“É preciso criar um amplo cinturão social de enfrentamento à pobreza”. Entrevista especial com Rafael dos Santos da Silva

“Não criar canais – públicos e coletivos – de acesso e distribuição da riqueza socialmente produzida faz a pobreza se converter naturalmente em violência”, diz o pesquisador

Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin | 30 Outubro 2023

Se existe uma correlação entre violência e pobreza, “é preciso esclarecer que violenta é a pobreza, não o pobre”, pontua Rafael dos Santos da Silva na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Para ele, o pobre é vítima da violência. “As pessoas são violentas, na grande maioria das vezes, porque uma pobreza extrema lhes retirou a dignidade”, assegura.

Pesquisas recentes sobre as causas da pobreza no mundo associam este fenômeno majoritariamente ao mau uso da economia, seguido das guerras e das mudanças climáticas. Esse dado, comenta Rafael da Silva, indica que “onde a sociedade é mais desenvolvida, a pobreza é mais intensa” porque “é fruto das escolhas sociais”.

Na entrevista a seguir, o professor reflete sobre os desafios na superação da pobreza e aponta algumas possibilidades a partir dos pronunciamentos do Papa Francisco. “O Papa Francisco está na vanguarda deste debate. Isso porque ele tem sido uma das poucas pessoas, talvez a única (nesse particular nem Lula o alcança), a chamar atenção para as reais causas da pobreza, especialmente ao lançar luz no maior de todos os pobres: a ecologia”.

Rafael dos Santos da Silva (Foto: Arquivo pessoal)

Rafael dos Santos da Silva é graduado e mestre em Administração e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Leciona na Universidade Federal do Ceará (UFC). É membro do Observatório de Políticas Públicas da UFC, do Grupo de Pesquisa sobre pobreza Josué de Castro da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e membro do conselho curador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).

Confira a entrevista.

IHU – Que relação podemos estabelecer entre violência e pobreza?

Rafael dos Santos da Silva – Estou convencido de haver uma relação umbilical entre violência e pobreza, e isso ocorre por meio da desfiliação social. As pesquisas mais modernas nesse campo nos encaminham a perceber que a violência emerge a partir de um ambiente marcado fundamentalmente pela pobreza estrutural. Este ambiente insólito representa a exata ausência de um conjunto de oferta de serviços públicos coletivos e de uma economia equilibrada. Ou seja, um lugar onde não se dispõe de uma rede de apoio e de infraestrutura sem a qual é impossível falar em cidadania. A ausência de cidadania faz da pobreza ainda mais perversa e seu destino marcará, como já dito, o processo de desfiliação do indivíduo da sociedade. Dito de outra forma, a concretização da violência é a coletividade sendo reduzida ao nada.

Imagine que qualquer animal em situação de fome não vai medir esforços para saciá-la. Com os seres humanos não é diferente. Se passarmos muito tempo expostos a essa condição que está potencializada pelos ciclos da pobreza, é natural que iremos criar estratégias por vezes pouco racionais para saciar nossa fome. Neste cenário, não faltará quem se disponibilize a realizar trabalhos escravos. As mulheres podem ficar mais expostas à prostituição ou, como temos notado, o caminho do tráfico de drogas parece ser naturalizado, especialmente para jovens.

O fato é que, uma vez desfiliado, o indivíduo topa matar ou morrer sem que sua consciência seja efetivamente cobrada. Esse processo é nitidamente marcado pelo rompimento do pacto social responsável por nossa paz. Aí começa a violência.

A constatação da associação entre pobreza/violência muitas vezes é visual. Se você circula nas periferias dos grandes centros, vai perceber facilmente que o cotidiano é mediado por uma espécie de sociologia das ausências – para usar a expressão de Boaventura de Sousa Santos. Nesse ambiente, é a própria ausência e/ou excesso do Estado, na sua função de polícia, que se estabelece como método.

Contudo, é preciso esclarecer que violenta é a pobreza, não o pobre. Este acaba sendo vítima da violência. Dito de outra forma, não é porque eles são pobres que são violentos, mas o contrário: as pessoas são violentas, na grande maioria das vezes, porque uma pobreza extrema lhes retirou a dignidade. Todavia, é regra geral que a violência seja comum a ambientes em que a extrema pobreza igualmente a seja. Isso porque uma vez instalada nos territórios, a pobreza acaba ressignificando a espacialidade pelo conflito. Portanto, não tenho dúvida em afirmar que a violência, tal qual a conhecemos hoje, tem origem na pobreza material produzida pela sociedade desenvolvimentista.

IHU – Como a pobreza se converte em violência no cenário urbano de hoje?

Rafael dos Santos da Silva – A pobreza vira violência do mesmo jeito que o azeite vira óleo quando exposto à alta temperatura. A temperatura para a violência é a vulnerabilidade. Ou seja, o grau de exposição à pobreza. Do ponto de vista sociológico, o termo pobre está relativamente ultrapassado. Estou convencido de que não é possível compreender o indivíduo fora de uma estrutura social que, por sua vez, se revela diariamente opressora, razão pela qual precisamos falar da pobreza sem obviamente perder do horizonte o indivíduo empobrecido.

Isso nos leva a compreender que o garoto que faz aviãozinho nas quebradas ou o trabalhador que é espoliado da sua força de trabalho nas metrópoles vivem um aprofundamento das opressões sociais e, ao cabo, irão representar maiores repressões sociais. É nesse limite tênue que a pobreza se converte em violência. Esse tipo de cenário é cada vez mais comum em espaços urbanos, dado ao cada vez mais complexo tecido social. Nesse campo é preciso analisar friamente os níveis de desenvolvimento de uma determinada sociedade. Isso significa estar atento aos padrões tecnológicos, às rupturas das relações trabalhistas e, como já frisei, à oferta de um cinturão social capaz de atenuar os efeitos da pobreza.

Aqui é necessário interpretar o meio urbano que sem dúvida acabou se tornando o ambiente mais sensível à reprodução da pobreza, dada as apostas no modelo de produção e consumo que chamamos de desenvolvimento. Existe uma cegueira institucional, política e social, que teima em apostar num padrão insustentável de comportamento econômico, como se o futuro não fosse existir. Esse tal “modelo sustentável” tem se revelado irrealizável a longo prazo, dado seu profundo caráter concentrador.

No Ceará, a realidade da distribuição da riqueza produzida é simplesmente estarrecedora. Em um levantamento que fiz recentemente, percebi que a riqueza de apenas seis dos maiores empresários é maior do que o orçamento do Estado para 2024. O espaço geográfico de Fortaleza é um desastre econômico. Esse território, composto por 113 bairros, é desenhado por uma realidade abissal. Nota-se a presença de locais com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) equiparado a países africanos, contrastando com bairros luxuosos com IDH equivalente a realidades europeias. Ou seja, num espaço curto de 300 km2 se convive com as realidades da opulência e da pobreza extrema. Em síntese, não criar canais – públicos e coletivos – de acesso e distribuição da riqueza socialmente produzida faz a pobreza se converter naturalmente em violência.

IHU – Como compreende o conceito de desigualdade? No Brasil, em que medida a desigualdade tem sido um alicerce à pobreza e violência?

Rafael dos Santos da Silva – A pobreza possui três ciclos. O primeiro é a desigualdade. A literatura especializada se refere à desigualdade como sendo a marca de um profundo desequilíbrio de acesso, especialmente na expectativa de vida e na educação. Como consequência da ausência de saúde e da negação de um processo educacional sólido, a renda passa a ser comprometida.

Mas quero lembrar que essa é apenas a ponta do iceberg, pois, de fato, a desigualdade é algo constitutivo de um modelo patriarcal nas relações de gênero (pleno domínio do homem), colonial, na sua dimensão política (relação de dependência estrutural entre centro e periferia), e capitalista, na produção econômica. Em outras palavras, para compreender a desigualdade é preciso considerar o modelo social, político e econômico de um lugar.

Antes que o leitor possa confundir, estamos diante da realidade como ela é. Nesse sentido, não temos porque falar em desigualdade “de” gênero, como se a questão fosse biológica. Não! A desigualdade é “no” gênero, porque é confeccionada especialmente para as mulheres, por meio das estruturas de poder e suas relações materiais.

É nesse sentido que o debate sobre a desigualdade, em especial no Brasil, precisa ser conduzido. Porque a um só tempo ele permite o fortalecimento do domínio masculino, das estruturas políticas e dos modos de produção. Há, portanto, um conjunto de articulações que agem, simultaneamente, fazendo com que as correlações de forças sociais não mudem.

Inércia

A inércia é um termo interessante para falar de descrédito. Quando se está diante de uma realidade que não muda, é normal que isso provoque desânimo. Se você tem alguma garantia para viver, se alimentar e, com algum nível de segurança, se deslocar, então seu desânimo tende à inércia. Ou seja, você não se incomodará com o estado das coisas. Entretanto, caso não consiga acessar a água potável, alimento em quantidade e qualidade, trabalho, ou a dignidade de um lar, então será natural o seu descontentamento, de modo que a apatia dará lugar à revolta.

Se o ponto de análise é a pobreza, a desigualdade é o alicerce. Mas se nosso pano de fundo for a violência, então é preciso considerar os outros aspectos estruturais da pobreza que deve ser pensado em conjunto com a desigualdade.

IHU – O senhor destaca que 85% da pobreza global é provocada pelo mau uso da economia. Quais os desafios para converter a economia a um bom uso? Como observa as propostas da Economia de Francisco e Clara?

Rafael dos Santos da Silva – Sim, eu conheço as propostas da Economia de Francisco que, generosamente, aqui no Brasil, ganharam a companhia de Clara. Sou um entusiasta desta iniciativa e costumo, com frequência, utilizar seus princípios em minhas aulas. O Papa Francisco está na vanguarda deste debate. Isso porque ele tem sido uma das poucas pessoas, talvez a única (nesse particular nem Lula o alcança), a chamar atenção para as reais causas da pobreza, especialmente ao lançar luz no maior de todos os pobres: a ecologia.

Há algo de muito novo em relacionar a pobreza com as causas ecológicas. Ele chama abertamente a economia capitalista de “economia da morte”. E reitera a urgência de um novo modelo de relação econômica que seja capaz de integralizar economia com ecologia. Não vejo essas críticas nem nas melhores páginas de Karl Marx.

Em tempo, desde a Laudato si’, passando pela Fratelli tutti, e agora chegando à Laudate Deum, o tom é o mesmo. Nesse último texto, do ponto de vista conceitual há um significativo avanço: Francisco não toca no nome “desenvolvimento sustentável”. Da primeira à última publicação há um espaço temporal de oito anos. O suficiente para o Papa perceber que não é possível um modelo ser sustentável quando a regra é negar o desenvolvimento.

Causas da pobreza

É aqui que entra a crítica central que faço no artigo publicado recentemente. Quando se estudam as causas da pobreza, a literatura disponível indica que 85% das causas que a produz acontece em função do mau uso da economia (as outras duas causas são as guerras e as mudanças climáticas). Leia-se: as péssimas escolhas econômicas são determinantes para a produção da pobreza. Não precisamos de muito para entender esta realidade. Basta analisar o crescimento dos números da fome em meio a tanta opulência de alimentos.

No livro “As pessoas em primeiro lugar”, Amartya Sen e Bernardo Kliksberg atestam ser repugnante identificar que a riqueza de apenas oito afortunados seria suficiente para evitar a morte de cinco crianças por minuto e a fome de 800 milhões de pessoas. Estas crianças, em geral, morrem vítimas de guerra ou de causas absolutamente evitáveis. Suas mortes poderiam ser evitadas por acesso a drogas que custam apenas centavos. Em relação à guerra, é preciso destacar que ela é muito mais que bombas e mísseis; há uma verdadeira economia da guerra.

Um mercado tão poderoso quanto o do petróleo precisa que as coisas não mudem, pois é o que mais lucra. Para se ter uma ideia, o dinheiro investido pelos EUA no primeiro ano da guerra na Ucrânia seria suficiente para executar todo o programa de combate à fome previsto pela ONU. Outro ponto importante são as mudanças climáticas que provocam migrações em massa. Ao chegar ao destino, isso para aquelas pessoas que chegam, lhes é ofertada uma súbita economia da desigualdade, obrigando os imigrantes a um criminoso trabalho precarizado.

Bom uso da economia

Para converter a economia em bom uso, gosto da ideia do Papa Francisco. Ele aponta que a saída é a invenção de uma outra economia. Sim, este modelo econômico capitalista está absolutamente saturado. Numa expressão popular: está na “casa do sem jeito”. Por quê? Porque, como já dito, é uma economia baseada na manutenção das desigualdades e espoliação da ecologia. Sua lógica infinita não pode ser suportada num planeta finito. A conta é simples.

A saída é uma economia em que não haja primazia do capitalismo sobre a ecologia e sobre os pobres. Um modelo de partilha entre os povos, comunhão e respeito com a natureza. Onde está esse modelo? Existem vários... É verdade que não foram testados de forma massiva. Um deles é o bem-viver dos povos andinos. A economia solidária talvez seja nosso maior exemplo. Que esses casos careçam de adaptações para a vida urbana de grandes proporções como as metrópoles, é claro. Mas o fato é que precisamos nos convencer de que o modelo de produção capitalista se exauriu. Isso não significa que o modelo a ser criado nos leve de volta às cavernas. Não! Quero apenas dizer que a mediação econômica que faremos no próximo modelo precisará respeitar os limites éticos de convivência humana e, sobretudo, ecológica.

IHU – Como analisa o impacto das mudanças climáticas na promoção da pobreza e da fome? Teria algum caso concreto no Brasil para ilustrar?

Rafael dos Santos da Silva – As mudanças climáticas, como estamos observando, podem colocar por terra toda possibilidade de uma nova economia. Isso porque, sem um clima adequado e equilibrado, não haverá vida, logo, não podemos falar em economia. Dito isto, é preciso entender que os mais afetados por essas mudanças são os pobres. Por quê? Porque a infraestrutura das cidades não oferece, a esta camada da população, nenhuma segurança ou proteção.

O Nordeste do Brasil é historicamente uma terra famosa pela migração. Em qualquer parte do país há um nordestino emprestando a força do seu trabalho. Essas pessoas foram obrigadas a sair de suas terras em função das questões climáticas, em primeiro lugar, mas principalmente pela ausência de políticas públicas que permitissem a convivência com a realidade local. Isso tem um impacto imediato na economia, empobrecendo gerações inteiras.

Eu vivo no Ceará e dou aulas em uma cidade chamada Crateús, distante 360 km de Fortaleza. O clima é semiárido. Chove pouco, mas de um tempo para cá a rede Caritas, em conjunto com várias outras experiências, resolveu modificar a lógica de resistência, abandonando a ideia de enfrentamento à seca para a convivência com o semiárido. Essa simples mudança de perspectiva exigiu pensar técnicas de convivência com a ecologia local, respeitando seus limites, aproveitando o melhor que se pode extrair da terra. E ela, a mãe terra, mesmo limitada, muito tem a oferecer. Como resultado, anualmente se organiza, em pleno sertão nordestino, a segunda maior feira de economia solidária do Brasil.

Fenômeno global

Contudo, as mudanças climáticas são um fenômeno global. O equilíbrio da temperatura está relacionado com os níveis do mar, com o acesso à água potável, com a produção de alimentos. Ele se relaciona com os problemas urbanos das periferias, como a ausência de saneamento básico, assistência médica e acessos a medicamentos, e vacinas que podem levar ao limite entre a vida ou a morte em casos de pandemias, como foi o caso da que vivenciamos.

Gosto bastante da metáfora utilizada por Leonardo Boff para relacionar a pandemia de Covid-19 e as mudanças climáticas. Na sua sabedoria, Boff explica que “o surgimento daquele vírus se assemelha a um reservatório de água em cujo fundo havia muita terra. Alguém de reduzida sabedoria mexeu com o fundo do recipiente, espalhando todo o sedimento que ali repousava. Como consequência, toda a terra acumulada ficou agitada, misturando-se à água que estava límpida. Assim, o barro contaminou a água, tornando-a momentaneamente imprópria. A natureza, na sua sabedoria, fará com que a terra volte ao fundo, mas, caso novamente seja mexida, novamente liberará suas impurezas”.

A pergunta é simples: quem mais foi afetado pelo vírus? Qual foi a classe social que mais sofreu? Foram exatamente os pobres. Primeiro porque não conseguiram material para fazer higienizações. Depois, porque não tinham economia suficiente para sobreviver. Em países subdesenvolvidos (esse termo é dito ultrapassado, mas ainda real), os pobres morreram afetados pelo vírus, especialmente por não conseguir pagar pelo acesso às vacinas.

Portanto, estou convencido de que as mudanças climáticas empobrecem as pessoas porque empobrecem, em primeiro lugar, a terra. Sem o equilíbrio ecológico, é impossível falar em economia, logo abre-se um ciclo vicioso que tende a se aprofundar mais e mais.

IHU – No artigo citado, o senhor aponta que “a pobreza, do ponto de vista geográfico, vai atingir a humanidade de forma mais intensa em locais onde a economia é muito avançada”. Pode nos detalhar esta perspectiva?

Rafael dos Santos da Silva – Essa é a grande hipótese que venho percorrendo nos meus estudos. Digo que “onde a sociedade é mais desenvolvida, a pobreza é mais intensa”. Isso contraria muitos manuais de desenvolvimento sustentável, mas indica que o modelo baseado na negação da coletividade e da ecologia favorece a concentração de renda e riqueza. Ora, todos sabemos que houve uma considerável redução da pobreza na renda, especialmente nos últimos 30 anos. Então o que sustenta minha hipótese? Observe que eu tomo o cuidado de reconhecer que houve redução dos níveis de pobreza. Mas isso aconteceu somente na renda. A quantidade de pessoas passando fome, por exemplo, tem aumentado drasticamente. Estima-se que um terço da humanidade está exposta a algum tipo de pobreza material. Algo em torno de três bilhões de pessoas não acessam água potável e apenas um bilhão acessam ao mercado de consumo. Mas não é de quantidade que estou falando; é de intensidade. A intensidade da pobreza tende a castigar mais aqueles que estão em modelos econômicos altamente desenvolvidos.

Na prática, ser pobre no centro de Paris, em Londres, em Nova York ou mesmo em São Paulo, é um desafio cada vez maior. É disso que estou falando. Nessas cidades, o modelo de desenvolvimento econômico é uma regra inquestionável e sua matriz política induz seus gestores a não criaram canais efetivos de distribuição da riqueza material. É por isso que figuras como o padre Júlio Lancellotti são imprescindíveis na região da Mooca. Porque ele, à sua maneira, absorve aquilo que o desenvolvimento expurga: pessoas altamente empobrecidas. Daí porque afirmo: quanto maior for o processo de desenvolvimento econômico, mais acentuada será a pobreza naquele local.

IHU – Segundo sua tese, quanto maior for o desenvolvimento econômico de um território, mais acentuada será a pobreza. Mas como pensar nos territórios com baixo, ou até baixíssimo, desenvolvimento econômico? Nestes casos, não são casos de pobreza generalizada?

Rafael dos Santos da Silva – Sim. Nesses ambientes é evidente que a pobreza é generalizada. Mas não pela ausência de desenvolvimento econômico somente. A maioria dessas experiências ocorre em razão da má gerência econômica, quer seja por razões externas, quer seja por razões internas. Na América Latina, existem dois casos emblemáticos: Venezuela e Cuba. São realidades em que a pobreza é, de fato, generalizada. Mas isso não aconteceria se não houvesse o famigerado bloqueio econômico. Se essas economias estão em frangalhos, muito se deve à lógica da geopolítica imposta a suas realidades.

Mas vamos considerar países onde não existem bloqueios econômicos e que, ainda assim, são obrigados a conviver com altos índices de pobreza. Esse é o caso típico de países africanos. Nessas economias a realidade de exploração e dependência é infinita e se arrasta há muito tempo. O modelo extrativista de exploração dos recursos naturais, aliado à manipulação política da elite local, praticamente submete esses países a uma dependência generalizada à economia global. Foi exatamente esta realidade que levou o Papa Francisco a sentenciar: “Tirem suas mãos da África”.

Há séculos os países capitalistas usam seus conceitos de “livre mercado” para monopolizar as riquezas daquele continente. Ora, se aumentar as tecnologias e aumentar a extração dos minérios, ou seja, aumentar o desenvolvimento econômico dos africanos, vamos acabar com a pobreza deles? Estou convencido que não. O mesmo vale para o Brasil. O que justifica ter alcançado, nos últimos anos, o título de maior produtor de proteína animal do mundo? Para um pequeno grupo de afortunados que gosta de posar para a Forbes a cada início de ano, isso pode significar alguma coisa, mas vamos admitir: é um acinte para os 33 milhões de brasileiros(as) que estão passando fome.

De outro lado, há registros que vêm de baixo e podem se mostrar sustentáveis sem necessariamente se rogar ao crescimento infinito da economia. O caso mais famoso vem da Índia. O impacto da pobreza naquela região do globo é assustador. Mas foi ali que surgiu a experiência do microcrédito para pôr fim ao mito de que somente se acaba com a pobreza com crescimento econômico infinito. Não! Acaba-se com a pobreza com justiça social. Não estou afirmando que não seja preciso algum crescimento econômico. Claro que em locais com baixos índices econômicos é importante que ocorra uma política para impulsionar a economia. Mas não está claro que, no seu modelo infinito, o crescimento da economia seja a única saída.

Finalmente, quero responder sentenciando o seguinte pensamento: “Não se combate a pobreza apenas com crescimento econômico. A pobreza se combate com justiça social”. Isso significa mais distribuição, equidade, respeito aos limites ecológicos e até crescimento econômico para os lugares que nunca o experimentaram. Mas também decrescimento para os lugares que a séculos sugam e concentram riqueza.

IHU – O desenvolvimento econômico, como é aferido hoje, é um bom indicador de prosperidade de um território? Por quê?

Rafael dos Santos da Silva – Não. Depois da resposta que dei acima, ficaria contraditório concordar que o desenvolvimento econômico é suficiente para indicar prosperidade. Mas isso também vai depender do que o leitor entende por “prosperidade”. Se prosperidade significar equidade de acesso e justiça social, então temos boas razões para procurar outros indicadores.

Nosso leitor precisa compreender que o desenvolvimento econômico é mensurado pelo produto interno bruto (PIB) de uma determinada sociedade. A lógica deste sistema é mensurar, ano após ano, o crescimento deste indicador. Isso indica que neste ano o PIB deve ser maior do que o do ano passado. Ano que vem, maior do que o deste, e assim sucessivamente. Ao longo do tempo isso é insustentável porque o sistema ecológico do qual ele se alimenta é simplesmente finito.

Dito isso, precisamos considerar que somos seres coletivos e, portanto, necessitamos viver coletivamente. Nossa principal dependência vem dos sistemas ambientais que nos cercam. Sem eles não podemos falar em vida, quiçá vida sustentável. Se estes sistemas estão ameaçados para garantir que o sistema econômico avance, então não podemos falar de prosperidade.

Penso que já passa da hora de criarmos outros indicadores. Quando avançamos mais, alcançamos o IDH que foi pensado como um substituto ao PIB. O IDH considera outras duas realidades: saúde e educação. No entanto, a financeirização da vida não permite que ele seja o principal indicador social. Ninguém se importa se estamos oscilando entre o octogésimo ou nonagésimo lugar no ranking do IDH. Mas se cairmos de sétimo para décimo lugar no ranking do PIB, os telejornais não deixam o governo em paz. É o mercado quem dita.

Talvez a melhor experiência nesse campo venha do Butão, este pequeno país no leste asiático que ousou mensurar sua prosperidade a partir do patamar da felicidade. Estão certíssimos, afinal é a felicidade o fim último da humanidade e não o dinheiro. Mas isso para o Ocidente ainda é muito abstrato. Para a nossa cultura, precisamos ter dinheiro para ser feliz. C’est la vie.

IHU – Diante do cenário brasileiro, quais caminhos vislumbra como possíveis para erradicar a pobreza?

Rafael dos Santos da Silva – Em primeiro lugar, é preciso acabar com a fome. Este fenômeno é a zona mais intensa da pobreza e há sérias razões, para além das questões éticas, que nos obrigam a fazer isso. A principal delas é evitar a ruptura social ou, nos termos de Robert Castel, a desfiliação social. Tendo vencido a fome, é preciso enfrentar as outras etapas.

Quem assiste minhas aulas na Universidade Federal do Ceará talvez esteja cansado de me ouvir repetir feito um mantra que a pobreza é fruto das escolhas sociais. Portando, produção direta da sociedade. Nesse sentido, acabar com a pobreza deveria ser algo absolutamente fácil. Poderia se colocar o fim nesta vergonha a canetada? Então por que não acontece? Porque na economia da morte, para tomar emprestada novamente a expressão do Papa Francisco, precisa que haja pobres. Sem um lugar para onde enviar os rejeitados, não haveria ricos, ainda que isso signifique injustiça social. Veja, não quero criminalizar os bilionários, mas a pobreza como a conhecemos, quando analisada dentro do capitalismo, não pode prescindir desta afirmação.

Justiça social

Nesse sentido, o caminho para a superação da pobreza somente pode ser o da justiça social. Ou, efetivamente, o da distribuição da riqueza. Observe que falo de riqueza e não somente da renda. A distribuição de renda já iniciamos e, sob certa medida, está pacificada na sociedade brasileira. Até o último governo da ultradireita precisou, mesmo a contragosto, realizar algum tipo de distribuição de renda.

Hoje, a sistematização do programa Bolsa Família é exemplar para muitos países do mundo. Suas condicionalidades, focadas na saúde e na educação, são, de fato, o ponto alto. Eu mesmo fui beneficiado por este programa há pouco mais de vinte anos. Mas somente agora minha família completou o ciclo de saída da pobreza. Pelo menos por uma geração isso está garantido entre nós. Portanto, distribuir renda é fundamental enquanto primeiro passo. Mas, em seguida, é preciso criar um amplo cinturão social de enfrentamento à pobreza.

O atual governo federal vem reconstruindo instituições neste campo. O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é o melhor exemplo. No Ceará, o governo estadual aposta no Ceará Sem Fome. Não obstante uma parcela significativa ainda não ser alcançada, está avançando.

Distribuição da riqueza

Agora, precisamos ousar em distribuir riqueza. O que eu entendo por riqueza? O famoso livro da teoria socialista com o sugestivo nome de O Capital, de Karl Marx, apontava que riqueza são os meios para se efetivar a produção. Neste contexto, o autor portava-se especialmente para duas formas de riqueza: o capital e a terra. Segundo este pensamento, quem possuía terra e capital era visto como dono dos meios de produção, portanto, capitalistas.

Hoje, precisamos ressignificar esse enquadramento. Por isso, falar em riqueza é falar em condições elementares para uma vida digna. Sendo mais concreto: riqueza é o acesso à terra, mas também acesso à tributação justa, à infraestrutura necessária, como saneamento ambiental e sanitário, acesso à educação básica e formação profissional, acesso à habitação e à mobilidade humana e urbana, às garantias de seguridade social e, principalmente, à ecologia equilibrada. Enfim, ser possível acessar a cidadania significa acessar a cidade enquanto direito humano universal, segundo o pensamento de Henri Lefebvre.

Há quem pense que isso somente seja possível com o crescimento econômico. Esse tipo de pensamento está preso à velha questão de “fazer o bolo crescer para depois distribuir”. Ora, as estatísticas oficiais apontam que o Brasil foi o terceiro país que mais cresceu no século XX, ficando atrás somente do Japão e da Alemanha. Recentemente, chegamos a figurar entre as seis maiores economias do mundo, mas ainda assim nenhum passo foi dado no sentido da distribuição da riqueza. Portanto, só é possível falar no fim da pobreza se, de fato, criamos os canais necessários para distribuir a renda, mas principalmente a riqueza. Fora isso, apenas estaremos a nos conformar com a administração da pobreza.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Rafael dos Santos da Silva – Eu gostaria de voltar à última pergunta para fechar meu pensamento. É preciso conceber o caldo cultural em que somos formados. Como distribuir riqueza numa cultura onde falar em Reforma Agrária se assemelha a um insulto? De verdade, temos uma limitação cultural. Não se trata de reproduzir aqui “o complexo de vira-lata”, tão bem questionado por Jessé Souza, mas compreender as raízes daquilo que sustenta uma certa leviandade de nossas elites. Uso o termo “elite” no plural por estar convencido de que no Brasil coexistem diversas elites. As mais famosas são as elites econômicas e as intelectuais. Mas há ainda um elemento comum a potencializar essas forças. É o que chamo de “elite da fé”. Não se trata apenas de uma terceira elite, mas de uma espécie de eixo intercessor a unir a forma de pensar e a forma de concentrar riqueza.

Nesse particular, o Brasil, já faz muito tempo, é um país elitizado. Não foi essa elite que se organizou em marcha pela família e deu sustentação ao golpe de 1964? Não podemos pensar o Brasil sem o componente da religião e, nesse contexto, na sua dimensão pentecostal. Isso vale para as duas maiores tradições religiosas (os católicos carismáticos e os evangélicos neopentecostais).

Mas efetivamente, como esse elemento ganha a capacidade de influenciar a sociedade? Em primeiro lugar, por meio do conservadorismo que regressa à dimensão colonial, aceitando a dependência diante da metrópole. Muitas vezes esse processo é azeitado pela ética da prosperidade. Em segundo lugar, está a questão do patriarcado, tendo no gênero masculino a fonte de suas principais pautas políticas. Esse caldo social vai ser determinante para compor o quadro do capitalismo que, conforme já assinalei, vai incorporar a produção dos elementos da pobreza.

Nesse cenário, parece-me inocente falar em inclusão. Estamos levando a sério o enfrentamento da pobreza ao buscar, na lógica da inclusão, a entrada dos “excluídos”, num modelo que se retroalimenta da fome e da miséria? Efetivamente, precisamos refletir sobre essas grandes questões que estão na base da dinâmica social da pobreza.

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