia, a relação da Igreja com os EUA e a significação do primeiro papa pós-ocidental, que diluiu o eurocentrismo do Vaticano.
No entanto, no próprio Vaticano as coisas não vão tão bem assim. Desde a eleição em 2013, os esforços do papa em se tratando de reformas o tornaram profundamente impopular entre os católicos conservadores, alguns em cargos influentes na Santa Sé. Eles têm dificultado as iniciativas do papa de mudar a forma como se administra o Vaticano, incluído o Banco Vaticano, e de repensar a maneira como a Igreja lida com os casamentos fracassados, aí incluída uma forma de acolher os divorciados recasados para que recebam a Sagrada Comunhão. Hoje, os rumores dos descontentes difundiram-se entre os progressistas que apoiam Francisco, mas que ficaram profundamente indignados com as recentes declarações que ele fez sobre o abuso infantil.
Ficou bastante claro depois de sua eleição que Francisco era muito diferente de Bento XVI, que renunciou em fevereiro de 2013 após uma série de escândalos financeiros no Vaticano. Francisco tinha muito mais energia e entusiasmo para se reunir com as pessoas do que o seu antecessor alemão, e também respondia, como João Paulo II fez antes dele, aos problemas da época. Mas enquanto o polonês João Paulo centrou-se no comunismo e na Guerra Fria, o papa latino-americano, filho de migrantes econômicos, voltou a sua atenção à situação difícil daqueles desarraigados de seus lares: os refugiados, as vítimas do tráfico e da escravidão moderna. Em 2016, num gesto definidor de seu papado, após visitar a ilha grega de Lesbos – ponto de entrada para milhares de pessoas que buscam asilo na Europa –, Francisco trouxe junto em seu avião de volta a Roma três famílias de refugiados muçulmanos sírios.
Ele também está profundamente ciente do impacto das mudanças climáticas sobre as regiões mais pobres do planeta e, em 2015, publicou a sua encíclica verde, ou documento magisterial, chamada Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum, exortando as pessoas a repensar as relações com a criação divina. Católicos conservadores, principalmente dos EUA, afirmaram que o papa dizia que os motoristas de camionetes estavam cometendo um pecado. Esse é o documento do qual Francisco parece mais se orgulhar, dando-o como presente aos visitantes. Alguns, como o príncipe de Gales, parecem profundamente terem apreciado o presente; outros, como o presidente Donald Trump, nem tanto.
Francis Campbell, ex-embaixadora britânica para a Santa Sé e atual vice-chanceler da St Mary’s University, disse: “Existe uma falta de confiança sobre o futuro da sociedade e o Papa Francisco está ocupando um espaço que poucos outros ocupam. Ele fala a um eleitorado que está em busca de uma forma de liderança. O fato de pessoas que não se interessam por religião terem interesse nele nos lembra da carência de líderes globais. Quem mais tem evitado o nacionalismo ou o isolacionismo? Quem mais está nos lembrando dos grandes temas éticos?”
Como líder mundial, Francisco certamente parece ter pouco em comum com Trump. Durante o governo Obama, o presidente americano e diplomatas vaticanos trabalharam nos bastidores para que Cuba e os EUA tivessem uma espécie de reaproximação após um impasse que durou mais de 50 anos. Porém, parece haver uma animosidade entre o papa e Trump. O pontífice manifestou a sua inquietação com a decisão de Trump de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, e advertiu sobre a necessidade de uma solução com dois Estados.
Esta relação certamente importa: os EUA possuem 70 milhões de católicos, um bloco eleitoral potencial para o presidente, mas também uma fonte possível de enormes doações para a Igreja.
Ross Douthat, destacado comentador católico conservador americano, escreveu: “Francisco reverteu a narrativa pública de forma que o catolicismo não é uma força opositora encerrada nas guerras culturais o tempo inteiro. No entanto, o seu estilo personalizado tem diminuído a sua capacidade de trabalhar com eficácia na instituição da Igreja. Há uma crise da autoridade papal”.
Francisco mostrou-se também provocativo no assunto Europa, chamando o continente de uma avó estéril, dando a entender que a atenção dele se volta a outras regiões do mundo, onde a Igreja tem crescido. E quando líderes da União Europeia se reuniram com o papa para comemorar o 60º aniversário do tratado de Roma, ouviram ele advertir sobre as forças do populismo e dos países que tendem ao isolacionismo. Com o projeto europeu devendo muito a pensadores católicos, como Jean Monnet e Robert Schuman, e a ideias teológicas católicas, como as de solidariedade e subsidiariedade, claro está que o Vaticano – que adotou o euro – apoia a União Europeia.
Às vezes a voz papal moral não é ouvida quando se espera. Houve um desânimo quando Francisco não se manifestou sobre a situação difícil do povo Rohingya durante uma visita a Myanmar ano passado. Analistas do Vaticano perceberam uma hesitação porque Francisco evitou causar problemas para a população minoritária católica nesse país. Pois, independentemente do que faz no cenário mundial enquanto líder moral, a principal preocupação do papa continua sendo a Igreja Católica. E problemas graves continuam havendo dentro dela.
Os esforços do papa em reformar a Igreja começaram bem. A máquina vaticana perdeu vigor, havendo uma fusão de departamentos e uma diminuição no número de grão prelados em ofício. A Moneyval, agência do Conselho da Europa que monitora as leis de lavagem de dinheiro, diz que o Banco Vaticano está limpo. Recentemente, um superior de uma ordem religiosa em Roma me contou que os controles sobre depósitos e retiradas de grandes quantias em dinheiro tornaram-se muito mais rígidos.
Mas desde que a pessoa que Francisco pôs como responsável pela reforma financeira, o Cardeal George Pell, voltou para a Austrália, seu país natal, para enfrentar acusações de delitos sexuais, os trabalhos nesse sentido estão parados. Ninguém assumiu o lugar de Pell.
Há rumores nos corredores do Vaticano de que o papa é um comunista, um populista e não exatamente um católico. A oposição a ele foi mais claramente sentida durante os sínodos sobre a família, em 2014 e 2015, na questão dos fiéis divorciados e recasados e na Comunhão. Na sequência dos eventos, quatro cardeais emitiram uma “dubia”, documento com dúvidas teológicas – contestação sem precedentes à autoridade papal.
A teóloga feminista Tina Beattie, professora de estudos católicos na Roehampton University, disse: “O Papa Francisco pôs-se de pé contra as forças venenosas da Igreja. Ele vem tentando ser gentilmente pastoral quanto às pessoas gays e ao divórcio, mas irá precisar ser mais robusto e tão duro quanto os antecessores ao lidar com os críticos”.
Mas é na resposta ao abuso infantil onde as coisas mais se complicam neste pontificado. À primeira vista, os sinais foram bons: Francisco criou a Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores, mas os dois participantes que são vítimas de abusos sexuais, Peter Saunders e Marie Collins, desligaram-se do grupo já, ambos manifestando frustração pela falta de progresso. Apesar das promessas de um tribunal especial a ser criado para lidar com os bispos negligentes em casos de abuso, e de que seria obrigação dos bispos reportarem os casos às autoridades civis, não se viu nenhum avanço.
Em seguida, veio a reação surpreendente do próprio Papa Francisco. Durante uma visita ao Chile em janeiro, ele pediu perdão a vítimas de abuso naquela que havia sido considerada uma viagem para se pedir desculpas pela crise de pedofilia. Mas então Francisco defendeu Juan Barros, religioso nomeado bispo em 2015, dizendo que as pessoas que o acusam de acobertar um padre estavam praticando calúnia. Esta fala não só indignou as vítimas como também as deixou perplexas, pois uma carta de uma das vítimas fora enviada a Francisco por meio do Cardeal Sean O’Malley, presidente da pontifícia comissão e um dos apoiadores de maior confiança do papa.
Collins confirmou que fora ela quem entregou a carta a O’Malley e que estava seriamente preocupada com a falta de progresso durante o papado de Francisco no combate ao abuso infantil. “Eu realmente tive a esperança de que o Papa Francisco seria aquele que traria uma mudança e a criação da Comissão para a Tutela dos Menores parecia sinalizar que havia bons motivos para termos esperanças”, disse a ex-participante da comissão.
Mas, continuou ela, as autoridades vaticanas vêm fazendo um esforço concertado para barrar as reformas e tomar o controle da comissão independente. Agora, ela ficou angustiada por causa dos comentários de Francisco sobre as vítimas no Chile: “É uma situação triste e mostra uma inclinação a acreditar em seus colegas clericais em detrimento dos sobreviventes”.
Muito embora o Papa Francisco tentou, na ocasião, salvar a situação despachando para o Chile Dom Charles Scicluna, um dos investigadores mais respeitados da Igreja em casos de abuso sexual, esta saga latino-americana se transformou num caos, ameaçando a credibilidade que Francisco buscou restaurar ao papado. Na quinta-feira, o Vaticano tentou minimizar a situação, confirmando que Francisco se encontra regularmente com vítimas de abuso.
Quando estava no segundo ano deste pontificado, Francisco sugeriu: “Tenho a sensação que meu pontificado será breve. Quatro ou cinco anos”. Hoje, no entanto, ele parece não ter a intenção de renunciar. Há muito trabalho a ser feito.
Mas, em Roma, as conversas nas trattorias versam sobre a sucessão, sobre quem é “papabile”. Provavelmente os cardeais estejam olhando para as partes do mundo onde cresce o catolicismo. Alguns sugerem que a Igreja irá se voltar na outra direção quando da escolha do próximo líder, e um cardeal conservador poderá ser eleito, como Robert Sarah, da Guiné, ou talvez Malcolm Ranjith, de Colombo. A Ásia é certamente uma região do mundo sobre a qual o próprio Francisco tem centrado a sua atenção, especialmente para reparar as relações com a China, onde o governo nomeia os seus próprios bispos “patrióticos” e onde aqueles escolhidos pelo papa dão continuidade a uma igreja clandestina.
Para o mundo e para os católicos em geral, este papa certamente teve um impacto. Ele sobretudo tentou mudar o tom da Igreja, enfatizando a misericórdia e a compaixão, ao invés de regras rígidas. Mas o seu jeito de pensar precisa de tempo para surtir efeito, para se tornar a norma. Portanto, após cinco anos, este papa não pode ainda dizer: missão cumprida.
Nota:
[1] Catherine Pepinster é a autora de “The Keys and the Kingdom: the British and the Papacy from John Paul II to Francis” (Bloomsbury/T&T Clark).
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Papa Francisco maravilhou o mundo, mas, após cinco anos, rema em águas agitadas e turvas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU