O benefício garantido a 68 milhões de brasileiros oportunizou a maior redução da desigualdade na nossa economia, mas seu fim pode elevar a pobreza a níveis ainda mais intensos
O ano de 2020 encerra com a menor taxa para a pobreza extrema e para a desigualdade. Se essa aparentemente é a boa notícia, a má é que a expectativa para 2021 é de radical reversão e aumento da desigualdade com o fim do Auxílio Emergencial. “A desigualdade de renda também caiu muito, pela primeira vez abaixo de 0,50, segundo índice de Gini, também um nível que não foi registrado antes. Agora, deve subir para um patamar maior do que era antes. Então temos falado na ‘desigualdade em V’, uma trajetória de algo que cai muito rápido mas depois some muito rápido também – mais ou menos como alguns analistas torcem para que o PIB se comporte”, avalia o economista Pedro Fernando Nery, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Com o fim do ano e da flexibilização do teto de gastos, a equipe econômica chefiada por Paulo Guedes não apresentou nenhuma proposta consistente para a população menos favorecida. “Após 31 de dezembro acaba o estado de calamidade, mas sem o fim da calamidade. Ou seja, o estado de calamidade que permitiu fazer um auxílio equivalente a dez anos de Bolsa Família deixa de existir. Assim, para pagar um novo benefício o governo deve respeitar o teto de gastos”, pondera.
Outra questão que deve trazer impactos decisivos na conjuntura brasileira é o aumento na taxa de desemprego, uma vez que parte dos desempregados, que hoje não entram no cálculo porque não estão procurando emprego, deverá buscar ocupações em 2021. “Dez milhões deixaram de trabalhar em 2020, mas isso não se refletiu na taxa de desemprego porque boa parte não ficou buscando ativamente uma ocupação. Estavam no chamado desemprego oculto e agora irão para o desemprego aberto, que é o capturado nas manchetes de jornais”, sublinha Nery.
Há um índice para o qual devemos estar atentos e que os governos sempre usam em seu próprio favor, mas que na vida das pessoas pobres tem pouca relevância, o Produto Interno Bruto – PIB. “O PIB é uma média da situação de todos, mas é uma média ponderada pela renda que cada um tem. Se os mais pobres ficam mais pobres, o PIB pode não sentir. Em um cenário de elevação da desigualdade, é fundamental manter atenção para outros indicadores, como desemprego, nível de ocupação”, ressalta.
Pedro Fernando Nery (Imagem: Reprodução Twitter)
Pedro Fernando Nery é doutor, mestre e bacharel em Economia pela Universidade de Brasília - UnB. Consultor Legislativo do Senado Federal, na área de Economia do Trabalho, Renda e Previdência. Agraciado com o Edgardo Buscaglia Award on Empirical Research in Law and Economics (2013), conferido pela Associação Latino Americana e Ibérica de Direito e Economia - ALACDE. É autor do livro Reforma da Previdência – Por que o Brasil não pode Esperar? (Elsevier, 2019), com Paulo Tafner.
IHU On-Line – Quais podem ser os efeitos econômicos com o fim do Auxílio Emergencial?
Pedro Fernando Nery – Receio que o aumento do desemprego, da pobreza e da desigualdade seja rápido e para um patamar mais alto do que antes da pandemia. Ou seja, vamos sair de 2020, com a menor taxa já registrada para a pobreza extrema e para a desigualdade de renda (medida pelo Índice de Gini), para um 2021 em que esses indicadores devem ser os mais altos em algumas décadas. O desemprego provavelmente vai subir para um nível mais alto do que na recessão de 2015-2016.
IHU On-Line – Quais foram as propostas da equipe econômica para a continuidade do auxílio?
Pedro Fernando Nery – Continuar o auxílio de fato é difícil, mas seria muito importante que ele fosse um empurrão para uma reforma do Bolsa Família ou para criação de um novo benefício. Isso já era muito necessário antes da pandemia, porque a pobreza não caiu tanto com a retomada do Produto Interno Bruto - PIB desde a última recessão. Ela basicamente só parou de subir. O Bolsa Família tinha valores defasados tanto para quantidade de beneficiários quanto para valor dos benefícios.
A equipe econômica sugeriu por um tempo o Renda Brasil, ou Renda Cidadã, que parecia ser um conjunto de propostas interessantes, com ênfase na primeira infância, com financiamento baseado na integração com outros programas sociais, principalmente o abono salarial. O presidente desautorizou, assim como desautorizou ajustes na folha de pagamento dos servidores federais. A equipe econômica veio então com a péssima ideia de corte real nas aposentadorias e pensões do INSS (mantendo o valor nominal dos benefícios, mas sem dar os reajustes pela inflação, o que provocaria corte no poder de compra). Parece ter sido a gota d'água para o presidente e a partir daí meio que esse programa morreu. Ou seja, achou-se melhor voltar para um Bolsa Família que já precisava de recursos do que reformar outra estrutura para transferir recursos a quem o presidente chama de "paupérrimos".
IHU On-Line – A pandemia no Brasil está longe de encerrar, mas não há propostas concretas de continuidade do auxílio. O que deve ocorrer após 31 de dezembro?
Pedro Fernando Nery – Após 31 de dezembro acaba o estado de calamidade, mas sem o fim da calamidade. Ou seja, o estado de calamidade que permitiu fazer um auxílio equivalente a dez anos de Bolsa Família deixa de existir. Assim, para pagar um novo benefício o governo deve respeitar o teto de gastos e a meta de resultado primário. Fundamentalmente, quer dizer que tem que ter uma fonte permanente de dinheiro para pagar uma nova despesa. Pela visão predominante, um corte de gastos para compensar. Mas pelo andar da carruagem, não vai ter nada. Consigo imaginar as consequências sendo muito ruins se o governo buscar uma solução depois das eleições do Congresso em fevereiro.
IHU On-Line – De que ordem foi a transferência de renda do Auxílio Emergencial em comparação com o Bolsa Família?
Pedro Fernando Nery – Foi o equivalente a cerca de dez anos. O auxílio acolheu muito mais pessoas do que o Bolsa Família, porque o limite de renda é muito maior. Muita gente ainda não conhece o Bolsa Família, então é preciso ter clareza que os valores para recebê-lo são muito baixinhos. Para receber o benefício básico, de R$ 89, é preciso ser extremamente pobre, ou seja, ter renda por pessoa na família dos mesmos R$ 89. Para receber o benefício variável, por criança, que é de R$ 41, ainda é preciso ser pobre, ou seja, satisfazer uma linha de pobreza de R$ 178 por pessoa na família. No auxílio, a linha foi de meio salário mínimo, R$ 520 por pessoa. O benefício também foi muito maior, inicialmente de R$ 600 reais ou R$ 1.200 para mães solo. Mais de 68 milhões de pessoas receberam o auxílio, enquanto o Bolsa Família paga em torno de 13 milhões de famílias.
IHU On-Line – Qual foi o impacto em termos de desigualdade e redução da pobreza no Brasil?
Pedro Fernando Nery – Por essas características, e por ter como pré-requisito a ausência de emprego formal, o auxílio transferiu muito dinheiro para o terço mais pobre da população. Estamos falando então de quem é desempregado, informal, ou está fora da força de trabalho. Gente que pouco acessa benefícios da Previdência, que exigem contribuição, e que não tende a se beneficiar de aumentos do salário mínimo por exemplo. Por isso é tão importante a expansão do Bolsa Família, mudar a base da proteção social dos benefícios com contribuição direta baseada em emprego formal para benefícios sem contrapartida contributiva, assistenciais.
O impacto foi muito poderoso. A pobreza e a pobreza extrema caíram para o menor nível já registrado, embora por questões metodológicas envolvendo a pandemia a gente só possa cravar com confiança que a pobreza extrema caiu de fato ao menor nível da história, o que foi um excelente resultado. Algo como 30 milhões de pessoas deixaram de viver na pobreza, seja porque o auxílio segurou a perda de renda seja porque aumentou temporariamente a renda de quem estava na pobreza anteriormente.
A desigualdade de renda também caiu muito, pela primeira vez abaixo de 0,50, segundo índice de Gini, também um nível que não foi registrado antes. Agora, deve subir para um patamar maior do que era antes. Então temos falado na "desigualdade em V", uma trajetória de algo que cai muito rápido mas depois some muito rápido também – mais ou menos como alguns analistas torcem para que o PIB se comporte.
É claro que em relação a essas quedas de 2020 estamos falando apenas da questão monetária, desconsiderando outros aspectos da pobreza e da desigualdade. Essas famílias continuaram com deficiências no acesso à educação, saúde, habitação etc. Mas há um aprendizado muito importante, reitero, sobre a relevância das transferências de renda fora da previdência. A previdência custa mais e naturalmente transfere mais para famílias com melhor acesso ao mercado de trabalho e para famílias mais velhas. Mas há muita pobreza para se combater nas famílias sem acesso ao mercado de trabalho e mais jovens, com crianças inclusive.
IHU On-Line – Como ficará a vida da população beneficiada pelo Auxilio Emergencial após o fim do benefício?
Pedro Fernando Nery – A evolução da pandemia, da vacinação, vai ditar o ritmo, mas muita gente vai ficar em uma situação péssima. Como os preços vão demorar pra refletir o fim do auxílio, é plausível imaginar que as famílias enfrentarão preços altos enquanto estão sem renda. Uma parte vai voltar a trabalhar informalmente, mas muitas atividades não se adaptarão ao distanciamento social. Empresas quebraram. A queda de renda vai ser muito importante.
É preocupante ainda a questão das escolas, o que tanto dificulta que mães busquem trabalho quanto amplia as despesas do lar, por exemplo com comida para substituir merenda ou lanche.
IHU On-Line – Qual foi o impacto do Auxilio Emergencial nas taxas de desemprego em 2020 e o que pode ocorrer em 2021 caso o recurso seja suspenso?
Pedro Fernando Nery – É de se esperar uma alta expressiva no desemprego, à medida que quem cumpria o isolamento em casa recebendo o auxílio passe a voltar a procurar uma atividade nas ruas. Para a medida de desemprego do IBGE, só agora esse pessoal vai começar a constar como desempregado. Dez milhões deixaram de trabalhar em 2020, mas isso não se refletiu na taxa de desemprego porque boa parte não ficou buscando ativamente uma ocupação. Estavam no chamado desemprego oculto e agora irão para o desemprego aberto, que é o capturado nas manchetes de jornais.
IHU On-Line – O ministro Paulo Guedes planeja um crescimento de 4% do PIB em 2021. O que poderia sugerir, em termos de teoria econômica, tal otimismo? Qual deve ser o impacto no PIB com o fim do auxílio?
Pedro Fernando Nery – É bastante provável que o crescimento em 2021 seja o maior em anos. Mas isso também porque em 2020 houve uma queda muito grande. A partir do momento em que as atividades voltam ao normal, há uma alta grande do PIB na comparação com 2020. Por exemplo, se a economia voltasse ao nível de 2019 o PIB cresceria muito na comparação com 2020, por conta do mergulho do ano atual.
É verdade que a recuperação pode ser afetada pelo fim do auxílio, que estimulou muito o consumo das famílias e regiões mais pobres. Mas por outro lado, como estamos falando de famílias pobres, o seu drama pode não pesar muito no PIB. É muito importante que a métrica de 2021 não seja o PIB, porque ele não vai refletir a privação de boa parte da população. O PIB é uma média da situação de todos, mas é uma média ponderada pela renda que cada um tem. Se os mais pobres ficam mais pobres, o PIB pode não sentir. Em um cenário de elevação da desigualdade, é fundamental manter atenção para outros indicadores, como desemprego, nível de ocupação.
IHU On-Line – O orçamento da União ainda não foi votado para 2021. Isso é bom ou ruim? Há espaços para avanços? É possível ter alguma expectativa positiva?
Pedro Fernando Nery - Não há qualquer sinalização de aumento relevante do Bolsa Família. Isso pode acontecer em 2021 com a aprovação de créditos, se houver pressão da população, por exemplo.
IHU On-Line – Como compreender a aprovação de 38% de “Ótimo e bom” do presidente Bolsonaro?
Pedro Fernando Nery – Eu acho inevitável que parte da aprovação decorra do pagamento do auxílio. É difícil imaginar que a distribuição de tanto recurso não afete a popularidade de um governante. Especialmente diante de uma queda em grupos que o apoiaram, pela gestão da pandemia e o abandono do lavajatismo, me parece plausível que a popularidade dele em 2021 atinja um mínimo. O novo apoio que veio por exemplo no Nordeste pode se esvair com a interrupção dos pagamentos.
IHU On-Line – Diante deste cenário complexo, que alternativas existem para superar os desafios da sobrevivência da população pobre do Brasil?
Pedro Fernando Nery – Existe muita coisa a ser feita. São necessários recursos para ampliar o Bolsa Família, a rede de creches - que ajuda no desenvolvimento infantil e empregabilidade das mães, a própria educação. Talvez também rever a tributação tão pesada sobre o emprego formal, o que não é fácil porque o tributo que mais arrecada para a União é este. O dinheiro existe, mas precisa de uma liderança que proponha um novo pacto. Porque exigiria cortar outros programas, gastos com servidores, gastos com renúncias a empresários, ampliar a tributação dos mais ricos.
É verdade que em termos de PIB per capita o Brasil não é um país rico, mas também não somos um país pobre. Um país de renda média como o nosso não precisa conviver com duas a cada cinco crianças vivendo na pobreza.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a Renda Básica Universal?
Pedro Fernando Nery – A renda básica universal ainda não foi tentada em larga escala em lugar nenhum. Mas uma renda básica para boa parte da população é viável, especialmente quando se considera que as famílias mais ricas possuem vários tipos de renda básica, isso é, recebem vários tipos de recursos públicos do orçamento ou via renúncias de impostos - inclusive no imposto de renda.
Uma boa possibilidade é a renda básica universal infantil, ou benefício universal infantil. Isso sim já existe em muitos países da Europa por exemplo. Embora universal, afetaria mais os mais pobres porque é onde predominam famílias com crianças. E, para os mais ricos, poderia ser uma troca com benefícios que já existem, como as deduções por filho no imposto de renda. Pesquisadores do Ipea como Sergei Soares, Pedro Souza, Luis Henrique Paiva, têm veiculado essa proposta há alguns anos.