22 Setembro 2017
“Quando o Sumo Pontífice permite que o debate floresça e que a divisão pública aumente, não é bom para as instituições fingir que nada disso está acontecendo – como se o católico médio, de algum modo, não percebesse que as lideranças da Igreja estão cada vez mais opostas umas às outras (o veneno do debate online, em si mesmo, é, em parte, uma reação a essa pretensão pública de tranquilidade).”
A opinião é do jornalista estadunidense Ross Douthat, em artigo publicado por The New York Times, 20-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Na Igreja Católica do Papa Francisco, é perigoso ser muito conservador. O professor Josef Seifert, ilustre filósofo católico da Áustria, descobriu isso recentemente, quando foi demitido do seu cargo na Universidade de Granada, na Espanha, pelo arcebispo local.
O pecado de Seifert foi ter levantado questões sobre a Amoris laetitia, a controversa exortação papal sobre o casamento, cujas declarações ambíguas sobre o divórcio e a segunda união foram descritas pelo filósofo como uma potencial “bomba atômica teológica” para o ensino moral católico. Essa dura crítica a um papa reinante “prejudica a comunhão da Igreja”, escreveu o arcebispo de Granada, enquanto retirava o professor do seu posto acadêmico.
Enquanto isso, na Igreja Católica do Papa Francisco, também é perigoso ser muito liberal. O padre James Martin, famoso autor jesuíta estadunidense, descobriu isso no fim de semana passado, quando foi desconvidado para uma palestra no Theological College, da Catholic University of America, e teve outra palestra em Londres reagendada, depois de uma campanha na internet promovida por padres e leigos tradicionalistas.
O Pe. Martin é o autor de um novo livro intitulado Building a Bridge [Construindo uma ponte], que exorta ao diálogo e à reconciliação entre a Igreja Católica e os homossexuais, e os seus críticos acusam-no de efetivamente negar o ensino da Igreja sobre sexualidade (uma acusação que ele nega). As instituições não endossaram a acusação; elas simplesmente decidiram se esquivar da controvérsia.
Depois dos cancelamentos de Martin, o professor Massimo Faggioli, da Villanova University, um frequente comentarista de assuntos católicos, escreveu um artigo lamentando a ascensão de “cibermilícias católicas” conservadoras. Esses inquisidores autodesignados, lamentou Faggioli, estão resistindo às reformas do Papa Francisco impondo “um novo tipo de censura”, usando métodos que ameaçam subverter todas as linhas normais de autoridade dentro da Igreja.
A súbita preocupação do professor Faggioli com as campanhas online foi interessante para mim, porque ela veio pouco tempo depois que o próprio professor estava ocupado organizando uma campanha online contra mim mesmo – que pedia que o meu empregador censurasse os meus escritos sobre o Papa Francisco e o catolicismo, por causa da minha falta de credenciais teológicas e das minhas opiniões supostamente incorretas sobre a doutrina da fé.
Mas, é claro, o professor Faggioli se sentiu justificado ao organizar a sua milícia particular, porque, aparentemente, ele sentiu que, anteriormente, eu tinha tentado fazer com que ele fosse demitido, durante uma áspera troca de tuítes (é uma inquisição de cabo a rabo, temo eu), quando eu sugeri que as suas opiniões sobre a potencial evolução do catolicismo podem ser utilmente reconhecidas como heresia.
Ameaçar o emprego do professor nunca foi a minha intenção, e, como o seu trabalho acadêmico atual parece impressionante, e o meu próprio trabalho tem estado felizmente seguro, nós dois parecemos ter saído ilesos do auto-da-fé. E, no interesse de assegurar um raro terreno comum, eu acho que a sua análise do que está acontecendo com a vida católica sob Francisco – o surgimento de inquisições informais, a paralisia das instituições católicas, o fracasso das estruturas eclesiásticas normais – contém alguma verdade importante.
Ele está errado ao sugerir que esse é apenas um fenômeno católico de direita e que é apenas um subproduto infeliz e incitado pela online da tentativa de liberalização e descentralização por parte do Papa Francisco.
De fato, as inquisições conflitantes, liberal e conservadora, são o resultado nada inevitável das decisões do papa de transformar as tensões da Igreja em uma guerra civil novamente e depois lutar do lado liberal, usando declarações ambíguas e intervenções não oficiais, em vez dos poderes explícitos do seu ofício. De fato, quando o professor Faggioli se queixa de uma “mídia social católica que ultrapassou completamente” a forma como a “Igreja Católica funcionou durante séculos”, ele poderia estar descrevendo de um modo igualmente fácil o Papa Francisco, cujo estilo personalizado tornou loucamente inseguras as linhas de autoridade dentro da Igreja.
Sobre questões grandes e pequenas, Francisco descentralizou a autoridade de modo informal, mantendo todos os poderes formais do seu ofício e incentivando o envolvimento teológico sem modificar as fronteiras oficiais daquilo que importa como ensino católico e daquilo que não importa. Isso efetivamente criou duas versões diferentes desse ensino – o dos livros versus aquele que o papa oferece nas suas piscadelas e acenos – às quais católicos diferentes podem apelar.
Nesse ambiente, é melhor que qualquer pessoa que deseje saber o que o papa realmente pensa, ignore os escritórios oficiais vaticanos e, em vez disso, ouça a coterie de conselheiros papais que vão ao Twitter para atirar às escondidas nos seus críticos.
Mas mesmo esse tipo de Kremlinologia não esclarece completamente as intenções do papa, razão pela qual que os aliados liberalizadores de Francisco estão frequentemente impacientes com ele e, às vezes, vão muito à frente das suas intenções e veem-se contidos.
Como resultado, a única certeza católica agora é a incerteza. Com Francisco, o ensino da Igreja sobre a comunhão aos divorciados em segunda união varia de país para país e de diocese para diocese, e até mesmo os admiradores papais não parecem concordar em relação às implicações da posição vaticana oficial. O ensino da Igreja sobre o suicídio varia agora em diversas partes do Canadá, e, como o Vaticano parece aceitar essa variação, uma ordem religiosa belga empurrou as coisas ainda mais para a frente, insistindo que pretende efetivamente realizar suicídios assistidos nos seus hospitais (o que Roma parece considerar como uma ponte muito longa – mas os belgas não estão se submetendo silenciosamente).
Tanto o professor Seifert quanto o Pe. Martin são casos mais personalizados em questão. Em certo sentido, ao criticar a mudança tácita do Papa Francisco sobre a comunhão aos divorciados em segunda união, o professor austríaco estava simplesmente defendendo o ensino oficial dos papas e dos Concílios da Igreja passados – nenhum dos quais foi revogado. Assim, pode-se dizer (junto com seus defensores conservadores) que Seifert foi efetivamente demitido de uma universidade católica por ter muita ortodoxia católica.
Mas, ao mesmo tempo (assim como esses mesmos conservadores podem ter argumentado sob Bento XVI e João Paulo II), o papa supostamente tem a última palavra sobre o que a ortodoxia implica, e criticar diretamente um pontífice reinante é o tipo de coisa que deveria pôr em risco um cargo católico de alto perfil. Talvez, Seifert deveria ter esperado essa inquisição.
O mesmo vale para o popular e prolífico Pe. Martin, cujo livro sobre homossexualidade e Igreja foi elogiado por alguns cardeais e criticado por outros, em cada caso por razões compreensíveis – já que ele oferece uma crítica frequentemente sensata à falta de cordialidade e à indiferença católicas em relação aos homossexuais, unida a uma certa ambiguidade sobre o ensino da Igreja sobre castidade e casamento.
Enquanto isso, sobre outras questões, menos candentes, mas também cruciais para o catolicismo – a natureza da comunhão, a relação entre as naturezas divina e humana de Jesus, a possibilidade de que Deus realmente possa querer um fiel cometa um pecado grave se isso aliviar o sofrimento –, Martin tem afirmado recentemente uma série de pontos de vista que parecem estar em contradição com o ensino tradicional. Como resultado, mesmo antes dos cancelamentos, houve guerrilhas frequentes sobre a obra de Martin no Twitter, em que padres da ordem dominicana procuraram corrigir as incursões do rival jesuíta.
E, como no caso de Seifert, você pode entender ambos os lados. Os críticos de Martin estão corretos que ele parece estar apostando em posições que Roma considerou como heterodoxas há não muito tempo. Ao mesmo tempo, Martin tem razão ao defender que, em uma Igreja hierárquica, são os seus superiores, e não os críticos online ou outras ordens, que decidem se ele é um padre bem posicionado – e que o seu superior supremo, o papa, está aparentemente aberto a experiências, com limites que, praticamente, não são claros.
Essa é uma situação calculada para fazer com que todos se sintam autojustificados e se queixem da retórica tóxica, enquanto eles mesmos lançam insultos.
Ela também situa as instituições católicas – escolas, paróquias, universidades e lojas diocesanas – em uma posição muito difícil. A tentação, já evidente, será evitar o conflito, autosegregar-se teologicamente (palestrantes liberais para campi e paróquias liberais, e vice-versa para os conservadores) e evitar até mesmo o reconhecimento do conflito.
Mas essa abordagem é tola. Quando o Sumo Pontífice permite que o debate floresça e que a divisão pública aumente, não é bom para as instituições fingir que nada disso está acontecendo – como se o católico médio, de algum modo, não percebesse que as lideranças da Igreja estão cada vez mais opostas umas às outras (o veneno do debate online, em si mesmo, é, em parte, uma reação a essa pretensão pública de tranquilidade).
Em vez disso, o único caminho sério é convidar à discussão séria e encorajar o debate respeitoso. Deixe que os dominicanos e os jesuítas levem seus debates online para os auditórios universitários e para os salões paroquiais; deixe que os estudantes e os leigos católicos entendam o que está em jogo. Convide-se o Pe. Martin para falar sobre temas controversos; depois, convidem-se seus críticos para responder a ele. Deixe que os bispos que se confrontam atrás de portas fechadas nos sínodos sobre a família dirijam-se uns aos outros em público e pessoalmente. Eu mesmo estou a apenas uma viagem de trem de distância do professor Faggioli, de Villanova, e com alegria permitiria que ele me educasse sobre as minhas deficiências teológicas em uma plataforma da sua escolha.
É difícil saber o que virá da crise católica desta era. Será que a Igreja realmente pode se tornar anglicana, com teologias cristãs fortemente diferentes que coexistem permanentemente sob um guarda-chuva latitudinal? Será que o período dos duelos das inquisições e das milícias digitais é um prelúdio para a vasta vitória liberal que muitos católicos sentem que João Paulo II e Bento XVI impediram cruelmente? Será que o pêndulo voltará para trás, como temem os nervosos aliados de Francisco, deixando seu legado ser enterrado por jovens tradicionalistas e por um pontífice reacionário ao estilo do Young Pope da HBO?
A fé dá a alguns observadores certas respostas, mas a razão natural aconselha a dúvida. Independentemente disso, demissões, cancelamentos e censura autoprotetora não tornarão o conflito menos doloroso, no fim. Não há nenhum caminho à frente, exceto a controvérsia. Postergue as inquisições; mas agende as discussões.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A Inquisição vem aí - Instituto Humanitas Unisinos - IHU