Por: Cesar Sanson | 05 Março 2012
A análise da conjuntura da semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, com sede em Curitiba-PR, parceiro estratégico do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
Sumário
A esfera religiosa invade a esfera política
O mix político-religioso
Declínio da influência católica
Emergência da religião também nos EUA
Relativizando o peso eleitoral da religião
Governo cede a teses conservadoras
Conjuntura da Semana em frases
Eis a análise.
A esfera religiosa invade a esfera política
Pode parecer estranho, mas os diversos episódios recentes – e menos recentes – da conjuntura política envolvendo a religião apontam para a importância que esta assume no cenário político nacional. Vivemos em uma sociedade cada vez mais laica, secular, e que, sob certo ponto de vista, tem ojeriza a tudo o que remete a crença, ao transcendente.
A autonomia do Estado em relação à religião é uma conquista da modernidade, da democracia. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma crescente ingerência do religioso, de valores religiosos, catapultados por Igrejas e políticos confessionais, no mundo da política. Uma linguagem com fundo religioso sobe ao palco de um Estado que se quer laico. Mais, tudo indica que o Governo Dilma, especificamente, esteja sendo refém de teses conservadoras capitaneadas por setores das Igrejas pentecostais, neopentecostais e católica.
Há uma sensação de que o Governo esteja dando demasiada atenção a essas questões, concedendo a elas uma importância maior do que deveriam merecer. Uma hipótese que se pode aventar, diz respeito à chamada governabilidade.
Menos de dois anos após a “guerra santa” travada nas eleições presidenciais de 2010, a religião invade novamente com força a esfera política. A senha dessa nova intromissão da religião no mundo da política foi dada pela nomeação do senador Marcello Crivella (PRB-RJ) para o ministério da Pesca.
O senador Marcelo Crivella é bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus, sobrinho do bispo Edir Macedo, fundador da Igreja Universal e do missionário R. R. Soares, fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus. Em seus dois mandatos no Senado, trabalhou por projetos ligados a valores da família e na campanha eleitoral de 2010, foi um dos articuladores do movimento que forçou Dilma Rousseff a se posicionar oficialmente contra temas polêmicos para os religiosos, como o aborto.
Em seu discurso de posse, Crivella fez referência ao bispo Edir Macedo, invocou proteção divina e reivindicou um milagre bíblico, como o da multiplicação dos peixes, para garantir comida na mesa de todos os brasileiros. “Muitas vezes, Deus não escolhe os mais qualificados, mas sempre qualifica os escolhidos”, disse em seu discurso.
O senador é do minúsculo PRB, partido que já teve seus momentos de glória com o vice-presidente José Alencar, mas que atualmente não tem mais do que 10 deputados no Congresso. Na mesma semana em que partidos com mais peso político brigaram por mais espaço no governo – o PMDB ameaçando uma rebelião, o PDT travando um cabo de guerra com o governo para reassumir o ministério do Trabalho e o PR com uma bancada de 40 deputados brigando para ter de volta o ministério dos Transportes – o insignificante PRB ganha um ministério.
O mix político-religioso
Como explicar que um partido pequeno que não precisa ser agraciado com um ministério para as amarras da coalizão governamental seja tratado com tanta deferência? Ainda mais, como justificar a indicação para um ministério para o qual o próprio indicado admite que não entende nada da área? E isso num contexto em que a presidente Dilma insiste numa gestão técnica?
Quando soube da indicação, Crivella afirmou: "Vou lhes dizer, com humildade. Eu nem sei colocar uma minhoca no anzol. Na verdade, estou indo para aprender. Mas com espírito público". O deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) ao tomar conhecimento da fala do novo ministro, postou em seu twitter: “Crivella, na Pesca: 'ñ sei colocar minhoca em anzol'. Mas quem o indicou sabe o q quer pescar nas águas turvas da política.” Por sua vez, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) comentou: "O governo resolveu pôr na Pesca um pescador de almas, que ainda vai andar sobre as águas".
As ironias de Chico Alencar e Cristovam Buarque revelam as verdadeiras intenções do governo com a nomeação de Crivella.
A indicação de Crivella para o ministério tem como pano de fundo a disputa que envolve o PT e o PSDB em São Paulo. A entrada de José Serra (PSDB) reequilibrou a disputa em São Paulo e colocou frente ao PT o seu mais feroz oponente. Serra tem travado duras disputas com o PT e na última eleição presidencial contra Dilma Rousseff, adotou a estratégia da desconstrução de sua adversária reavivando o tema do aborto.
O governo e a cúpula do PT acreditam que novamente temas como legalização do aborto, casamento gay e kit anti-homofobia serão levados à campanha da sucessão de Gilberto Kassab (PSD). O candidato Fernando Haddad estava à frente do ministério da Educação quando se deu a polêmica do kit anti-homofobia.
O kit anti-homofobia, na oportunidade, foi elaborado por entidades de defesa dos direitos humanos e por grupos LGBT – lésbicas, gays, bissexuais e travestis –, a partir do diagnóstico de que faltava material adequado e preparo dos professores para tratar do tema nas escolas públicas.
O material – formado por vídeos, guia de orientação para o professor e cartilhas –, que recebeu o aval Unesco e do Conselho Federal de Psicologia, foi suspenso às vésperas de ser distribuído pelo ministério da Educação. A decisão partiu do governo após forte pressão das bancadas católicas e evangélicas. À época até “marchas para Jesus” foram organizadas pelas igrejas evangélicas neopentecostais contra o kit anti-homofobia.
A presidenta acuada pela ira de grupos religiosos recuou. As entidades que defendem os direitos dos homossexuais, por sua vez, reagiram com "perplexidade", "consternação" e "indignação" à decisão do governo de suspender a distribuição do material nas escolas. Em nota, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT afirmou que “a decisão macula a imagem internacional do país sobre direitos humanos e fere o Estado laico”. O texto também critica a ascendência da bancada religiosa sobre o governo. "Um princípio básico do Estado republicano está sendo ameaçado pela chantagem praticada hoje contra o governo federal pela bancada religiosa fundamentalista e seus apoiadores no Congresso Nacional".
O recuo do governo na época surpreendeu, sobretudo porque se deu dias após a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF reconhecer por unanimidade que uniões homoafetivas passam a ser tratadas como um tipo de família.
O fato é que desde então o ministro Fernando Haddad ficou marcado por determinados grupos religiosos como defensor do homossexualismo. Fernando Haddad criticou o uso da crença religiosa dos eleitores para se beneficiar politicamente. Sobre o kit anti-homofobia disse que “é muito barulho por nada", porém, tratou de destacar que, pessoalmente, é contra o aborto.
A expectativa, portanto, é que a nomeação de Crivella sirva como uma vacina para blindar o candidato do PT Fernando Haddad, na esperada "guerra santa" da campanha eleitoral. Gilberto Carvalho, ministro da Secretaria-Geral da Presidência, reconheceu que a escolha do senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) para assumir o Ministério da Pesca teve o objetivo de ampliar o diálogo com o setor evangélico.
Na esteira do debate moral, a nomeação de Crivella serve também como um contrapeso à nomeação de Eleonora Menicucci para a Secretaria de Política para as Mulheres, que causou ira no mundo religioso. A nova ministra sempre foi militante das causas feministas, entre elas, o aborto. Em sua posse, Eleonora Menicucci afirmou: “Não se pode aceitar que, ainda hoje, quando temos uma mulher no mais alto cargo do Executivo brasileiro, mulheres sejam vistas como meros objetos sexuais, que morram durante a gravidez, que tenham direitos reprodutivos e sexuais desrespeitados”.
A nomeação da ministra despertou furor no mundo religioso. As reações virulentas partiram desde setores da bancada evangélica que acusaram a ministra de abortista e até da CNBB, que de forma mais discreta mandou um recado para a presidente Dilma. O presidente da entidade, dom Raymundo Damasceno Assis, afirmou que o veto ao aborto “é uma questão inegociável”.
O desconforto político instalou-se no Palácio do Planalto e o ministro Gilberto Carvalho, levou até o Congresso um recado da presidente Dilma ao dizer que a presidenta não tem absolutamente nenhuma intenção de tomar qualquer iniciativa para alterar a legislação sobre o aborto.
A própria presidente Dilma Rousseff, ainda escaldada pelo fantasma da eleição presidencial de 2010, aproveitou a cerimônia de posse da nova ministra para enquadrá-la publicamente e deixar claro que as convicções pessoais devem se subordinar, agora, às políticas de governo. "Tenho certeza que meu governo ganha hoje uma lutadora incansável e inquebrantável pelos direitos das mulheres. Uma feminista que respeitará seus ideais, mas que vai atuar segundo as diretrizes do governo em todos os temas sobre os quais terá atribuição", discursou Dilma. Ou seja, diante da pressão da bancada evangélica no Congresso e da CNBB, a Dilma puxou o freio de mão da sua subordinada.
Para além das razões religiosas, há ainda outra razão que está por detrás da nomeação de Crivella, essa de ordem pragmática eleitoral. O novo ministro é do mesmo partido de Celso Russomanno, o pré-candidato do PRB à prefeitura de São Paulo e bem posicionado nas pesquisas de intenção de voto. A nomeação de Crivella não é o suficiente para tirar do páreo o ex-deputado Russomanno, mas pode garantir para Haddad o apoio do partido num eventual segundo turno contra Serra. "Fica mais difícil fazer oposição ao governo federal [na campanha] agora que estamos no governo", disse Marcos Pereira, presidente do PRB e patrono da candidatura de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo.
A nomeação de Crivella “rifou” ainda o deputado Luiz Sérgio (PT-RJ) que ocupava o ministério da Pesca e causou indignação no PT-RJ que ficou sabendo da notícia pela internet: "Me surpreendeu isso, não esperava. Viram a notícia na internet, na sede do partido e me avisaram, podiam ter informado antes pelo menos”, disse Jorge Florêncio, presidente do PT-RJ.
Na estratégia montada por Lula – responsável pela indicação de Haddad e agora pela nomeação de Crivella – a senadora Marta Suplicy que sempre postulou a indicação do partido à disputa para a prefeitura de São Paulo também foi isolada. Marta ficou a ver navios e agora ironiza a situação como destaca o jornalista Ricardo Kotscho: “Quem está assistindo ao teatro político paulistano de camarote é a senadora Marta Suplicy, que queria voltar a disputar a prefeitura, perdeu o lugar para Fernando Haddad, indicado por Lula e Dilma, e foi a primeira a se manifestar contra um acordo com Kassab, que a derrotou nas últimas eleições”.
A indicação de Haddad, a aproximação com Kassab e, agora, a nomeação de Crivella revelam que cada vez mais quem decide as coisas no PT é Lula. Nas prévias, proposta inovadora surgida no PT, o debate e a democracia interna perderam força no partido. “O PT tem, hoje, uma só ideologia, uma só direção e uma só concepção política: é o que Lula mandar. O ex-presidente é o senhor do voto, da força de arrecadação, da linguagem e do discurso das campanhas e das vitórias. Portanto, ele manda e o PT obedece”, afirma a jornalista Rosângela Bittar.
Acerca da figura de Lula e sua proeminência cada vez maior no PT recomenda-se a entrevista do psicanalista Tales Ab’Sáber a partir do lançamento do seu livro Lulismo, Carisma Pop e Cultura Anticrítica [editora Hedra, 2012].
Declínio da influência católica
A indicação do senador evangélico Marcelo Crivella (PRB) para o Ministério da Pesca e Aquicultura confirma, entre outras coisas, o enfraquecimento da influência dos setores progressistas da Igreja Católica no governo.
A análise é do jornalista Roldão Arruda. Segundo ele, “uma das intenções do presidente Luiz Lula Inácio da Silva (PT), ao criar a pasta, em 2003, era acolher na sua equipe o pensamento das pastorais sociais da Igreja, que sempre estiveram na base do seu partido. Uma dessas pastorais, a dos pescadores, foi um dos fatores que inspiraram a criação do ministério. A pastoral existe desde 1970, tendo se fortalecido em Pernambuco, Paraíba, São Paulo e Santa Catarina. Seus agentes defendem os direitos sociais de pequenos pescadores e estimulam a criação de novos meios de geração de renda entre eles”.
Na análise de Roldão, “foram esses princípios que o primeiro titular da pasta, o catarinense José Fritsch, defendeu em sua gestão, entre 2003 e 2006. Petista histórico, ele iniciou a carreira política numa dessas pastorais sociais, a Comissão Pastoral da Terra, e manteve-se fiel a elas durante todo o tempo de governo. Na opinião de bispos ligados à área social, foi o melhor ministro até agora”.
José Fritsch filho de pequenos agricultores, e mudou-se para Chapecó aos doze anos, onde estudou no Seminário Diocesano na época em que era bispo dom José Gomes, um bispo fortemente ligado às questões sociais, sendo o primeiro presidente nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e também presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) por muito tempo.
O segundo titular do ministério da Pesca, Altemir Gregolin, também era petista e catarinense. Embora não tão próximo da Igreja, manteve os rumos do antecessor. O quadro passou a mudar com a posse de Dilma Rousseff que ofereceu o ministério como prêmio de consolação a Ideli Salvatti, após a senadora ter sido derrotada nas eleições para o governo de Santa Catarina. Ideli permaneceu no cargo cinco meses e foi substituída por Luiz Sérgio que agora cede o lugar para o evangélico da Universal do Reino de Deus, Marcelo Crivella.
Outro fator que confirma o declínio dos católicos progressistas, é a decisão de Dilma de afastar Gilberto Carvalho da interlocução com os evangélicos.
Gilberto Carvalho, ex-seminarista e um dos fundadores da Pastoral Operária e ligado à Igreja católica, teve que correr ao Congresso para se explicar sobre declarações dadas no Fórum Social em Porto Alegre, no final de janeiro. Em palestra, disse que o Estado deve fazer uma disputa ideológica pela "nova classe média", que estaria sob hegemonia de setores conservadores. "Lembro aqui, sem nenhum preconceito, o papel da hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são a grande presença para esse público que está emergindo", disse Carvalho.
A declaração despertou a fúria e inflamou os ânimos da bancada evangélica que pediu a cabeça do ministro. A polêmica custou uma retratação com pedido de desculpas do ministro pela imprensa e em visita ao Congresso. Após este episódio, Gilberto Carvalho foi afastado da interlocução com os evangélicos. Em seu lugar a presidente Dilma escalou a chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Essa atitude confirma o declínio dos católicos progressistas no governo Dilma.
Emergência da religião também nos EUA
Retornando ao debate anterior, outra ilustração da importância da religião na política está na composição do PSD no Rio de Janeiro. Dos 13 deputados estaduais que o partido tem neste Estado, cinco são evangélicos (Samuel Malafaia, ex-PR, irmão do pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo; Fábio Silva, também ex-PR, filho do empresário Francisco Silva, da Congregação Cristã do Brasil, dono da Melodia, uma das maiores rádios gospel do País; Marcos Soares, ex-PDT, filho do pastor R. R. Soares, missionário da Igreja Internacional da Graça; Graça Pereira, da Igreja Presbiteriana) e uma é missionária católica, a atriz Myriam Rios, ex-PDT. Dessa maneira, o partido começa a consolidar um perfil conservador com forte vínculo religioso.
Vale recordar ainda a forte polêmica que esteve presente na campanha eleitoral de 2010, capitaneada por setores religiosos (católicos e evangélicos) em torno principalmente da temática do aborto. Este tema foi assunto de análise na época. Como afirma o sociólogo da religião Antônio Flávio Pierucci, em artigo publicado na revista Novos Estudos: “Não lembro, e certamente ninguém há de lembrar, de uma campanha eleitoral em que a intromissão da religião tenha sido tão grande e ido tão longe como na eleição presidencial de 2010 para a sucessão de Lula”. [1]
No entanto, engana-se quem pensa que a emergência da religião no palco político seja uma peculiaridade apenas brasileira. Os Estados Unidos defrontam-se há tempos com a mesma realidade. A campanha eleitoral de 2006, que elegeu Barack Obama primeiro presidente negro deste país, esteve marcada por referências e polêmicas de cunho religioso.
O presidente Obama optou por recuar, por exemplo, no seu projeto de obrigar planos de saúde a fornecerem anticoncepcionais, inclusive aqueles mantidos por entidades ligadas à Igreja Católica.
A importância da religião na política tem novo capítulo nas prévias eleitorais norte-americanas. Os principais candidatos empunham ou estão em busca do eleitorado conservador, mais facilmente cativado com temas morais. Romney é mórmon e Santorum é católico, “que reúne o voto evangelical melhor do que os próprios evangélicos”, na análise do historiador da religião norte-americano Massimo Faggioli. Vale lembrar que, desde a eleição de John F. Kennedy, único presidente católico dos Estados Unidos, já se passaram mais de 50 anos.
Relativizando o peso eleitoral da religião
Como se viu acima, a importância da religião no cenário político brasileiro não é nada desprezível; ao contrário, chega mesmo a ser significativa e relevante, pois pauta a tomada de decisões do Executivo brasileiro. Entretanto, é preciso perguntar: qual é realmente o peso do discurso e da influência da religião nas eleições?
A entrevista especial para a IHU On-Line do Oneide Bobsin, professor de Ciências da Religião e reitor das Faculdades EST, e um artigo do sociólogo e professor da USP, Antônio Flávio Pierucci, podem lançar luzes sobre esta questão.
Com o aumento de políticos ligados a crenças religiosas, em sua maioria pastores de igrejas evangélicas, há um visível interesse de aproximação de líderes de diversos partidos que buscam apoio eleitoral. Entretanto, como observa Oneide Bobsin, percebe-se “uma crescente autonomia dos fiéis em relação às suas liderança religiosas e pastorais. Vamos usar uma metáfora. Cada vez mais as ovelhas não escutam a voz dos seus pastores quando se trata das questões públicas. O processo democrático, embora ainda limitado, oportuniza o discernimento. Os sucessivos governos, processos eleitorais e o envolvimento de parlamentares evangélicos com a corrupção permitem aos fiéis desconfiarem de certas propostas. E quando se tem como referência um governo com políticas públicas que possibilitam um mínimo de distribuição de renda, a eficácia da escolha passa do suposto líder carismático para a política em grande parte”.
E prossegue em seu argumento: “Se, nos temas ético-morais, as sintonias entre igrejas são maiores, quando se trata dos programas sociais do governo liderado pelo PT, então não vemos a mesma reação. Suspeito que entre as camadas pobres os programas sociais do governo federal têm um peso muito maior do que esses temas ou outros ligados à corrupção. Como disse um pentecostal que ocupou uma fazenda: a minha igreja me proíbe, mas a necessidade é maior do que a proibição. Gramsci, líder comunista italiano, já havia descoberto que as camadas empobrecidas são mais pragmáticas quando se trata da sobrevivência no âmbito da relação entre religião e política. Suspeito que o avanço da democracia permitiu aos evangélico-pentecostais e neopentecostais a participação na vida política”. E arremata: “Nem sempre o rebanho ouve a voz de seu pastor. Como disse um candidato, é preciso buscar voto fora dos irmãos. A ideia de que irmão vota em irmão perdeu força”. Ou seja, os eleitores (evangélicos) votam tendo em conta outros elementos da realidade e não apenas a crença religiosa ou o que disse o pastor.
Pierucci, por sua vez, analisando especificamente as eleições presidenciais de 2010, surpreende-se com o que chama de “crença abalada”, isto é, com o fato de que o voto religioso em nosso país não tem toda a importância que lhe atribuíram comentaristas políticos e cientistas sociais. Ou seja, Pierucci levanta a tese contrária àquela mais difundida, segundo a qual “no Brasil vigora o voto religioso”. [2]
Para fundamentar sua tese, Pierucci recorre ao chamado “efeito perverso”, ou no jargão weberiano da “consequência imprevista ou indesejada”, mais especificamente de um “‘efeito bumerangue’, que acontece quando a consequência adversa advém sem mais demora”. [3] Desta maneira o autor se refere à virada que a imagem de “bom católico” de José Serra sofreu no curto período de tempo que separa o primeiro do segundo turno das eleições de 2010. Como diz o autor, “o apelo religioso no segundo turno passaria de trunfo a estorvo”. [4]
Recorrendo a estudos correlatos feitos nos Estados Unidos, Pierucci recorre ao “efeito fariseu” para explicar a derrota de Serra naquelas eleições. O “efeito fariseu” “é quando a ventilação eleitoral de temas, critérios e apelos religiosos obtém do eleitor conservador resposta contrária à esperada”. [5]
Isso acontece quando o eleitor (conservador) tem a percepção “de excessos no emprego tácito da religiosidade pessoal de Serra que estancou suas chances de subir nas últimas pesquisas e o fez estacionar numa posição de desvantagem em relação à concorrente sem religião nem humanidade”. [6] Ocorre por que há, de um lado, uma simulação de si como alguém “mais santo” que o outro e, de outro, de demonizar o outro como alguém que por não ser temente a Deus não pode exigir respeito como ser humano. É o famoso tiro pela culatra.
O que Pierucci defende com o “efeito fariseu” é o fato de que o eleitor conservador, assim como “qualquer outro eleitor, ele também entra no jogo trazendo consigo a capacidade demasiado humana de se esquivar e surpreender. Imprevistamente ele vai mostrar que pode ser mais religioso, ou mais autenticamente religioso, do que julga o candidato fariseu e do que nem sequer imaginam seus desavisados coordenadores de campanha. Quando o eleitor conservador (...) percebe que sua fé está sendo exageradamente cortejada para satisfazer a interesses meramente eleitorais (...) o que ele passa a sentir pelo candidato que assim procede só pode ser rejeição. Num gesto que tem muito de desagravo e desforra, ele pega e vota contra”. [7]
Pierucci, assim como Bobsin anteriormente citado, admite que os eleitores religiosos não votaram apenas em função de um único aspecto e, além do mais, idealista. Diz ele: “E eram interesses materiais, não ideais, os que igualmente empurravam os fiéis praticantes a votarem pela continuidade das políticas lulistas, uma vez que também eles se sabiam atendidos por várias ações de governos nos oito anos de Lula presidente”. [8] Ou seja, o eleitor vota também olhando para os benefícios materiais de que foi beneficiado.
E conclui seu artigo escrevendo: “Refiro-me à constatação do pouco (muito pouco!) que o voto dos adeptos das diferentes igrejas cristãs foi afetado pelo muito (muito mesmo!) de orientações, doutrinações e apelações emitidas pelas autoridades católicas e evangélicas contrárias à candidatura ungida por Lula e consistentemente apoiada sobre a extensa aprovação popular de seu governo”. [9] Não deixa de ser uma chamada de atenção para as próximas eleições!
Governo cede a teses conservadoras
Tendo presente as reflexões de Pierucci e de Bobsin, não estaria o governo dando demasiada atenção ao tema do religioso e suas intromissões no mundo da política e, dessa maneira, amarrando-se gradativamente a esses setores da sociedade e deles tornando-se refém?
A nomeação de Crivella é mais um episódio, no meio de tantos outros, que acentua os recuos do governo diante das forças conservadoras. Assim foi com o Código Florestal, com o PNDH3, com o kit anti-homofobia, com a polêmica da nomeação da ministra Eleonora Menicucci. Aguarda-se agora, depois de muitos recuos, a postura do governo em relação à nomeação de nomes para a Comissão da Verdade.
Sobre isso, comenta Luís Fernando Verissimo: "A julgar pela rapidez com que, aos primeiros protestos de evangélicos e bispos católicos, o Gilberto Carvalho correu para lhes dizer que a posição do governo em relação ao aborto continuaria retrógrada como a deles, pode-se duvidar da disposição do governo para enfrentar a reação que virá, como na Espanha do Garzón, ao exame do nosso passado e à responsabilização dos seus desmandos. Vamos torcer para que, neste caso, a espinha do governo seja mais firme", diz o escritor.
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Notas:
[1] PIERUCCI, Antônio Flávio. Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo religioso. Novos Estudos n. 89, mar. 2011, p. 5-15.
[2] Idem, p. 7.
[3] Idem, p. 8.
[4] Idem, p. 9.
[5] Idem, p. 9.
[6] Idem, p. 11.
[7] Idem, p. 13.
[8] Idem, p. 14.
[9] Idem, p. 14.
Conjuntura da Semana em frases
Amebas e minhocas
“No governo, (Eleonora) Menicucci (ministra das Mulheres) rendeu-se ao discurso anódino do Planalto. Aborto? Fica para o Congresso decidir. E não se fala mais nisso. Já Crivella, criacionista e descrente da teoria da evolução, pode derrubar quantas vezes quiser o muro que deveria separar igreja e Estado. Como senador, em 2009 compartilhou uma dúvida com seus colegas -"O surgimento da vida a partir de uma ameba traz o primeiro questionamento: e a ameba, surgiu de onde?" – Fernando Rodrigues, jornalista – Folha de S. Paulo, 03-03-2012.
Almas 1
“O Ministério da Pesca é uma abstração e foi criado exatamente para isso: acomodar interesses e aliados políticos, além de justificar uma penca de emendas parlamentares. Poderia ser o ministério do frango, da soja, do gado de corte, do gado leiteiro, quem sabe das almas?” – Eliane Cantanhêde, jornalista – Folha de S. Paulo, 01-03-2012.
Almas 2
"O governo resolveu pôr na Pesca um pescador de almas, que ainda vai andar sobre as águas" - Cristovam Buarque, senador - PDT-DF - O Estado de S. Paulo, 01-03-2012.
Excêntrico
“Crivella é do PRB e bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus. Igreja e partido entram no governo com a missão de vocalizar os anseios de políticos evangélicos. Em meio a metáforas e a discursos sobre minhocas e amebas, Dilma Rousseff oficializa, assim, mais um oximoro da administração petista, o excêntrico Estado laico-cristão” – Fernando Rodrigues, jornalista – Folha de S. Paulo, 03-03-2012.
100%
“O próprio PRB entrou com aquela questão do famoso kit gay. Sempre criticamos e entendemos que ele tinha culpa nisso. Como é que o PRB vai estar com uma pessoa que está criticando? Tem que ter coerência (...) (Fernando Haddad) tem 100% de responsabilidade” - Gilmaci Santos, deputado estadual, secretário-geral do PRB-SP e um dos coordenadores da pré-campanha de Celso Russomanno à Prefeitura de São Paulo – O Estado de S. Paulo, 01-03-2012.
Retiro
“Com a nomeação de Marcelo Crivella, ainda que para o lateral Ministério da Pesca, Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) deixa de ser o interlocutor do Planalto com os evangélicos -condição que perdeu ao fazer críticas ao segmento durante o Fórum Social Mundial” – Vera Magalhães, jornalista – Folha de S. Paulo, 01-03-2012.
Todos ouvidos
"Tomei até um susto. Mas o governo percebeu que a bancada evangélica faz diferença. E está dando mais atenção aos assuntos religiosos” – Marco Feliciano (PSC-SP) em campanha contra a pena de morte do pastor Youssef Nadarkhani, do Irã, condenado por renunciar ao islamismo e aderir ao cristianismo ao comentar que seria recebido pela ministra da Casa Civil Gleisi Hoffmann e que foi procurado pelo ministro Gilberto Carvalho – Folha de S.Paulo, 28-02-2012.
Marcelo Rossi e o aborto
"Existem princípios que regem a igreja e, se forem violados, há mobilização. Se um candidato for a favor do aborto, não só eu, mas também setores evangélicos, vão se mobilizar contra" – Marcelo Rossi, padre e cantor – Folha de S. Paulo, 27-02-2012.
Dilma no altar
"Você viu o caso do Valdemiro [Santiago, da Igreja Mundial], que parou a Via Dutra [na inauguração de um megatemplo]? Quero tudo certinho, com alvará. Não estou acima da lei" – Marcelo Rossi, padre e cantor, dizendo que Dilma Rousseff deve ir à inauguração do Santuário Mãe de Deus, para 100 mil pessoas, onde passará a celebrar suas missas – Folha de S. Paulo, 27-02-2012.
Serra e Dilma
"Eu acho que o Serra não vai mais ser candidato a presidente da República (...). Para a [presidente] Dilma, a melhor coisa que poderia acontecer é o Serra prefeito de São Paulo. Porque se tiver Dilma e Aécio [Neves, do PSDB], Serra é Dilma [na disputa presidencial de 2014]" – Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo – PSD – segundo relato de Rui Falcão, presidente nacional do PT – Folha de S. Paulo, 02-03-2012.
Entenda...
“Nossa relação com o governo é de cooperação, de torcida para que ela vá bem. Eu apoiei o Serra na eleição dele, Lula ganhou e poucos foram tão parceiros com o governo Lula como nós. Depois, na eleição com Dilma, voltamos a ficar com o Serra, mas nem por isso deixaremos de cooperar com o governo da presidente” – Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo – Portal jornal O Globo, 27-02-2012.
Combinado
“Alguém pode imaginar que o prefeito Gilberto Kadssab estava sendo absolutamente verdadeiro, agindo por conta própria, sem combinar tudo antes com seu parceiro José Serra, ao ‘oferecer’ o apoio do seu partido a Lula, até indicando o vice para compor a chapa do PT”? – Ricardo Kotscho, jornalista, em seu blog, 27-02-2012.
Rasteira
“Desta vez, ao que tudo indica, o feitiço se voltou contra o feiticeiro, e o mágico Lula, capaz de dar nó em pingo d'água na sua política de alianças, desta vez levou uma rasteira da dupla Serra-Kassab” – Ricardo Kotscho, jornalista, em seu blog, 27-02-2012.
Serra fora do PSDB?
"Em seus diálogos privados, Gilberto Kassab informa que, se for eleito para a prefeitura de São Paulo, o tucano José Serra vai romper com o PSDB e abandonar os quadros da legenda" - Josias de Souza, jornalista - no seu blog, 29-02-2012.
Mantega neles!
“Ofereceu a solução para acabar com a crise atual. Consiste em dividir os países em dois grupos. Um deles, de nações endividadas até as tampas, seria submetido a um rígido corte de gastos. O outro, dos remediados, adotaria também medidas para acelerar o crescimento econômico. Os alemães deveriam perguntar-se por que não pensaram nisso antes” – Vinicius Mota, jornalista – Folha de S. Paulo, 27-02-2012.
Vingados
“Nós, que por décadas tivemos de escutar humildemente as prescrições e as bobagens sugeridas pelos europeus, estamos vingados. Mantega neles” – Vinicius Mota, jornalista – Folha de S. Paulo, 27-02-2012.
Cachorro e pincel
“É o meu clube, é o meu Estado. Não há hipótese nenhuma da empresa sair que nem cachorro e deixar todo mundo de pincel na mão” – Dilma Rousseff, presidente da República, esbravejando com Sérgio Lins Andrade, presidente do conselho de administração da Andrade Gutierrez e com Otávio Marques de Azevedo, presidente-executivo da construtora – Zero Hora, 01-03-2012.
Será?
“Experiente como é, Dilma não iria, como presidenta da República, descer do seu pedestal e vir aqui embaixo escolher a empreiteira (que faria as reformas do estádio do Inter). Nunca tinha visto um presidente da República escolher a empreiteira, indicar a construtora. Tenho certeza de que Dilma não fez isso e há aí um ruído de comunicação” – Paulo Sant’Ana, jornalista – Zero Hora, 01-03-2012.
Bando de mentirosos
“Uma coisa Marcelo Crivella não precisará aprender no Ministério da Pesca: todo político sabe muito bem o que é "conversa de pescador" – Tutty Vasques, humorista – O Estado de S. Paulo, 03-03-2012.
Fogo de palha
“A base aliada do governo está rebelada. O ideal seria que a presidente Dilma tivesse um Ministério da Pesca para cada partido coligado, mas também não é nada que duas mariolas, uma paçoca e três bolas de gude não resolvam” – Tutty Vasques, humorista – O Estado de S. Paulo, 03-03-2012.
Brasil lúdico
“O Brasil é lúdico! Olha esse cartaz num poste em Olinda: ‘Pai Inácio! Batizo filho de mãe solteira, tiro demônio do couro e cancelo cartão. Trago de volta marido, cabaço e cachorro perdido. Jogo cartas, passo bicho e descubro senha de Facebook’ – José Simão, humorista – Folha de S.Paulo, 29-02-2012.
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Conjuntura da Semana. Religião e política. Quando os campos se confundem - Instituto Humanitas Unisinos - IHU