10 Agosto 2022
Na última edição de julho (30 de julho de 2022) da revista inglesa The Tablet, Chris Maunder – professor convidado de Teologia e Estudos Religiosos na St John University em York e autor de diversas publicações sobre a Virgem Maria (o seu último livro, “Mary, Founder of Christianity”, foi publicado em abril passado pela Oneworld Publications) – narra o desaparecimento, entre o fim do século XIX e o início do século XX, de uma devoção mariana de longa tradição, que desenvolveu e difundiu uma iconografia que retrata Maria em hábitos sacerdotais (um exemplo muito bonito, que remonta ao século VII, encontra-se em Roma no ciclo de mosaicos do Batistério Lateranense de São Venâncio).
O comentário é de Marco Bernardoni, publicado em Settimana News, 07-08-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No seu livro “Mary and Early Christian Women”, a pesquisadora Ally Kateusz coletou inúmeros exemplos de imagens dos primeiros séculos da Igreja em que Maria é retratada com o “pálio episcopal” (Ocidente) ou o “omophorion” (Oriente). Portanto, não apenas como sacerdote, mas como bispa. A Virgem é frequentemente retratada na “postura orans”, com os braços ao lado do corpo e as mãos para cima, no gesto do sacerdote que preside a missa.
Maria em hábitos sacerdotais, mosaico do Batistério Lateranense de São Venâncio, em Roma (Foto: Settimana News)
A associação tradicional de Maria como imagem da Igreja é antiga. Na verdade, remonta pelo menos ao século IV. Portanto, se Maria é a imagem da Igreja, e a Igreja é uma comunidade sacerdotal que celebra os sacramentos da redenção, compreende-se por que essas imagens nascem e se espalham. No entanto, defende Maunder, uma imagem feminina (a da Virgem Maria) em hábitos sacerdotais provocou – a partir de um certo momento – algum constrangimento e perplexidade no mundo católico, acabando por ser definitivamente excluída.
Foi o teólogo francês René Laurentin, que inaugurou a sua carreira de ilustre mariologista em 1952, justamente com um escrito intitulado “Marie, l’Eglise et le sacerdoce”, que identificou quatro períodos na história da devoção a Maria como “Virgem Sacerdote”. Na primeira delas, aquela que vai aproximadamente das origens da Igreja até o fim do primeiro milênio, as conexões entre Maria e o sacerdócio são esporádicas.
A ideia começou a florescer e se espalhar, segundo a pesquisa de Laurentin, na Alta Idade Média, quando a tradição passou por uma virada sob a influência da devoção apaixonada de Bernardo de Claraval (1090-1153) e de outros autores. Nas homilias para a Festa da Purificação da Bem-Aventurada Virgem Maria (ou para a Apresentação de Jesus), fala-se de Maria como aquela que oferece o seu filho, tanto no Templo quanto na Cruz. Em um sermão por ocasião da festa, São Bernardo dirige-se à Virgem com estas palavras: “Oferece o teu Filho, ó Virgem Santa, e apresenta ao Senhor o fruto bendito do teu ventre. Oferece pela reconciliação de todos nós a vítima santa, agradável a Deus”.
A terceira fase é identificada por Laurentin com a era da Contrarreforma. Ainda encontramos um testemunho de autoridade da devoção precisamente em Roma, no século XVII, quando o poeta e dramaturgo italiano Giovanni Battista Guarini, autor de “Il Sacro Regno della Vergine Maria”, afirma que a posição de Maria junto à Cruz no Evangelho de João deve ser considerada análoga à do sacerdote junto ao altar. Além disso, a respeito de Cristo e de Maria, o próprio Guarini escreve que “não houve nem haverá nenhum sacerdote mais digno ou mais santo do que eles; porque eram sem pecado, o que não se pode dizer dos sacerdotes do Novo e do Antigo Testamentos”.
Ainda no século XVII, os teólogos da escola de espiritualidade francesa adotaram com entusiasmo o tema do sacerdote mariano. Jean-Jacques Olier (1608-1657), fundador do Seminário de Saint Sulpice, estudou a estreita relação entre Maria e o sacerdócio, propondo uma espiritualidade sacerdotal mariana que teria uma influência importante na formação dos seminaristas. A analogia entre a função do sacerdote e a de Maria se baseava no fato de que ambos dão vida a Cristo. A vida humana de Jesus – escreve Olier – foi oferecida em sua morte na cruz, e essa vida humana provinha de Maria; assim, ela ofereceu a sua própria substância para a redenção do mundo.
A quarta e última fase da história da devoção começa no fim do século XIX, quando o livro do sacerdote belga Oswald van den Berghe, “Maria e o sacerdócio” (1872), foi publicado com uma carta-prefácio de Pio IX. Ainda em 1906, Pio X encomendou uma oração dedicada à “Virgo Sacerdos”, à qual anexou a indulgência. Citando o teólogo dominicano do século XV Santo Antonino, essa oração papal recita: “Embora não revestida com o sacramento da Ordem, fostes, no entanto, repleta de toda dignidade e graça que tal sacramento confere”.
Apesar desse ímpeto devoto, ainda antes do fim do papado de Pio X, veio justamente de Roma a decisão de suprimir a devoção a Maria “Virgo Sacerdos”. Um decreto de 29 de março de 1916, durante o pontificado de Bento XV, referindo-se a uma decisão do Santo Ofício de 15 de janeiro de 1913, estabelece que “as imagens da Bem-Aventurada Virgem Maria vestida com hábitos sacerdotais devem ser rejeitadas”. A supressão foi confirmada sob o pontificado de Pio XI pelo cardeal secretário de Estado, Rafael Merry del Val, que em 1927 motivou a decisão escrevendo que Maria representada como “Virgem Sacerdote” era uma imagem que “as mentes menos iluminadas não seriam capazes de compreender plenamente”.
Por que suprimir uma tradição tão longa e com um simbolismo teológico tão poderoso, pergunta-se Maunder. Sarah Jane Boss, fundadora do Centro de Estudos Marianos da Universidade de Gales, argumenta que a crescente participação das mulheres nas atividades do laicato eclesial e algumas iniciativas para a ordenação feminina que estavam sendo defendidas em outras Igrejas naquele período teriam levantado algumas preocupações em Roma. Preferiu-se, portanto, evitar o risco de gerar confusão entre os fiéis, já que aquelas imagens poderiam levar a pensar que Maria, uma mulher, havia sido efetivamente ordenada. Hipótese confirmada por Laurentin, que defende que a tradição não foi suprimida por incongruências teológicas, mas porque associava o sacerdócio a uma mulher.
“Virgo Sacerdos” na Catedral de Kiev, na Ucrânia (Foto: Settimana News)
Obviamente, ninguém jamais afirmou que Maria foi ordenada sacerdote, escreve Maunder. A questão é antes se Maria – como pessoa física e não como personificação da Igreja – pode ser indicada aos fiéis como modelo para o sacerdócio ou não. Tal posição, de fato, poderia pôr em discussão as afirmações de alguns documentos oficiais do magistério, como a declaração Inter insigniores (1976), segundo a qual a masculinidade de Cristo e a sua escolha de 12 homens como seus apóstolos significariam que o sacerdócio ordenado é reservado aos homens.
Uma imagem particularmente tocante de Maria sacerdote é um mosaico do século XI que se encontra na abside da Catedral de Kiev (foto acima). Maria está com as mãos levantadas, na posição de orante. Um véu eucarístico está pendurado na sua cintura. Há muitas outras imagens semelhantes de Maria em atitude sacerdotal nos altares das igrejas do Oriente e do Ocidente, algumas que remontam aos primeiros séculos.
É difícil fugir da convicção – conclui Maunder – de que a decisão vaticana tenha surgido não tanto de convicções teológicas, mas do medo de que a devoção à “Virgo Sacerdos” pudesse enfraquecer a posição da exclusividade masculina para o sacerdócio ordenado.
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Virgem sacerdote: imagens de uma devoção perdida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU