"O fato é que a violência tem se tornado hoje a principal armadilha para a perpetuação da pobreza, em especial nos centros urbanos".
O artigo é de Rafael dos Santos da Silva, professor na Universidade Federal do Ceará – UFC, mestre em Administração Pública e doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra.
Quando Hades sequestrou Perséfone a bela deusa da agricultura, talvez não quisesse apenas desposa-la, mas submeter toda a sua rica produção de alimentos à sua vontade. Nesse instante estava criada a pobreza revelada pelo submundo da violência. Todavia, ao mesmo tempo se estabelecia também a tragédia da violência estigmatizada no seu rosto principal: a pobreza. Na tradição da língua latina, a palavra violência significa empregar a força externa de tal modo a mudar o curso de algo. É por essência, uma ação que altera drasticamente o equilíbrio natural das coisas. Assim, o curso de um rio é violentado quando suas margens são represadas. O indivíduo é violado quando sua fome não é saciada. A ecologia é violentada quando seu equilíbrio é ameaçado. Enfim, a vida é empobrecida quando a violência se impõe como método.
Em tempo, abandonando a mitologia, e entrando na civilização, portanto na vida concreta, a humanidade encontrou um instrumento eficiente para promover a violência. Seu nome é pobreza. O submundo da pobreza não é algo abstrato, pelo contrário é um estado de profundo desequilíbrio entre a riqueza materialmente produzida e a concentração socialmente estabelecida. A isso chamamos de desigualdade que nada mais pode significar que uma exploração da realidade concreta e estrutural fácil de se ver, porém difícil de definir.
Importa dizer que no passado a pobreza foi marcada pela violência à dignidade das pessoas. No futuro, se não evitada, a pobreza irá corroer toda humanidade pois sua principal função consiste em violar a esperança. Por isso no presente ela é a fonte originaria de toda espécie de violência por sequestrar a dignidade do tecido social. Como resultado de um processo político decisório, a pobreza se impõe a milhares de homens e mulheres espalhados pelo globo. Estima-se que 85% da pobreza global é provocada pelo mau uso da economia. O restante fica por conta das mudanças climáticas e guerras. Como resultado, no seu último relatório publicado em 2022, nomeado “novos perfis da pobreza” as Nações Unidas estimam haver pelo menos 1,2 bilhão de pessoas afetados por algum tipo de pobreza em 111 países. Metade pode estar exposta a pobreza extrema que no Brasil alcança a 62,2 milhões são brasileiros. Se fossemos considerar os gastos com guerras veríamos que em 2022 somente na Europa foram gastos U$ 480 bilhão. O CEO do Programa Mundial de Alimentação David Beasley em claro conflito com o multibilionário Elon Musk estimou que apenas U$ 6,6 bilhões seriam necessários para criar programas concretos que poderiam pôr o fim a fome no mundo. Aqui vale lembrar a voz de Amartya Sen para quem a solução da pobreza está na exata “diferença entre o que fazemos e aquilo que efetivamente poderíamos fazer.”
Como já dito, a pobreza é um fenômeno fácil de reconhecer. Pois o rosto do indivíduo que tem “pouco” é inconfundível. Paradoxalmente, a pobreza é um fenômeno absolutamente difícil de combater. Por que? Porque traz em si uma profunda mutação que varia segundo as condições geográficas, culturais e até sob aspectos relacionados ao gênero.
Ao contrário do que se espera, eu defendo que a pobreza, do ponto de vista geográfico, vai atingir a humanidade de forma mais intensa em locais onde a economia é muito avançada. Estar sob a condição de pobreza nesta realidade pode significar a fronteira entre a vida e a morte. Por isso fundamentei na tese em sociologia da pobreza que defendi na Universidade de Coimbra em Portugal haver uma certa Dinâmica Social da Pobreza. Em outras palavras, assumo que quanto maior for o desenvolvimento econômico de um território, tanto mais acentuada será a pobreza. Antes que o leitor possa me achar contraditório, explico que ser pobre em país com elevados índices de desenvolvimento econômico pode significar problemas acentuados em razão das elevadas taxas de concentração de renda que bem caracterizam esse tipo de economia.
Por outro lado, está hipótese não elimina a ideia contida nos fatos de que em países em desenvolvimento – nova nomenclatura para identificar os países subdesenvolvidos – a pobreza material é de tal ordem relevante que impacta na grande maioria de suas populações. Assim, temos duas realidades: de um lado, nos países ricos a pobreza se impõe de forma intensamente violenta ao sufocar o cotidiano das pessoas. Do outro, em países periféricos a pobreza é a própria violência a decretar a sentença de morte que sequestra a esperança no futuro e torna agônica a vida presente.
É agônica a vida do pobre porque a violência lhe imprime uma dinâmica cruel com varias armadilhas, ou como bem sustentam Esther Duflo e Abhijit Banerjee, em “a economia dos pobres – uma nova visão sobre a desigualdade - “há uma armadilha na pobreza.” Está armadilha na percepção dos autores - laureado com o Nobel em economia – se materializa de forma violenta na construção de uma economia miserável baseada na ganancia e no lucro fácil. Se confirma onde há considerável ausência de um sistema educacional e um precário acesso a saúde que impedem aos pobres acessar uma renda digna.
Aqui uma pergunta se estabelece: é melhor dar peixe ao homem ou devemos lhe ensinar a pescar? Ou seja, adianta dar comida e distribuir renda aos pobres? Em primeiro lugar, é preciso reposicionar está indagação para depois contextualiza-la. Ao posiciona-la, é justo dizer que seu autor não é Jesus Cristo, como faz vender o imaginário popular. Não se sabe ao certo sua origem, mas o fato é que ela não provem do livro sagrado dos cristãos. Mas, além disso convém contextualiza-la, ao imaginar que diante da profunda crise ecológica em que estamos envolvidos outra questão se coloca: Como ensinar a pescar se o rio e os peixes estão poluídos, a barca furada, e as redes rasgadas? Como, ensinar a pescar se a função trabalho sofre profundas transformações sociais quase sempre submetida as políticas neoliberais que teimam em rasgar as garantias mínimas à cidadania? Ou seja, a questão é outra.
Fica cada vez mais evidente para nós sociólogos que a culpa não é da pessoa empobrecida, mas do sistema que a empobrece. Talvez, soe bastante hipócrita a um capitalista dizer que o pobre não quer trabalhar quando o centro do problema está exatamente na sua ganancia de acumular. Por isso, bem dizia Herbert de Sousa – o Betinho “quem tem fome tem pressa. Razão pela qual para enfrentar a pobreza, de modo especial no seu ciclo da fome, faz-se necessário distribuir alimento a faminto. É uma forma de libertar Perséfone das mãos de Hades.
Mas, a tarefa é mais ampla...Por que? Porque a exclusão social conduz o pobre ao ciclo da fome, que volta a cair na armadilha do trabalho precarizado ou quando não no submundo do trágico mediado pela violência ocorrida quase na maioria das vezes nas zonas urbanas das grandes cidades. Nesses espaços quase sempre gentrificados, revelam os dados da violência no Brasil que são aterrorizantes. Os números disponíveis no site do IPEA estima que em 30 anos (1989 – 2019) a vida foi abreviada para 776.709 jovens com faixa etária entre 15 e 29 anos. 31% destes estavam no Nordeste do país. Mais quando o recorde é arma de fogo, o mesmo relatório aponta que a pobreza da violência alcançou quase 1 milhão de pessoas, precisamente 964.238 mil pessoas perderam a vida. Segundo levantamento das secretarias de segurança pública dos estados, as taxas brasileiras de homicídios intencionais faz uma década que estagnou em níveis médios de 47 por cem mil. Inaceitáveis quando comparados com oito por cem mil dos países ricos.
Como se não bastasse, o custo com a violência é elevadíssimo. O trabalho assinado por Denise Thomé e Christian Vonbun é pedagógico para qualquer analista da área. Nas 46 páginas do texto “Análise do Impacto dos Gastos Públicos com Transferência de Renda e Criminalidade” as autoras irão sustentar que o custo da violência no Brasil alcançou em 2013, os patamares insuportáveis de 5,4% do Produto Interno Bruno – PIB. Na sequência, elas irão recorrer a mais recente literatura internacional para expor os principais fatores a potencializar a violência, em especial nas áreas urbanas. Entre os principais argumentos estão a ausência de planejamento urbano, o descontrole sobre o aumento da pobreza e o processo migratório entre a zona rural e urbana.
Importa lembrar que não há hierarquia entre essas variáveis, mas uma dinâmica intensa e perversa a se entrelaçar de modo especial na famigerada guerra às drogas. Está guerra foi responsável por gerar grande parte da violência como a conhecemos. O fracasso colossal desta iniciativa levada a cabo no governo Richard Nixon resulta na morte diária de mais de 150 pessoas no Brasil. Outro indicador perturbador é a massa encarcerada que fez nesse período o Brasil superar o gigante e repressor Estado Russo de Vladimir Putin ao jogar no “lixo” do cárcere mais de 200 mil pessoas somente em função da guerra às drogas.
O excesso de encarceramento não evitou o Brasil se expor a uma verdadeira guerra urbana. Ora o disparo sai da arma do Estado, ora da arma da milícia, quando não da arma do traficante. O fato é que a violência tem se tornado hoje a principal armadilha para a perpetuação da pobreza, em especial nos centros urbanos.
Há saídas? Sim! Segundo o mesmo trabalho, a grande aposta deve ocorre num duplo sentido da valorização da educação e no ciclo virtuoso da economia. Ou seja, enfrentar a violência tem correlação direta com a eliminação da pobreza.
Não sem razão as menores taxas de violência estão em países com elevadas taxas educacionais e níveis importantes de distribuição de renda. O relatório do escritório para drogas e crimes das Nações Unidas UNODC é sugestivo por correlacionar altos índices de desenvolvimento humano com níveis baixos de violência. A exceção fica por conta dos EUA, talvez por sua incapacidade de controlar o acesso as armas, mas também pelos altos níveis de desigualdade na renda muitas vezes relegadas para debaixo do tapete da análise mais séria.
Por tudo, quando Hades - o deus do submundo - sequestrou a deusa da agricultura usando a violência, gerou deste ato a pobreza. Como resultado tal ação teve a capacidade de tragar os mais pobres, vitimas que são da violenta desigualdade, da brutal exclusão social e da covardia da fome. Por isso, a pobreza e a violência guardam em si forte relação. Enquanto uma atinge a outra esgarça o tecido social. A primeira age feito armadilha enquanto a segunda se estabelece como método. O fato é que ambas se impõem como constante risco a massa vulnerabilizada pelo mau uso da economia.
Por isso, caros leitores, sustentamos haver violência na pobreza e dialeticamente pobreza na violência.