Descanso, um espaço aberto ao discernimento

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19 Julho 2024

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Marcos 6,30-34.

Eis o texto.

“Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco” (Mc 6,31)

A vida, toda vida, tem sua dose de cansaço. Também Jesus experimentou isso: “Fatigado da caminhada, sentou-se junto ao poço” (Jo 4,6).

De que estava habitado o cansaço de Jesus?

Marcos nos conta que eram muitos que chegavam e saíam, e não lhes sobrava tempo nem para comer. É um cansaço perpassado de rostos, que tem a ver com a vida que se gasta e se põe a fadigar por outros: “Levavam a eles todos os enfermos e endemoniados” (Mc 1,32).

De fato, de acordo com o evangelho deste domingo, as jornadas de Jesus se revelavam esgotadoras: muitos enfermos eram levados até Ele para que os tocasse e os curasse; muitas pessoas se aproximavam para escutá-lo; era muito exigido em todos os lugares por onde passava; os conflitos desgastantes com os fariseus...

Jesus sentia os cansaços e as pressões, mas, ao mesmo tempo, sabia fazer “paradas” para recuperar as forças, para retomar o contato com o sentido de sua vida e de sua missão, para ser Ele mesmo.

Ele possuía uma lucidez que proporcionava uma visão profunda das coisas, no clima de uma paz sempre buscada. Para Jesus, o descanso, entre outras coisas, era um momento de restauração e reabilitação pessoal que lhe permitia mergulhar de novo na sua missão com maior criatividade.

Talvez, por isto, nunca perdia o norte, sempre estava preparado, pronto, disposto a investir o melhor de si e a responder na direção adequada.

De que estão feitos nossos cansaços?

Todo esforço precisa seu descanso, toda atividade pede uma parada.

Não há tensão que não exija um relaxamento, nem atividade continuada que não peça um repouso reparador. Os cansaços acabam nos revelando que, em nossa vida ativa, estamos amputando certas dimensões do humano. Assim, o descanso, em seu sentido nobre, impede que nos convertamos em meros trabalhadores estressados; ele nos arranca de nossa existência maquinal.

É sintomático o fato de recorrermos frequentemente ao uso da linguagem da máquina para expressar o que buscamos com o descanso: “desconectar”, “tirar da tomada”, “recarregar a bateria”, “recuperar a energia”, “reabastecer o motor” ... Sutilmente, expressamos deste modo como nos percebemos em nossa realidade cotidiana e até que ponto estamos suportando níveis intoleráveis de saturação, de ativismo, de estresse...

Descansar tornou-se uma necessidade do planeta. A terra, nós e todos os seres vivos precisamos da pausa que revigora, do repouso que nos faz criativos.

Prazer, vitalidade e criatividade dependem dessas pausas que estamos negligenciando. Devemos buscar, em cada circunstância, fazer do descanso uma ocasião de subversão de valores, de questionamento de nossa prática cotidiana, de enraizamento de nossa missão... enfim, de vivê-lo à maneira de Jesus Cristo.

O descanso nos conserva humanos; ele nos ajuda a recuperar um ritmo de vida mais humanizante, ou seja, recuperar a capacidade de estabelecer relações gratuitas com outras pessoas, com a natureza e seus ritmos, com o Criador... Não basta simplesmente poder folgar; ter acesso ao verdadeiro descanso é recuperar o sentido da gratuidade das nossas atividades e que melhoram a vida e a convivência.

O descanso pode ser um bom tempo para retomar a vida com mais liberdade e para realizar atividades mais humanizantes. Nesse sentido, o objetivo principal do descanso é recuperar nosso lugar e nossa condição de homens e mulheres, afastando de nós o endeusamento e as fantasias de onipotência.

No descanso, voltamos a pisar a terra (húmushumildade) para recuperar uma relação desinteressada e sadia com os outros, com o mundo e com Deus.

A vida tem necessidade de “consideração”, “avaliação”, “fundamentação” ... Do contrário, ela perde densidade e, sobretudo, desperdiça sua própria beleza.

Por mais descansos que tenhamos, há cansaços que só se aliviam através do encontro consigo mesmo, e há descansos que só se conseguem quando nos reconciliamos com o que somos e vivemos.

Precisamos de “paradas”, mas paradas com argumento interior. Elas devem ser algo assim como um retorno contemplativo, uma “reflexão” em direção à raiz de nossas motivações.

O descanso permite sintonias profundas conosco mesmo e com a profundidade das circunstâncias habituais que fazem parte do nosso cenário cotidiano.

Ele desperta uma predisposição pessoal que pode ser decisiva para redescobrir o valor e o sentido do cotidiano no qual voltamos a mergulhar. O descanso inspira, nos faz criativos, porque toca as profundezas de nós mesmos e das atividades rotineiras.

Nesse sentido, o descanso se assemelha muito a uma certa ressurreição; não é um simples reabastecimento, mas uma regeneração na qual se recompõem a interioridade, o espírito criativo, a disposição de coração...

“Vinde sozinhos para um lugar deserto...” O descanso não é uma “desconexão”, senão uma “conexão” com aquilo que é o impulso fundamental de nossa vida cotidiana. O descanso nos possibilita afastar do rotineiro e nos faz caminhar ao deserto interior, onde podemos dirigir um olhar contemplativo sobre a vida cotidiana. Nele nos desprendemos do presente e de sua urgência tirana.

No deserto nos personalizamos, resgatamos nossa identidade; nele temos a chance de ver a realidade sem instrumentalizá-la, gratuitamente. E só no gratuito é que descansamos.

Deste modo, o descanso também pode se constituir como um “tempo” privilegiado para uma intimidade com o Senhor, um espaço em nossa existência para estar gratuitamente com Ele, para saborear sua presença em nossa vida, para alegrar-nos com sua ação providente e cuidadosa.

Tempo sagrado” para dirigir nosso olhar para o Pai, para compreender, a partir d’Ele, o sentido das coisas e da história. “Tempo” para Deus, para mergulharmos no mistério que pulsa no profundo da vida e render-nos diante d’Ele, para descalçarmos diante do sagrado e contemplar.

A mística inaciana tem muito a nos revelar sobre esta atividade tão divina e tão humana: o descanso.

“Viver descansadamente” (S. Inácio) é encontrar um descanso, uma paz interior, uma quietude, uma consolação, uma satisfação na vida e nas atividades, e que tem sua raiz na comunhão com Deus que trabalha e descansa. A vida do “contemplativo na ação” é uma vida ativa vivida “descansadamente”, ou seja, na presença de Deus, com o coração centrado n’Ele, fazendo somente Sua Vontade...

Viver uma vida ativa descansadamente é viver com os pés na terra e contemplando as “coisas do alto”.

Como homem pragmático, Inácio de Loyola mandou construir casas de descanso para os jesuítas, pois sabia, por experiência, que uma atividade forte pede relaxamento. Ele compreendeu que os ambientes tensos e atividades estressantes não são desejáveis nem para a vida espiritual, nem para o trabalho, e recomenda “recreação” e “relaxamento” na atividade, seja corporal ou espiritual.

Para meditar na oração:

Também na vida espiritual, necessitamos de pausa para um encontro profundo conosco e com Deus, e assim poder retomar a vida com mais dinamismo. A pausa é que dá sentido e inspiração à caminhada.

- Na perspectiva do discernimento, devemos, depois de cada descanso, nos perguntar:
“o que ele nos trouxe de novidade? Ajudou a nos dignificar como pessoas? Melhorou a relação com os outros? Facilitou ao outro sentir-se bem? Que possibilidades novas nos apresentou?”

“Descansar é uma arte. Viver descansadamente, uma arte ainda mais delicada” (J.A. Guerreiro)

- Seu descanso: tempo de humanização ou mais um estresse na sua agenda?

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