Devoção popular em Aparecida e Guadalupe: experiências de reconexão da fé em nossos contextos. Entrevista especial com Ana Maria de Sousa

Pesquisadora indica como ambas as manifestações marianas revelam modos de viver a religiosidade em conexão direta com o tempo, o espaço e a cultura em que se está inserido

Por: João Vitor Santos | 13 Outubro 2022

 

“Além de ser a adolescente judia escolhida por Deus para ser a mãe de seu filho Jesus Cristo, ela desempenha um importante papel na missão evangelizadora.” É assim que a pesquisadora Ana Maria de Sousa resume a importância de Maria para o cristianismo, desde os primitivos encontros após da Ressurreição. Com essa sua percepção, a Virgem assume não só o papel de gestação e cuidado com o Filho de Deus, mas também de levar adiante essa experiência que transforma a humanidade. “O fato de Maria ser pouco explorada na Bíblia Sagrada ou não existir documentos sobre ela também é relativo à sociedade patriarcal de seu tempo. Encontramos diversas passagens nos protoevangelhos que a descrevem como a mãe-guia-mestre e intercessora dos apóstolos, que foram pregar o Evangelho de Jesus Cristo a todas as criaturas, mas sempre voltavam para consultar e serem direcionados por ela”, detalha.

 

No entanto, nesse 12 de outubro, Ana volta seu olhar para duas manifestações marianas muito particulares: Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina, ambas celebradas hoje. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a pesquisadora observa o processo de hibridização que faz dessas manifestações um modo de viver a fé na mãe de Cristo, atravessado pelas experiências das culturas e crises locais. “O fator híbrido surge mesmo numa situação opressora de sofrimento. Na Nova Espanha e Brasil, as iconografias de Guadalupe, sob o manto jade e a santinha preta Aparecida, se consolidaram como as pontes de conexão entre duas beiradas inacessíveis ou duas linhas paralelas que se juntam, garantindo a restauração e a mestiçagem das culturas”, reitera.

 

Por isso, chama atenção como, segundo a tradição, Nossa Senhora sempre emerge com suas aparições em momentos de ruína, crise, guerra, desesperança. “Assim, podemos associar essa afirmação à crueldade da escravatura pelos portugueses, coadunando com um dos primeiros milagres dessa santa negra”. E, no contexto de Guadalupe, a imagem aparece ao jovem indígena no momento em que seu povo e sua cultura estão sendo destroçados. “Apesar do autoritarismo do homem branco, durante a ocupação das terras mexicanas as representações simbólicas serviram como pontes de intercâmbio e de interesses compactuados no estabelecimento da intersecção de dois polos culturais conflitantes”, completa.

 

O interessante é que a pesquisadora também observa como, guardadas as proporções, continuamos a experenciar a fé conectada a nossa realidade. “A devoção de outrora se disseminou através da cultura oral, e temos os relampejos atuais com a poesia e imagens do universo simbólico, que se transfiguram tanto no sentido religioso quanto no profano. Na internet”, diz a entrevistada, “constatamos uma diversidade de devoção: Jesus é retratado como surfista, Nossa Senhora, com seu lindo manto azul, surge pintada nas paredes, ruelas, ladeiras, portas de comércio das comunidades carentes, em bairros sofisticados, nas boleias e traseiras dos caminhões, pelas estradas e outros locais”, analisa.

 

Assim, mesmo em tempo de guerra, crises e desesperanças como o que vivemos, Ana ainda vê, na religiosidade popular e na devoção a inúmeras manifestações marianas, chaves importantes que nos encorajam e animam a enfrentar nosso tempo. “Em Medjugorje, há mais de 40 anos ela se deixa ver por quatro videntes, com o título de Nossa Senhora da Paz. Ela traz mensagens proféticas e tem deixado sinais de luz no céu da pequena cidade da Bósnia-Herzegovina. O modelo aparicionista em Medjugorje, ainda não reconhecido oficialmente pela Igreja Católica, resgatou o catolicismo no país e reafirmou a tradição mariana”, observa.

 

Ana Maria de Sousa
Foto: Arquivo pessoal

 

Ana Maria de Sousa realiza pós-doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, com pesquisa sobre a vida de Nossa Senhora nas antigas representações literárias. Doutora em Ciência da Religião, é também mestre em Literatura Brasileira, ambas titulações pela PUC-SP. Possui bacharelado e licenciatura em Letras (Espanhol), pela Universidade de São Paulo – USP e graduação em Comunicação Social, pelas Faculdades Integradas Alcântara Machado – FIAM, de São Paulo. Sua pesquisa de doutorado originou a tese intitulada: “No manto de Nossa Senhora de Guadalupe: a hibridização das culturas espanhola e asteca do século XVI e as antigas manifestações marianas”.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – A senhora tem pesquisado antigas representações marianas literárias. Que Maria tem apreendido desses estudos?

 

Ana Maria de Sousa – Meu doutorado foi sobre o manto da Guadalupe mexicana e, desde então, tenho pesquisado cientificamente a mariologia. A cada dia uma nova informação é checada e novos conhecimentos estão sendo processados. De antemão, posso adiantar que, muito além de ser a adolescente judia escolhida por Deus para ser a mãe de seu filho Jesus Cristo, ela desempenha um importante papel na missão evangelizadora, desde os primeiros séculos, como a principal exponente da perpetuação das palavras de Jesus Cristo e a guia Mãe dos apóstolos.

 

Nessa chave, podemos classificá-la como arrojada por se situar na contramão das leis patriarcais da época, que legava o feminino em segundo plano às pessoas do sexo, impedindo-as de ter qualquer voz na sociedade. A arqueologia ratifica essa distinção de Maria, fundamentando-nos com descobertas de imagens rupestres nas paredes de várias catacumbas de Roma e objetos antigos relativos a ela. Foi constatado que esse repertório iconológico são rastros deixados pelos primeiros cristãos, que sentiam necessidade de expressar sua devoção mariana incógnita, mesmo sofrendo ameaças de fúria e represálias dos imperadores romanos.

 

Para explicitar a grandiosidade dessa mulher, cunhamos a expressão “Nossa Senhoria Maria”, sem vírgula, como uma nova forma de denominar a Mãe de Jesus Cristo. Enfim, ela é uma das protagonistas da fenomenologia da fé desde os primórdios do cristianismo.

 

 

IHU – Como compreender a representação de Nossa Senhora de Guadalupe? Em que medida essa devoção mariana se constitui a partir da fusão das culturas asteca e espanhola no Novo Mundo?

 

Ana Maria de Sousa – Para pensar na hibridização entre astecas e espanhóis, que ocorreu no século XVI no México, precisamos considerar a mantologia de Nossa Senhora de Guadalupe. Esse termo foi criado por nós para explanar os fatores simbólicos que remetem Guadalupe como a responsável pelo intercambiamento das culturas asteca (náuatles) e espanhola. O seu manto turquesa, na dimensão estética, dialoga com a própria maneira de estar no mundo; representa o ponto focal imagético metafórico.

 

Quadro com a representação de Nossa Senhora de Guadalupe
Foto: Acervo Ana Maria Sousa

 

O Novo Mundo a ser explorado pela caravana colonizadora de Hernán Cortés vivia entre peculiaridades, mitos e lendas. Partindo da travessia fantasiosa dos navegadores pelo Oceano Atlântico, que sonhavam encontrar seres fantásticos na nova terra, mas na chegada foram surpreendidos com a diversidade de deuses, rituais macabros, costumes exóticos, numa cultura divergente a ser explorada. Uma das deidades adoradas pelos astecas era a mãe Tonantzin, cujo templo ficava no Monte Tepeyac, na Cidade do México.

 

 

Através das crônicas, principalmente da missão evangelizadora, formada, entre outros, pelo frei Bernardino Sahagún, que publicou testemunhos sobre os excêntricos costumes dos habitantes da Nova Espanha, auxiliou-nos a enfocar o imaginário das divindades, tradições com rituais de sacrifícios e como se deu a expansão da fé católica em relação à imagem da Mãe de Jesus. Esse escopo nos subsidiou pela história, a fim de estender a mantologia da Virgem de Guadalupe no contexto híbrido.

 

 

Aquém dos terríveis sacrifícios de sangue aos deuses, descobrimos que os habitantes da Nova Espanha tinham como relíquia do reino o uso do tom turquesa da pedra jade, excepcionalmente pela nobreza asteca para diferenciar das outras camadas da sociedade. Ao se depararem com a descrição do indígena Juan Diego sobre a tonalidade do manto de Guadalupe – pesquisamos na história das antigas aparições marianas e comprovamos que a descrição é única e não existe precedente ou similar –, os náuatles deduziram que Guadalupe era uma nobre enviada do céu. Apesar do autoritarismo do homem branco, durante a ocupação das terras mexicanas as representações simbólicas serviram como pontes de intercâmbio e de interesses compactuados no estabelecimento da intersecção de dois polos culturais conflitantes.

 

 

Guadalupe se estabeleceu como “zona de conforto” desse fundamento.

 

IHU – Podemos pensar na imagem de Nossa Senhora Aparecida também como um processo de hibridização a partir de culturas originárias e colonizadoras?

 

Ana Maria de Sousa – Em 1717, três pescadores encontraram a imagem de Nossa Senhora Aparecida nas águas turvas do Rio Paraíba do Sul. Historicamente, coincide com a época em que os indígenas continuavam sendo massacrados, obrigados a fazer serviços forçados. Os navios negreiros ainda chegavam da África, com os escravos mutilados em sua essência. Em terras brasileiras, tanto os antigos moradores indígenas como os escravos tinham que se submeter às atrocidades do colonizador português.

 

 

A tradição aponta que Nossa Senhora sempre se manifesta num momento de ruína, crise, guerra, penúria, falta de esperança, depressão e outros fatores. Assim, podemos associar essa afirmação à crueldade da escravatura pelos portugueses coadunando com um dos primeiros milagres dessa santa negra. Consta que o escravo Zacarias era frequentemente espancado pelo capataz, por esse motivo fugiu da fazenda onde morava. Capturado, foi acorrentado e arrastado pelo feitor. Quando passavam em frente à capelinha no Morro dos Coqueiros, o prisioneiro pediu para parar e rezar; as correntes caíram de suas mãos. De volta à senzala, o velho escravo, enfim, recebeu a alforria.

 

O hibridismo ocorre entre duas culturas díspares. Podemos entender que, na epifania do imaginário brasileiro, Aparecida se associa à esperança, conforto e encorajamento para o povo enfraquecido e desanimado pelas mãos da brutalidade do colonizador de Portugal. A pequena escultura de Aparecida foi ganhando a afeição do povo brasileiro e a história de seus inúmeros milagres foi se espalhando até chegar à corte portuguesa.

 

 

Reprodução da capela primitiva dedicada a Nossa Senhora Aparecida
Imagem: Santuário de Aparecida

 

Impressionado com a mitologia aparecidina, em 19 de agosto, cerca de 17 dias antes de proclamar a Independência do Brasil, D. Pedro I foi rezar na Igreja de Aparecida. Consta que o monarca e sua comitiva percorriam a cavalo a região do Vale do Paraíba. Em Aparecida, o imperador verificou os milagres atribuídos à santa, como as correntes do escravo Zacarias. A pressão política e a sua fé na santa preta podem ter sido alguns dos fatores que levaram o monarca a refletir sobre romper definitivamente com a colonialidade.

 

Segundo reinado

 

No segundo Reinado, comovido pela devoção de seu pai e do povo em relação à imagem milagrosa de Nossa Senhora Aparecida – velas que se apagavam e acendiam sozinhas, corrente aberta do escravo, a menina cega que voltou a enxergar e outros –, Dom Pedro II, acompanhado de sua esposa, a imperatriz Teresa Cristina, oraram em 1843 na capela de Aparecida e retornaram em 1865.

 

Herdeira do trono brasileiro e abolicionista, a princesa Isabel compareceu à festa do dia da Imaculada Conceição, em Aparecida, no dia 8 de dezembro de 1868, na Basílica Velha, ao lado do marido, o Conde d’Eu, com quem estava casada há dez anos, sem filhos. Ela doou à imagem uma coroa de ouro 24 quilates, pesando 300 gramas de ouro, com 24 diamantes maiores e 16 menores e um novo manto azul escuro, forrado com vermelho granada, cujas cores representavam o império de D. João VI.

 

Acervo Ana Maria de Sousa
Imagem: Reprodução A12

 

Naquela ocasião, a soberana pediu a Aparecida para gerar um herdeiro para assumir o trono. Em 1855, a princesa Isabel retornou à cidade de Aparecida para agradecer a Nossa Senhora Aparecida, acompanhada do esposo Conde d’Eu e seus três filhos: os príncipes Pedro, Luís e Antônio, para agradecer o milagre de ser mãe. Em 13 de maio de 1888, ela mesma, a princesa Isabel, assinou a Lei Áurea da Abolição da Escravatura.

 

Santidade preta

 

A imagem de Nossa Senhora Aparecida mobilizou reis, princesa, conde, papas, presidentes em torno da fenomenologia da fé, mas sobretudo desde a descoberta da imagem. Pessoas comuns, imbuídas de um gigantesco amor, constantemente pedem e recebem sua intercessão. Abaixo relatamos alguns testemunhos. A preta Aparecida provocou misturas e ainda hoje desperta fascínio.

 

Em relação à questão da mediação de Aparecida, defendemos que ela se insere na categoria de santidade preta, querida por milhões de devotos. Sob seu manto, azul celeste noturno, aglomeram-se o desalento de brasileiros e gente do mundo inteiro, que clamam por cura, penam pelas desigualdades sociais, mas, esperançosos, curvam-se diante da imagem, oram, confiam, entregam e cantam emocionados pedindo a sua benção: “Ó mãe querida, Nossa Senhora Aparecida”.

 

IHU – Que relações e dissociações podem existir entre a Virgem de Guadalupe e Nossa Senhora Aparecida? Como cada uma dessas representações é constituída pela Igreja, pelos Estados e entre os fiéis?

 

Ana Maria de Sousa – O depositário devocional entre a santa mexicana e a brasileira é muito semelhante, pois traz em seu bojo a figura única da Mãe de Jesus Cristo. As dissociações dizem respeito à mitologia de ambas e aos festejos no Dia da Padroeira.

 

Guadalupe foi a primeira aparição de Nossa Senhora na América Latina, em 1531. O imaginário popular mexicano aponta que o quadro de Guadalupe surgiu da narrativa de um homem simples, vindo da descendência náuatle, de nome Juan Diego, que teria passado por uma experiência mística envolvendo a Senhora do Céu, no Monte Tepeyac, no México, o mesmo local onde aconteciam rituais de danças e sacrifícios humanos e de animais como oferendas a Tonantzin, a deusa pagã.

 

A santa indígena

 

Resumidamente, a história é contada assim: Nossa Senhora de Guadalupe teria aparecido e pedido a Juan Diego para ir até o monastério e solicitar ao bispo a construção de uma capela em seu nome, naquele local. O indígena levou o recado, mas o religioso não acreditou. Voltou várias vezes à abadia para insistir no intento, até que o bispo pediu uma prova. Juan Diego levou a exigência até Nossa Senhora Maria, que combinou um encontro no dia seguinte para enviar a comprovação. Na manhã posterior, em vez de Juan Diego buscar a evidência com a santa, o índio tratou de atender ao pedido de seu tio Bernardino, moribundo, que lhe pediu para buscar um padre no povoado para lhe conceder a extrema unção. O indígena mudou o caminho para não topar com a Senhora do Céu. Então, ela foi ao seu encontro, afirmando que Bernardino tinha alcançado a bênção da cura e indicou a Juan Diego que subisse ao topo do morro, pois lá encontraria algo para levar ao religioso. Juan Diego teria se deparado com rosas raras, muito perfumadas, que não poderiam florir ali, naquela estação do ano, pois era inverno. Ele as colheu, colocou em sua “tilma” (poncho ou manto) e Nossa Senhora Maria as benzeu.

 

Diante do bispo, ao abrir a vestimenta, as flores teriam caído ao chão e imediatamente se afixaram no tecido da “tilma” formando a imagem de Nossa Senhora. O bispo, de nome Zumárraga, teria se ajoelhado e pedido perdão. Em seguida, o bispo Zumárraga quis averiguar o local onde exatamente a Senhora do Céu teria “aparecido” ao indígena. Ao chegar ao oriente do Monte Tepeyac, o religioso teria exclamado a palavra em latim “clavijero”, que significa realidade, imediatamente uma fonte, com água ferruginosa e carbônica, teria brotado milagrosamente. Depois disso, Zumárraga foi verificar o estado de saúde do tio Bernardino, de Juan Diego, que também teria recebido a visita da Senhora do Céu e se curado.

 

O indígena Juan Diego apresenta a imagem de Guadalupe
em seu poncho às autoridades espanholas
Foto: acervo Ana Maria Sousa

 

A iconografia de Guadalupe se assemelha ao perfil de uma índia do México quinhentista: pele morena, cabelos escuros, o laço na cintura, as mãos postas, que remetiam a uma grávida náuatle, mas principalmente o manto jade que, como afirmamos, continha relevância aristocrática, aliado aos raios de sol, que denotava uma das maiores deidades para os indígenas. A imagem metafórica de Guadalupe possibilitou que a simbologia dos astecas fosse replicada à iconografia. Com isso, a maioria dos indígenas descartou a idolatria ao panteão de deuses, eliminando as oferendas de sacrifícios humanos e de animais, adotando Guadalupe como mãe.

 

Em nossa análise empírica, estivemos na Cidade do México, na semana que antecede os festejos do Dia da Padroeira (12 de dezembro). Logo na entrada da Basílica da Virgem de Guadalupe, no Monte Tepeyac, verificamos inúmeras manifestações artísticas dos descendentes dos indígenas, com seus cantos, bailados, incensos, oferendas, tambores, vestes típicas, que prestam homenagem à santa-índia. Assim, esses herdeiros da cultura náuatle ainda dançam paramentados, nesse século XXI, transportando os ecos da sua cultura antiga, que resistem à barreira do tempo. Nestas expressões artísticas, revivem e perpetuam suas antigas tradições. Ao mesmo tempo, eles deixam acesa a chama de ensinamentos e aprendizados para os jovens dessa geração passarem adiante.

 

Imagem do escravizado

 

Já sobre Aparecida, ela se insere no século XVIII, em plena colonização do Brasil: os pescadores Domingos Garcia, João Alves e Filipe Pedroso (possivelmente escravos) tinham ido à procura de peixes no Rio Paraíba do Sul para alimentar a comitiva do governador geral, o conde de Assumar, que seria recebido num banquete para tratar da junção das capitanias de Minas Gerais e São Paulo. Os três homens não conseguiam fisgar nada, mas teriam içado partes desconexas da imagem, em argila terracota, das águas turvas do rio Paraíba do Sul. Filipe Pedroso conseguiu montar, pois todas as peças se encaixavam perfeitamente.

 

A partir daí, foram atribuídos à santa vários milagres, a começar pela pesca bem-sucedida dos três homens, que retornaram ao rio. Inicialmente, a imagem ostentava cordões de ouro no pescoço. Em 1770, aparece uma citação sobre estes ornamentos e os registros da época indicam que os cordões de Aparecida foram vendidos para ajudar na reforma da capela. A estátua de mulher preta remetia e se identificava com os escravos e um detalhe importante: numa foto antiga, essa santa aparece de cabelos curtos. Tal observação também alude aos escravos, que eram obrigados a usar as madeixas muito curtas, naquela época, para diferenciar de seus donos. A imagem original tem 36 centímetros de altura e 2,5 quilos.

 

À direita, imagem primitiva de Aparecida, sem manto, revela os cabelos curtos
Montagem: acervo Santuário Aparecida

 

Na semana aparecidina, a Rodovia Dutra é invadida por milhões de romeiros que percorrem o acostamento a pé ou em veículos diversos, vindos de diferentes cidades para chegar a tempo na Basílica de Aparecida e receber uma bênção especial, pessoalmente da Mãe do Céu.

 

 

Santidade e nova configuração identitária

 

Assim, após o conflito traumático da conquista do México e durante a colonização do Brasil, o caldeamento social ofereceu possibilidades de analisar os atores sociais, envolvidos numa nova configuração identitária. Guadalupe representa o elo de aproximação hispânico-náuatle e se converteu no símbolo da mexicanidade. A estátua preta de Aparecida tornou-se a representação maior de santidade, venerada pela maioria dos brasileiros. Ambas resultam um diálogo constante entre o sistema imagético e a cultura de ambos os países.

 

Enfim, retomando os acontecimentos pós-conquista, aplicamos a noção de hibridismo como se estivéssemos diante um rio turbulento. De um lado da margem, estão os indígenas astecas e brasileiros e os escravos africanos tristes, em luto por facejarem um conflito doloroso, desanimados pela perda do controle. Tiveram seu espaço ocupado pelo homem branco, de outra cultura e isso acarretou num processo de melancolia, recolhimento e trauma.

 

Na outra beira, havia o homem branco, autoritário, desbravador, cujo sangue dos astecas e as chicotadas nos brasileiros e imigrantes ainda escorriam das mãos, urgindo lidar com sua total incapacidade de curar a ferida da violência e apatia dos indígenas e negros. Naquele momento do século XVI, por volta de 1531, no México as armas estavam ao chão, embora não se escutassem mais o som de tiros ou o zunir de flechas, ou se visse o sangue coalhado pelo caminho, resquícios da guerra entre conquistador e indígenas, as águas turvas persistiam. No Brasil, no século XVII, em 1717, castigos ferozes e a dor da perda de seu berço de origem persistiam. O fator híbrido surge mesmo numa situação opressora de sofrimento. Na Nova Espanha e Brasil, as iconografias de Guadalupe, sob o manto jade e a santinha preta Aparecida, se consolidaram como as pontes de conexão entre duas beiradas inacessíveis ou duas linhas paralelas que se juntam, garantindo a restauração e a mestiçagem das culturas.

 

 

IHU – De uma outra forma, podemos ler o caso da Virgem de Guadalupe e o de Aparecida como exemplos de inculturação, nos moldes que fala e defende o Papa Francisco?

 

Ana Maria de Sousa – Temos que entender a Virgem de Guadalupe e Aparecida como uma única santa, em meio à multiplicidade de denominações. Nossa Senhora Maria se manifestou com nomes diferentes, por exemplo, Nossa Senhora do Pilar, da Esperança (Ó), dos Remédios, da Assunção, do Rosário, Carmem, Aparecida, Fátima, Lourdes, Montserrat, que se fundem em apenas uma “Maria”, mãe de Deus, de Jesus e todos os povos. Ela possui mais de 2.500 títulos, reconhecidos pelo Vaticano, e cerca de cinco mil designações relativas aos lugares onde supostamente apareceu ou ocorreu algum acontecimento especial.

 

Surge sempre a pergunta: Quem é essa mulher? Acreditamos que Ela é a corredentora, a esfinge canalizadora de oração, atribuída pelo imaginário popular como possuidora do poder sagrado de intercessão e cura, através de “milagres”. É a mulher escolhida por Deus para conceber Jesus Cristo. Maria está relacionada à designação de Mãe de Deus e a Mãe de Todos.

 

A nossa pesquisa centra-se nas aparições e milagres, e na mito-poética de Nossa Senhora Maria, do início do cristianismo à contemporaneidade. Estudamos a Virgem Maria também na chave das obras de arte, onde aplicamos o conceito da Via Pulchritudinis como o caminho sinodal da beleza para se chegar a Deus. Tal conceitualização foi trabalhada pelos papas Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco, que conceberam os quadros de artistas renomados da História da Arte Sacra-Mariana como um dos caminhos para se atingir o divino.

 

O Papa Francisco tem incentivado o povo a estar mais próximo desse acervo mariológico, então trabalhamos com as pinturas marianas de Leonardo da Vinci, Fra Angelico, Giotto, Simone Martini, Sandro Botticelli, Veronesse, Piero della Francesca, Tiziano, Rafael e outros pela Via Pulchritudinis, na contemplação da beleza das obras de arte de Nossa Senhora Maria.

 

IHU – Que imagem mariana é constituída na literatura brasileira? Como podemos interpretar a presença de Maria em literatura não somente religiosa?

 

Ana Maria de Sousa – Nessa pesquisa de pós-doutorado, pretendemos enfocar a vida de Nossa Senhora Maria desde o início do cristianismo e estamos investigando a própria Bíblia Sagrada, além de autores da Patrística, Idade Média e outros, como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, Santo Inácio de Antioquia, São Justino, Orígenes de Alexandria, Afonso de Ligório, o rei espanhol Alfonso X, conhecido como O Sabio, que nos deixaram poemas, sermões e crônicas belíssimas sobre ela. Pretendemos ilustrar também com poemas do repertório brasileiro, como a de Carlos Drummond de Andrade e demais escritores, mas ainda estamos num processo muito embrionário.

 

Para ilustrar, vou deixar um dos versos do poema Nican Mopohua, considerado como documento do século XVI, que autentifica a aparição de Guadalupe a Juan Diego:

 

“[...] O seu vestido reluzia como o brilho do sol. Ela estava de pé sobre uma pedra e o contorno em que ela se encontrava dentro lançava raios. O esplendor era como pedras preciosas, como um círculo irradiando luz […]. A terra brilhava como se fossem os raios do arco-íris refletindo sobre a neve. E as plantas e ervas que costumam dar ali pareciam esmeraldas.” (Nican Mopohua – tradução da autora)

 

 

IHU – Como a senhora analisa a devoção mariana a partir da religiosidade popular?

 

Ana Maria de Sousa – Nossa Senhora Maria é um símbolo arrebatador de e dinamizador de narrativas extraordinárias, que caiu no gosto popular e atrai inúmeros fiéis. Os diversos santuários espalhados pelo Brasil e no mundo atestam sua grandiosidade e oponência. A narrativa de Guadalupe, no México – sempre faço questão de identificar o país, pois existe uma santa de mesmo nome na Espanha –, modificou a essência do pequeno povoado do Tepeyac e delineou um novo rosto para o local.

 

Atualmente, o contraditório Monte Tepeyac é um dos coadjuvantes do imaginário guadalupano. Daquele local mórbido, como dissemos, com um pequeno povoado em volta, desabrochou a história de Guadalupe alterando a noção de religiosidade e tornando-se no complexo devocional mariano. A iconografia de Guadalupe teria sido formada das rosas caídas ao chão, que estavam no poncho do índio Juan Diego. Esse manto do indígena foi confeccionado com a fibra da planta maguey; numa situação normal, não se conservaria pela ação do tempo, mas permanece intacto, no mesmo tecido, desde 1531, até hoje, como sendo a tela da pintura de Guadalupe. Acredita-se ser um “milagre” o fato de essa mesma indumentária continuar exposta há quase 500 anos, no santuário principal na Cidade do México e esse quadro ser o objeto de visitação de milhões de pessoas durante o ano todo.

 

Aparecida é considerado um dos maiores santuários marianos do mundo. A pequena estatueta de terracota também recebe zilhões de visitantes, que chegam em romaria a pé, de bicicleta, motos, a cavalo, de carro, ônibus, caminhões, cadeira de rodas, dos quatro cantos do nosso país.

 

Essas constatações comprovam que a mantologia de Nossa Senhora de Guadalupe e Aparecida abriga não apenas os símbolos da cultura popular, mas parte da história de inúmeras pessoas, que se colocam sob estes mantos em busca da proteção. Ambas as iconografias continuam propiciando o crescimento do ideário devocional com os milhões de seguidores, que se dirigem anualmente até os seus santuários.

 

 

IHU – A senhora também pesquisou a mística mariana a partir dos relatos acerca de aparições. O que mais lhe surpreendeu nestes estudos? O que essa mística e presença de Maria entre fiéis revela sobre a religiosidade popular de nosso tempo?

 

Ana Maria de Sousa – Para pensar na mitologia das aparições, precisamos situar a mantologia de algumas manifestações marianas antigas que contribuem para legitimar o imaginário católico. Analisamos, no viés do uso do manto, para situar fatores de equivalência e discrepância, como referências culturais, ambiente bucólico, água (geralmente a manifestação ocorre perto de um braço de rio ou surgirá uma fonte no local), pessoas humildes, pássaros, sol, lua, anjos, entre outros.

 

Na construção dessas epifanias, o arrimo atende por Nossa Senhora do Pilar, na cidade de Saragoça, Espanha, nos anos 40 d.C., que se atrela ao apóstolo São Tiago Maior. O imaginário espanhol aponta que Nossa Senhora Maria teria “voado” numa coluna de mármore até Saragoça, vinda da cidadezinha onde vivia em Jerusalém ou de Éfeso, na Turquia – não se sabe direito qual o local onde ela residiu, depois da morte de Jesus –, sem respeitar as leis naturais. Detalhe: ela ainda vivia como mortal na terra.

 

Imagem: acervo Ana Maria de Sousa

 

O discípulo de Jesus, Tiago, era pescador, filho de Zebedeu, irmão do evangelista João, abandonou a pescaria para ser um dos doze apóstolos de Jesus. E a sua importância está relatada na Bíblia. Ele era um dos quais Jesus tinha predileção, pois a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (15, 1-11) afirma que “Jesus apareceu a Tiago, depois aos apóstolos todos juntos”. Sabe-se que Tiago faleceu em 44 d.C, foi executado a mando do rei Herodes Agripa. Além do apelido Tiago Maior (para diferenciar do evangelista Tiago Menor), foi chamado também como Boanerges, o filho do Trovão.

 

Tiago e a Virgem de Pilar

 

Vamos à aparição: consta que ele estava evangelizando pela Europa e planejava seguir até a extremidade mais alta do mapa, provavelmente onde atualmente está situada a cidade de Santiago de Compostela. Teria sido em meio a uma pregação de Tiago, quando o apóstolo de Jesus se sentia desanimado, porque estaria influenciando apenas a um grupo pequeno de pessoas a adotar o cristianismo como religião, que o primeiro imaginário católico se revela. Ela apareceu a Tiago, rodeada de anjos, em cima de um pilar.

 

Imagem da Virgem do Pilar no santuário em Saragoça

 

O propósito desse rompante de Nossa Senhora Maria teria sido avisar a São Tiago que não continuasse a viagem naquele momento por causa da intensificação das perseguições aos cristãos. Ela pediu que o apóstolo construísse ali uma igreja e, depois, voltasse a Jerusalém. Tiago é o mesmo Santiago de Compostela, que atrai milhões de peregrinos, que percorrem o Caminho de Santiago, partindo de várias regiões da Europa, em homenagem às andanças desse santo. A Virgem de Pilar abriga o primeiro templo mariano do mundo, construído por São Tiago. Ela é considerada a Padroeira da Hispanidade.

 

Experiência de devoção

 

Estivemos pessoalmente no Santuário de Pilar, em Saragoça, Espanha, e temos umas particularidades a relatar. É interessante ressaltar que atualmente a pilastra, na qual ela teria “aparecido”, foi revestida pelo elemento químico prata e se situa atrás do altar, onde apenas o padre tem acesso. Entretanto, atrás da parede desse local, encontramos uma parte dessa antiga coluna in natura, em mármore, disponível para ser tateada. Essa pesquisadora é testemunha que, ao tocar a pilastra, exala-se dali um aroma de rosas, que fica impregnado nas mãos. Retornamos em diferentes dias e horários e constatamos o mesmo eflúvio.

 

 

Dessa primeira aparição, a mística mariana atravessou a Idade Média até a contemporaneidade, transformando-se num conglomerado testemunhal de homens, mulheres e crianças que tiveram uma visão paradisíaca com a imagem da Mãe do Céu e relataram sua experiência religiosa. Em comum, ela sempre traz uma mensagem de paz, amor, alerta sobre catástrofes, pede orações, envia bençãos, promove curas milagrosas, pedidos de reconciliação, deixando provas incontestáveis (fontes de água) no local onde ocorreu a fenomenologia, tocando diretamente os corações do povo.

 

Entre as diversas aparições, podemos destacar Fátima (Portugal), Lourdes, Pontmain, Salette (França), Garabandal (Espanha), Lipa (Filipinas), Zeitoun (Egito) e outras. Em Medjugorje, há mais de 40 anos, ela se deixa ver por quatro videntes, com o título de Nossa Senhora da Paz. Ela traz mensagens proféticas e tem deixado sinais de luz no céu da pequena cidade da Bósnia-Herzegovina. O modelo aparicionista em Medjugorje, ainda não reconhecido oficialmente pela Igreja católica – o Vaticano autorizou apenas as peregrinações –, resgatou o catolicismo no país e reafirmou a tradição mariana, inaugurada por Pilar, no ano 40 d.C, com ápice em Fátima, Lourdes e La Salette.

 

 

IHU – Vivemos uma crise de fé? Ou estaríamos diante de uma crise do cristianismo e das religiões institucionais? Em que medida a religiosidade popular pode ser uma resposta a esse estado de crise?

 

Ana Maria de Sousa – Não acredito que vivemos uma crise de fé. Historicamente, o cristianismo marcou uma nova era e se posicionou há mais de 2.000 anos como um modo de vida e de religiosidade, que constantemente se renova. As palavras de Jesus são imortais e continuam fazendo eco.

 

A pluralidade das religiões e suas convicções têm em comum seguir os ensinamentos de Cristo e atualmente, com a transmedialidade, é capaz de atingir milhares de pessoas em um piscar de olhos. A multiplicidade de discursos rápidos consegue atingir até a muitos descrentes. Por outro lado, a internet é um território livre, com uma pluralidade de postagens, que visa tanto enaltecer como satirizar iconografias, através de memes, com a intenção de entreter. Esse campo livre contribui para a formação e manutenção do ethos da comunidade virtual, através da interação.

 

Vivemos um momento em que a e a esperança movem os inúmeros imigrantes que almejam atravessar o muro entre o México e Estados Unidos atrás de uma vida digna em terras estadunidenses. Outros se deslocam pelo Mar Mediterrâneo. Os latino-americanos seguem até a fronteira brasileira em busca de acolhimento. A crise da fome, da falta de emprego, de uma moradia digna e outras misérias são inerentes ao século XXI, por isso as palavras de Cristo se renovam e fazem eco a cada dia.

 

A devoção de outrora se disseminou através da cultura oral, e temos os relampejos atuais com a poesia e imagens do universo simbólico, que se transfiguram tanto no sentido religioso quanto no profano. Na internet, constatamos uma diversidade de devoção: Jesus é retratado como surfista, Nossa Senhora, com seu lindo manto azul, surge pintada nas paredes, ruelas, ladeiras, portas de comércio das comunidades carentes, em bairros sofisticados, nas boleias e traseiras dos caminhões, pelas estradas e outros locais. A metamorfose imagética de Jesus e Nossa Senhora Maria vigia o cotidiano e reverbera em oração.

 

 

IHU – Como a figura de Maria tem sido revista por uma teologia concebida a partir das mulheres?

 

Ana Maria de Sousa – Nossa Senhora Maria foi pioneira em quebrar paradigmas patriarcais de sua época, pois a função das mulheres era deixada em segundo plano. A liderança em papéis públicos da figura feminina se restringia a acender as luzes do Shabat – período de descanso e oração, que se desdobra até hoje. Elas não podiam atuar como juiz ou testemunhar em fóruns; se tivessem irmãos, não herdavam a propriedade dos pais; a educação tradicional das mulheres era mínima. Em casa, cuidavam dos afazeres domésticos, do marido e filhos.

 

O fato de Maria ser pouco explorada na Bíblia Sagrada ou não existir documentos sobre ela também é relativo à sociedade patriarcal de seu tempo. Encontramos diversas passagens nos protoevangelhos que a descrevem como a mãe-guia-mestre e intercessora dos apóstolos, que foram pregar o Evangelho de Jesus Cristo a todas as criaturas, mas sempre voltavam para consultar e serem direcionado por ela. Uma das comprovações é que, no momento de sua dormição, ou seja, Assunção ao Céu, a maioria dos apóstolos estava ao seu lado. O papel de Nossa Senhora Maria foi e continua sendo fundamental. Com isso tentamos corrigir um lapso na história.

 

 

IHU – Em que medida pensar na figura mariana, especialmente a partir de novas interpretações, ressignifica o lugar da mulher da Igreja? Que lugar é esse hoje?

 

Ana Maria de Sousa – As aparições de Nossa Senhora Maria são fenômenos recorrentes no catolicismo não oficial e, de certa forma, ressignificam o modo de interpretar estas experiências religiosas.

 

Retomando a narrativa da Virgem de Guadalupe, que atravessa o longo dos séculos e continua mobilizando multidões de fiéis em torno de sua lenda sagrada, também se arregimenta a religiosidade em torno do arquétipo feminino de uma grávida: na pintura guadalupana, o povo acredita que alguns oftalmologistas afirmaram que os olhos estão vivos, que a pupila se dilata. Espalhou-se também que alguns médicos, ao colocarem o estetoscópio, confirmaram ouvir batimentos cardíacos do feto; pela impressão digital, também nos dois olhos, foi identificada a presença de treze pessoas na sala do monastério, pessoas que estavam no momento do milagre, entre outras descobertas ainda não comprovadas cientificamente. Essas e outras histórias tecnológicas sobre a índia-santa do México se reciclam e se renovam a cada virada do tempo.

 

A figura de uma santa poderosa e miraculosa, que continuamente sai do altar ou desce do céu para ouvir pessoalmente as súplicas de seu povo, fazer confidências e alertas sobre o futuro, sem dúvida aproxima mais as mulheres, que a têm como corredentora e a transformam no fio condutor entre o céu e a terra. Existe uma identificação direta entre a Virgem Maria e as mulheres por serem do mesmo sexo e, assim, estar mais próxima a elas.

 

 

Mulher na Igreja

 

O lugar da mulher na Igreja, hoje, é continuar suas orações, ajudar nas obras sociais e em tudo o que a instituição necessitar, mas principalmente exercitar diariamente seu elo com o sagrado através de Nossa Senhora Maria.

 

IHU – No que residem as críticas e resistências à devoção popular mariana?

 

Ana Maria de Sousa – Com a revolução protestante de Martinho Lutero contra a Igreja Católica no século XVI, ele instituiu voltar às origens da religião, valorizar a fé, ajudar aos pobres, terminar com o comércio da venda das indulgências, entre outros. Além disso, incentivou a descrença em Nossa Senhora Maria. Consta que, perto de sua morte, ele fez sua mea culpa no livro “Fórmula de concórdia”, publicado em 1580. Entre outros temas abordados, o teólogo fez uma tentativa de remediar suas palavras densas contra a Mãe de Jesus, ressaltando acreditar na maternidade divina, virgindade perpétua e ressaltando que concordava com as devoções a Santíssima Virgem Maria. Era tarde demais, os protestantes preferiram não acatar mais essa prerrogativa.

 

Apesar de termos essa diferença como a mais saliente em relação aos nossos irmãos evangélicos, verificamos que a tolerância religiosa nunca esteve tão em alta na atualidade. Nos meus grupos de pesquisa, estou em contato quinzenal com pastores de diversas igrejas e percebo que, ao invés de críticas destrutivas, eles estão procurando conhecer cada vez mais a fundo a função da Mãe de Jesus Cristo.

 

IHU – De que forma podemos compreender o papel de Maria na Doutrina Trinitária?

 

Ana Maria de Sousa – No plano salvífico, a Doutrina Trinitária se liga desde o momento da Anunciação, no encalço de ela ter sido a eleita de Deus para ser a mãe de Jesus Cristo. Como ela teria ficado grávida ainda virgem? Primeiramente, os protoevangelhos revelam que, desde antes de sua concepção, ela já teria sido prometida pelos pais Ana e Joaquim como oferenda de agradecimento a Deus.

 

À medida que a pequena Maria ia crescendo, ela despertava a atenção pela sua simplicidade e ia acumulando graças junto ao Pai, que a escolheu entre todas as mulheres. “Alegrai-vos, cheia de graça: o Senhor é convosco” (Lc 1,28), teriam sido as palavras do anjo Gabriel no momento da Anunciação. O evangelho de São Lucas refere-se ao Espírito Santo como uma sombra que a envolveu. Esse evangelista e Mateus afirmam que Jesus nasceu milagrosamente de Maria.

 

O Alcorão, livro sagrado dos mulçumanos, também narra o poder do Espírito Santo na concepção de Jesus. Defendemos que foi pela intercessão do Espírito Santo, que ela ficou grávida. O espírito divino a envolveu com uma luz e, assim, a conservou intacta e plena de santidade. Essa mesma luz do Espírito Santo também retirou o Menino Jesus do seu ventre, fazendo-a permanecer sempre virgem.

 

 

IHU – No que a Doutrina Trinitária pode iluminar as crises e questões tão humanas de nosso tempo, como a crise climática, a crise política e a guerra, entre outras?

 

Ana Maria de Sousa – O mundo está doente porque perdeu a essência da , do amor verdadeiro e se esquece de refazer diariamente a aliança com Deus. Acreditamos que as catástrofes são para no mínimo fazer com que o ser humano reflita sobre o real significado de sua presença no mundo: ninguém nasceu para crescer, trabalhar, ganhar seu próprio dinheiro, se casar, ter filhos e morrer. Existem motivos maiores, como cuidar do irmão excluído, ser consciente na defesa do meio ambiente, evitar conflitos, perdoar e orar diariamente. Estas ações podem ser trilhas de consonâncias com a Doutrina Trinitária.

 

Como cientista da religião, coletei vários testemunhos de pessoas infectadas pela Covid-19, em entrevistas concedidas pessoalmente, com a seguinte indagação: Você acredita que sua fé o salvou? Todos foram unânimes em responder que não foi apenas a própria fé que os tinha salvado, mas a de todos que rezaram por eles durante o enfrentamento da doença. Alguns foram intubados, com chances mínimas de sobrevivência. Essa investigação, de cunho exploratório, cujo fim específico foi apresentar em congressos nacionais e internacionais, nos levou a contrapor à ideia de que a fenomenologia da fé está se extinguindo no século XXI. Defendemos que, com a intercessão do Divino Espírito Santo, os momentos mais trágicos da vida tendem a ser mais suaves.

 

No meu trabalho sobre o manto de Guadalupe, descobrimos que até mesmo os astecas, considerados pagãos, tinham uma crença em algo maior. León-Portilla mostrou que as flores para os náuatles eram uma “invocação ao Doador da Vida”. O autor demonstra com um trecho do poema “Flor e Canto”, que se encontra nos Cantares Mexicanos: “Saudações à beleza dessas plantas: [...] do interior do céu vêm as belas flores [...] brotam, brotam as flores, as flores abrem suas corolas diante do rosto do Doador da Vida” (1). Brindemos à vida, mas que todos façam sua parte, bem-feita.

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Ana Maria de Sousa – Gostaria de acrescentar dois testemunhos sobre a aparição de Nossa Senhora Maria, quando dois homens enfrentaram uma situação de perigo e acreditam terem sido salvos pela Mãe de Jesus. As entrevistas foram feitas aleatoriamente na cidade de São Paulo. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) de pesquisa científica. Elegemos dois depoimentos em primeira pessoa, como preconiza o manual da História Oral, com as emoções e interrupções colocadas entre parênteses e os erros de português, entre aspas. O primeiro é João Marcos, 43 anos, comerciante de verduras:

 

Era uma noite de chuva forte. Eu e meus amigos saímos de um bar, em SP, lá pelas duas da manhã, um pouco alto, eu tinha bebido muito. A gente quis ir embora, antes que a chuva engrossasse mais. Eu acelerei para chegar rápido. Numa curva, eu “tava” indo para Ibiúna e perdi o controle do carro (voz embargada). O carro deu uma derrapada e “virô” umas “quatro veiz”. “Fico” de cabeça para abaixo. A capota foi para as “roda” e “fico” totalmente entortada. O carro “viro” de cabeça “pra” baixo. A capota “fico” no “memo” nível do pneu.

 

Eu pedi para Nossa Senhora para eu não morrer (...). Via “os sangue” dos meus amigos escorrendo. Eu chamava o nome deles. Não me respondiam. Os três “tavam” mortos. Só vi o vulto de Nossa Senhora Aparecida. Não sei como fui tirado por Ela das “ferragem” do carro, O carro deu perda total. Os meus “amigo” morreram. Foi muito triste (lágrimas escorrem). Eu sai de lá, sem nenhum arranhão. Os policiais que me “socorreu” e quem vê as “foto” não acredita, como eu pude “viver” e vê o estado que o carro ficou. Para “agradece” tatuei a imagem de Nossa Senhora Aparecida nas minhas costas. (Ele levanta a camiseta e mostra o desenho). (Depoimento colhido pela autora em 20 de outubro de 2020)

 

O segundo testemunho religioso é Antônio Carlos, 65 anos, músico.

 


Num final de tarde fui surpreendido por alguns homens armados, violentos. Diziam que eu iria pagar pelo que tinha feito. Me jogaram no porta-malas de um carro. Eles estavam me confundindo com um inimigo perigoso. Nada adiantou eu falar que não era eu. Pedi muitas vezes para eles conferir meus documentos e ver que não era eu. Me colocaram um capuz preto. Eu rezava, e repetia que tinha esposa, filhos e netos (olhos marejados). Me mandaram calar a boca. Fui levado para um descampado, um lugar deserto para ser desovado. Eu não parava de rezar e chorava igual criança (suspira fundo).

 

No momento em que senti o cano frio do revólver na minha cabeça e senti a bala sendo disparada, eu rezava Ave-Maria. Então, vi Nossa Senhora descer, com seu manto azul; descer, sob a forma de um cone e ela ficou entre eu e o atirador, bem ali na minha frente... Até aquele dia, eu trabalhava como cantor de barzinho na noite, bebia muito. Depois disso, deixei a boemia. Hoje canto no coral da Igreja para Nossa Senhora. Vivo para louvar e agradecer a Nossa Senhora. (Depoimento colhido pela autora em 05 de dezembro de 2021)

 

Apesar de alguns autores da psicologia da religião tratarem esses rompantes místicos como transtornos da mente, ocorridos em situações catastróficas, não foi nosso objetivo analisá-los nessa perspectiva. Apenas expusemos as duas situações de morte iminente, considerando-os na função testemunhal religiosa da narrativa. Ambos os atores se colocaram diante do incompreensível, do sagrado, do oculto, do invisível. Relataram sua aflição e estado de choque, se emocionaram, pediram ajuda de Nossa Senhora e defendem que foram resgatados, obtendo uma segunda chance de viver. Tanto João Marcos como Antônio Carlos afirmam que Nossa Senhora apareceu na hora exata e solucionou seus problemas, resultando num alívio.

 

Nota

 

[1] LEÓN-PORTILLA, Miguel. A conquista da América Latina vista pelos índios, 1968, p. 131-135.

 

 

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