Para o pesquisador, a experiência da pandemia e da concessão do auxílio emergencial provam que é possível conceber um auxílio nos moldes de uma renda básica e subverter lógicas da gestão da pobreza
O governo de Jair Bolsonaro abre 2020 reiterando o discurso de ajuste fiscal, mas, logo em março, vem a pandemia e vira o mundo do avesso. É óbvio que ninguém gostaria de estar passando pelas crises pandêmicas, mas essa experiência serviu para provar que ‘austericídio’ é um risco e que é preciso investir pesado em gastos sociais. Contrariado, o bastião do liberalismo no governo, ministro Paulo Guedes, tem de se render. “A possibilidade do auxílio é pela pressão de trabalhadores na luta por sua reprodução e valorização. O limite é a capacidade do capitalismo em impor ganho de produtividade. E o elemento repressivo é que caso não alcance esse ganho, prevaleça a busca desesperada por mais-valia absoluta”, analisa José Antonio Castillero.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Castillero também detalha o que considera como grande erro de mensuração na concessão do auxílio. “Se houve um problema de mensuração dos candidatos aos critérios, que eram os informais no Brasil, houve também a grande dificuldade da Dataprev em olhar para além dos 34 milhões que já eram contabilizados pelo IBGE”, aponta. E esse erro fez emergir nas redes sociais uma legião, os chamados “invisíveis”, que não só se autorganizaram para acessar o benefício como também pautam o debate sobre uma ideia de auxílio, ou renda universal. “É interessante ver que reconhecem como um direito de trabalhadores que podem ter seus direitos restituídos diante das perdas que tiveram”, aponta Castillero, depois da incursão antropológica que fez junto a esses grupos.
Assim, o jovem pesquisador percebe que “o problema atual mostrou que o capitalismo tem necessidade de preservar a reprodução de trabalhadores, mas ela está limitada a ganho de produtividade, que é colocado como incentivo ao consumo”. Ou seja, mesmo que reconheça a importância do benefício, constitui-se uma espécie de gestão da pobreza, sem o avanço de potencializar as forças produtivas. “Da mesma forma que o Bolsa Família fez um processo de incremento das lutas sociais com os ganhos de produtividade, a luta atual pelo auxílio tem o grande desafio de se tornar uma luta pela renda mínima universal”, indica.
E se o desafio está posto, Castillero resume: “a política do auxílio pode romper o ‘gorjetismo’, que são setores capitalistas se utilizando dos trabalhadores em condição miserável para pagar menos por um trabalho”.
José Castillero (Foto: Arquivo pessoal)
José Antonio Abrahão Castillero é estudante de Ciências Sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e atua em movimentos sociais na cidade do Rio de Janeiro. Recentemente, fez uma observação etnográfica e acompanhou dezenas de grupos de Facebook e de Whatsapp que participaram de alianças solidárias, isto é, grupos de apoio que auxiliaram brasileiros de todo o país a receberem o auxílio emergencial.
IHU On-Line – Como você analisa esse projeto de auxílio emergencial concedido pelo governo Bolsonaro? Quais suas potencialidades e fragilidades?
José Antonio Castillero – Ele foi aprovado no momento de início da pandemia e no temor de ela se espalhar com o número de mortos e adoecidos que houve em outros países. Como coloquei nesse texto, na época, existiu um impasse para o capitalismo a nível mundial, que é a garantia e reconhecimento da reprodução da força de trabalho. Olhando "friamente", a classe trabalhadora não é homogênea e por isso os capitalistas atuam tratando de forma diferenciada em busca de como garantir a sua exploração da forma mais otimizada possível. Então, ao mesmo tempo que ocorre a precarização do trabalho, com diferentes formas de exploração, existem diferentes formas de olhar o trabalhador.
Uma delas é acompanhada pela garantia de ganhos de produtividade. Ainda sem entrar nesse debate, que é profundo, é preciso lembrar que o capitalismo é um sistema que privilegia o capital e seus gestores (seja como proprietários ou controladores no comando de empresas e instituições) e submete os trabalhadores para extrair a mais-valia, que é impor um tempo de trabalho na produção maior do que o tempo de trabalho para reproduzir a vida do trabalhador. Aí temos duas formas: a mais-valia absoluta e a relativa.
A primeira reduz a porosidade da jornada de trabalho, intensifica o ritmo e reduz encargos com os trabalhadores, que é o salário e outros meios. A segunda aumenta a produtividade pela aplicação de técnicas, desde máquinas até gestão, mantendo o mesmo tempo de trabalho. Entendo a luta de classes como motor da História e também da sociedade, inclusive das técnicas. No caso, os capitalistas implementam tecnologia para fugir da resistência imposta pelos trabalhadores. Ou seja, a mais-valia absoluta é uma aplicação aos trabalhadores que tentam ter uma carga horária menos exaustiva. Assim, reduzem salários e colocam disciplina no interior da empresa para garantir a produção.
Com as greves e lutas, além da pressão da concorrência, ocorre a aplicação da tecnologia para garantir a mais-valia relativa ao ter mais produtividade. Isso pode manter o mesmo ritmo, reduzindo o conflito de classe, como reduzir postos de trabalho. Com as mercadorias reduzindo seu tempo de trabalho necessário para sua produção, elas se desvalorizam.
Assim, entra em cena a gestão da distribuição, que vem como incentivo ao consumo para escoar a produção. Isso veio como políticas de valorização do trabalhador, nos tempos do "fordismo", mas na verdade é a reprodução da força de trabalho diante de uma desvalorização dela, pelo incremento da maior produtividade pela mais-valia relativa. O que eu quero dizer com isso é que os ganhos sociais chegam a partir dos ganhos de produtividade no capitalismo. É um movimento constante entre as lutas e as incorporações em aumento de produtividade que fazem delas, quando não podem mais reprimi-las.
Depois dessa exposição um pouco pedante sobre questões "marxianas" no capitalismo, é preciso situar a implementação do auxílio emergencial na garantia por aumento de produtividade. É na necessidade de escoamento de mercadorias que ocorre o incentivo ao consumo, seja como valorização de salários, incentivo ao crédito (redução de juros) e política de fornecimento de renda. Então, capitalistas disputam demandas imediatas de sua produção. Assim, setores de maior produtividade podem demandar políticas de valorização de trabalhadores, como resposta às lutas, enquanto setores de menor produtividade pedem a desvalorização e repressão.
Isso pode explicar, por exemplo, por que a política de aumento de salários e o "Bolsa família" foram implementados, enquanto ocorriam incentivos à terceirização e redução de garantias trabalhistas nos tempos do governo do PT. Ao mesmo tempo, nos subúrbios e regiões menos tecnológicas implementam extrema repressão, o que pode gerar um outro debate importante: a violência policial e clandestina. Para um setor foi importante incentivar o consumo, para outros era necessário reduzir encargos trabalhistas. Um exemplo mais claro é um supermercado, onde a tecnologia de produção de alimentos foi incentivada pelas compras, mas foi conveniente reduzir os custos trabalhistas com seus empregados. Ao mesmo tempo que o maior consumo incentivou novos postos de trabalho no setor de serviços.
Na pandemia, indo finalmente ao ponto, o que fica colocado é como escoar as mercadorias e garantir a produtividade da força de trabalho. Assim a política do auxílio emergencial foi implementada. Isso esbarra em outros setores, os quais podem estar por trás do "negacionismo", que busca furar o isolamento social para voltar à produção, que são os médios empresários. Comércios e outras empresas fizeram a queda de braço pelo afrouxamento da quarentena. Enquanto isso, ocorre uma pressão para a redução do auxílio, que traz outro problema: a redução da arrecadação pública. Isso pode ser solucionado com políticas de taxação de maiores rendas ou busca por verbas públicas não tocadas, como as dívidas das empresas com a previdência ou a dívida pública. Mas a falta de interesse nessas fontes tem por trás a intenção de preservar esses setores e ainda atender aos empresários que querem o fim do isolamento.
Então, o auxílio emergencial tem dois inimigos que impõem os limites: os empresários negacionistas e a perda de produtividade. Se teve a redução da queda do PIB por conta do auxílio, a queda da produtividade coloca em tensão os setores menos dinâmicos. Daí os médios empresários, que são a base do bolsonarismo, colocam em questão o isolamento, enquanto os grandes buscam aumento de produtividade, que está sendo limitada. Ou seja, o auxílio incentiva ao consumo mas entra em choque com a atual queda de produtividade. Mesmo que a garantia da reprodução dos trabalhadores seja desejável pelos capitalistas, isso é limitado pelo pouco ganho de produtividade, precipitado pelos setores empresariais mais frágeis.
Por isso, esse debate caminha junto com a necessidade do isolamento para reduzir os infectados e mortos por covid-19, mas também ultrapassa esse assunto na discussão sobre a capacidade de o capitalismo fazer uma recuperação econômica através da mais-valia relativa.
Então, a possibilidade do auxílio é pela pressão de trabalhadores na luta por sua reprodução e valorização. O limite é a capacidade do capitalismo em impor ganho de produtividade. E o elemento repressivo é que caso não alcance esse ganho, prevaleça a busca desesperada por mais-valia absoluta. Isso é exatamente o interesse dos setores que apoiam o governo Bolsonaro, que é trabalhar com a ideia de desespero e de que não há soluções: a retórica da economia contra as garantias das vidas dos trabalhadores. Isso é a base desde seu discurso eleitoral: emprego ou direitos?
A materialização é a naturalização das mortes e infecções, até a reabertura, como se estivéssemos num "pós-pandemia", que ocorre durante aumento de mortos e infectados. O que tem por trás desse discurso é a intenção de agitar empresários interessados em lucrar na baixa produtividade, para impor mais-valia absoluta e não garantir valorização de trabalho diante da incerteza da mais-valia relativa.
E o populismo do governo é colocado à prova, quando trata o medo do desemprego e da fome para agitar trabalhadores mais pobres ou desempregados para aceitarem as condições mais degradantes de trabalho. Essa condição agora é também insalubre e insegura, diante da covid-19. Então, se o governo Bolsonaro ganhou popularidade pela implementação do auxílio, mesmo diante de quase 120 mil mortos, o limite chega pela pressão pela redução dele. O pior é caso os trabalhadores cedam à política do desespero, para virar imposição de mais-valia absoluta e novas infecções, como já está acontecendo. Então, o potencial da política do auxílio é a luta dos trabalhadores por ela virar não somente uma pressão maior por direitos sociais, mas a garantia da sobrevivência dos trabalhadores diante da pressão dos capitalistas que querem destruir o isolamento.
IHU On-Line – O que essa experiência da pandemia e da concessão do auxílio emergencial revelam sobre o trabalho e a informalidade no Brasil?
José Antonio Castillero – Ela traz um grande problema, que abre uma discussão e disputa dos trabalhadores pelo acesso ao auxílio. É exatamente a composição de classe, feita como um instrumento de luta. Se houve um problema de mensuração dos candidatos aos critérios, que eram os informais no Brasil, houve também a grande dificuldade da Dataprev em olhar para além dos 34 milhões que já eram contabilizados pelo IBGE.
Havia os que eram atendidos pelo Bolsa família e depois saíam do programa. Somava-se a eles os informais e desempregados, que não eram recentes para receber seguro-desemprego. Mas onde estava a comprovação e registro de todos os 34 milhões de informais? Quantos foram precipitados nessa situação durante a pandemia? O projeto superou expectativas ao atender 100 milhões de pessoas. Mesmo assim, a precisão numérica foi superada pela composição de classe. Em torno de 40 milhões foram negados e ainda estão em análise no pedido do auxílio emergencial. Então, há problemas de mensuração, que a crise econômica na pandemia precipitou.
Além disso, é possível fazer uma pergunta, que leva a questionamentos sobre o pós-pandemia também. É sobre as possibilidades de seguridade social numa situação onde a maioria da força de trabalho está colocada na informalidade ou no setor de serviços. Diante de uma pandemia, a falta dessas políticas ceifou vidas. Então, a demonstração da informalidade latente foi exposta pelo problema da mensuração. Quem colocou isso? Foram os trabalhadores se mobilizando pelo auxílio através dos grupos de Facebook e WhatsApp.
Ao responderem às perguntas da Dataprev, ficavam com dúvidas sobre sua colocação no acesso. Então, fizeram trocas de relatos e colocações sobre suas relações de trabalho em sentido amplo. Desde a reprodução, com gastos cotidianos e trabalho doméstico, até o trabalho produtivo, que são informais e desempregados. Isso partiu dos “Invisíveis”, que foram excluídos do auxílio por não se enquadrarem nos dados, mas precisaram se mobilizar e expor suas condições.
Mesmo com toda tecnologia, muitas pessoas foram obrigadas a buscar agências bancárias para conseguir acessar o auxílio emergencial | Foto: Prefeitura de Caruaru
IHU On-Line – Em que medida a situação de pandemia, e a própria implementação do auxílio emergencial, faz retomar o debate acerca da renda mínima universal?
José Antonio Castillero – Como descrevi nas respostas anteriores, a situação de dificuldade de mensuração e condição da informalidade, ligada a problemas entre a reprodução e a produtividade dos trabalhadores, traz problemas com questões sobre o pós-pandemia. O problema atual mostrou que o capitalismo tem necessidade de preservar a reprodução de trabalhadores, mas ela está limitada a ganho de produtividade, que é colocado como incentivo ao consumo. Da mesma forma que o Bolsa Família fez um processo de incremento das lutas sociais com os ganhos de produtividade, a luta atual pelo auxílio tem o grande desafio de se tornar uma luta pela renda mínima universal.
O choque é exatamente o discurso que prevalece pela extrema direita no governo e pelo comportamento de privilegiar lucros na baixa produtividade, que está imersa à maioria dos empresários brasileiros. Então, é uma disputa de consciência. A possibilidade é clara, é preciso não somente esclarecer os trabalhadores sobre renda mínima universal, mas sobre sua capacidade de impor termos na luta de classes. Nesse sentido, a gente se depara com um pessimismo. Não pelas condições históricas, mas pela derrota do movimento dos trabalhadores. Isso pode ser recuperado na mobilização pelo auxílio, quando alguém nos grupos diz: “O governo está retribuindo o que já pagamos”.
Se isso for levado adiante, é possível conquistar a renda mínima universal. Pois diante do discurso de desespero do governo Bolsonaro, que foi uma reação à crise econômica da era PT, é preciso mostrar que existem verbas para implementação e que há viabilidade econômica. Isso é algo que não foi implementado nem no governo petista, que é a taxação de maiores fortunas ou rompimento com a dívida pública. Mas a emergência da pandemia, e a tragédia que ela trouxe, pode ser transformada como um avanço do reconhecimento da permanência do auxílio. E a necessidade de uma política de renda universal, como elemento de coesão social, seria uma grande conquista desse movimento.
IHU On-Line – O que diferencia o Bolsa Família da ideia de renda mínima universal? Por que essa ideia, nos governos petistas e de esquerda, não avançou para além do Bolsa Família?
José Antonio Castillero – O Bolsa Família tem limites de renda para atender setores mais fragilizados. Foi parte do objetivo do governo petista em tirar o Brasil do mapa mundial da fome e alavancar um desenvolvimento comercial pelo incentivo ao consumo. Foi muito avançado para a época. Por si só, dificultou bases coronelistas e o voto de cabresto em regiões do Brasil, que foram bases contrárias ao projeto.
Mas o entendimento de uma abrangência maior veio com a pandemia e as fragilidades que ela trouxe. Então, o auxílio emergencial teve um caráter de prevenção diante da crise do isolamento, entendendo que ao mesmo tempo é preciso prevenir que as pessoas não caiam na situação de fome, devendo ser enquadradas em algo mais amplo do que foi o Bolsa Família, e também pela dificuldade de mensuração.
Dadas as condições que legitimaram a implementação de algo mais amplo que o Bolsa Família, isso nos leva ao questionamento: se há necessidade na pandemia, pode haver no pós-pandemia. E também, pode haver em outros momentos históricos, afinal nossa sociedade é criadora de desigualdades e miséria. Se o auxílio emergencial, abrangendo para além do Bolsa Família, teve sucesso, seria interessante pensar em uma renda mínima universal que cuidasse dessas fragilidades. Seria algo permanente e para setores mais amplos do que os colocados na informalidade.
Já existe um projeto de renda mínima permanente tramitando no congresso. E o governo Bolsonaro tem o Renda Brasil, que não tenho certeza se é o mesmo projeto. Parece que sim. O que tem de polêmico é o cerne da disputa para a fonte de verbas. O criador do Bolsa Família, o economista Ricardo Paes de Barros, tem aconselhado o governo federal a financiar o projeto tirando o seguro-desemprego e abono salarial para quem ganha mais de 1 salário mínimo e meio. Essa é uma clara política que é a tática dessa nova direita: agitar os setores que são a maioria, os que ganham menos de 1 salário mínimo e meio, contra os que ganham um pouco mais. Nisso, os empresários não são onerados. Como já citei em outra resposta, há outros meios para custear, onerando os empresários.
IHU On-Line – Agora, a partir da experiência do auxílio emergencial, o governo Bolsonaro cogita estender o benefício. Mas em que consiste essa proposta? Qual sua avaliação?
José Antonio Castillero – O benefício já foi prorrogado até dezembro deste ano, que é exatamente quando acaba o decreto do estado de emergência por conta da pandemia. O problema é a consolidação da redução para 300 reais. Isso mostra os objetivos do governo Bolsonaro: mesmo com a economia tendo sua queda reduzida pelo auxílio, preferem guardar receitas públicas e não onerar empresários para implementar o mesmo valor ou maior, como poderia ser.
IHU On-Line – Você tem acompanhado pessoas que têm buscado acesso ao auxílio. Como é desenvolvido esse trabalho e o que de mais significativo, para você, esse acompanhamento revelou?
José Antonio Castillero – Acho que posso falar de algo importante, que é a motivação política que me levou a fazer esse acompanhamento, como a que pude perceber em potencial nesse movimento. Eu já acompanhava fazendo pesquisas e entrevistas com trabalhadores terceirizados. Quando iniciou a pandemia, mesmo em isolamento, eu continuei meus estudos pensando que se dariam de forma estritamente teórica, sem poder ter contato com o campo. Mas os conflitos e questões dos mesmos trabalhadores foram se intensificando e surgindo outros. Como a luta pelo direito ao isolamento, com funcionários da limpeza, call centers e da saúde.
Em paralelo, os entregadores de aplicativos passaram a divulgar suas lutas e problemas. Passei a pesquisá-los e divulgar suas questões. Nisso eu vinha com uma perspectiva de usar “enquetes operárias”, que eram desde questionários a busca por relatos. Além de tudo isso, eu estudava a questão do auxílio emergencial como uma das políticas inesperadas do governo Bolsonaro e que foram implementadas para contenção do problema econômico na pandemia. Passei a fazer pesquisa nos grupos de WhatsApp e Facebook.
Algo que pude perceber foi que mesmo que pessoas respondessem ao questionário distribuído, não havia tantos elementos como nas postagens, comentários e mensagens. Até elaborei uma hipótese: isso seria um exemplo de “auto-enquete operária”? Os grupos militantes dos anos 60 que faziam enquetes operárias se depararam com os mesmos limites: os trabalhadores não davam as respostas desejadas e apresentavam questões não previstas. Isso virou tema de discussão, que sacudiu o marxismo, pois a cada suposta frustração sobre a representação proletária, reforçava o próprio método da enquete, que vivia em busca de uma expressão mais verdadeira dos trabalhadores.
Nas redes sociais, o pesquisador incursionou sobre grupos que buscavam ajuda e orientações durante a pandemia
Redes de solidariedade se formaram nas redes sociais, oferecendo orientações ou ao menos apoio a quem precisava
E isso virou elemento para questionar a autoridade dos sindicatos e partidos como representantes, que seriam gestores com o papel de controlar e silenciar essa voz. Nesse controle sobre os trabalhadores, um autor dessa época, Cornelius Castoriadis, falou sobre a necessidade de “organizações invisíveis”. Não por coincidência, ao acompanhar, no caso do auxílio, foram chamados de “Invisíveis” os que ficaram excluídos do acesso, mesmo atendendo aos critérios de seleção.
Eram os que não estavam detectados por fugir de algum enquadramento. São as mães solteiras que faziam 18 anos, ou desempregados que não recebiam seguro-desemprego. Os relatos das pessoas nessas condições eram os mais comentados nesses grupos. E cada comentário trazia novos relatos. Assim, pude fazer uma pesquisa que coloca à prova os pronunciamentos dos governos e as notícias de jornal. Às vezes até antecipando, como foi o caso absurdo de CPFs em óbito, que as pessoas simplesmente não entendiam por que seriam declaradas como mortas. Acredito que essa falha foi resolvida. Mas se não fosse essa mobilização, nada disso ocorreria.
IHU On-Line – Como analisa a experiência de organização das pessoas a partir desses grupos que se formam em redes sociais?
José Antonio Castillero – Apesar de as pessoas se unirem sobre a necessidade do auxílio por conta da pandemia, acontecem debates interessantes sobre o auxílio servir para desempregados ou para trabalhadores se valorizarem. Ou sobre como eles têm direito ao auxílio por serem pagadores de impostos, o que não deixa de ser noção acertada. Mas é interessante ver que reconhecem como um direito de trabalhadores que podem ter seus direitos restituídos diante das perdas que tiveram, o que levou ao desemprego e à informalidade.
IHU On-Line – Há críticas de que essas mobilizações não são de fato mobilizações por direitos, além de serem consideradas de cunho assistencialista. Mas em que reside essa crítica e como observa esse posicionamento?
José Antonio Castillero – Acho que pela direita existe um consenso de que políticas de seguridade social são gastos que podem ser enxugados em prol de um suposto crescimento econômico, que é o lucro privado nas mãos do capital. Essa perspectiva trata a economia como algo estático, é uma ideologia liberal que consegue muitos adeptos em momentos de crise. Foi esse setor que moveu convicções por décadas no Brasil, que deu caminho para as privatizações e austeridade. Como escrevi antes, essa dinâmica favorece os mecanismos de mais-valia absoluta, que é intensificar a jornada de trabalho através de redução nos encargos trabalhistas usando o controle sobre o trabalhador.
Isso provoca uma demanda por violência repressiva, diante da inquietação social e conflitos que provoca. Daí o capitalismo precisa pensar em políticas de integração, que reprime agitações sociais criando formas de cooptar e integrar trabalhadores na produção. Isso precisa estar ligado a um aumento de produtividade, criado pela mais-valia relativa, que usa investimentos em infraestruturas e tecnologias. Isso foi o governo do PT, como foram outros governos capitalistas, de centro ou de direita, pelo mundo.
Um erro da esquerda, que critico bastante, é entender a economia como estática e não imersa nos conflitos de classe que acontecem diretamente nas relações de produção. Essas trazem a ampliação para além do local de trabalho, mas também para a reprodução de trabalhadores em sua vida cotidiana. Isso não se dá por uma decisão ideológica, mas porque o capitalismo já trabalha dessa forma. Há setores capitalistas que sabem que o liberalismo puro é uma falácia e cabe olhar os trabalhadores para que uma economia tenha sucesso. Então, mesmo que tenha em Marx a perspectiva da “queda tendencial da taxa de lucro” e isso possa trazer um retorno constante às crises econômicas, é exatamente por isso que o capital busca formas de incorporar lutas na sua recuperação.
Um erro comum da esquerda é acreditar num destino histórico da crise terminal do capitalismo e que isso vai levar a um levante quase espontâneo dos trabalhadores. Na verdade, se irá ocorrer uma barbárie caso não ocorra uma revolução proletária, ela já é parte componente do capitalismo mesmo sem a iminência dessa revolução. Então, penso que há um erro principal aí, que é desconsiderar a força ativa dos trabalhadores para ameaçar ou salvar o capitalismo. O trabalho é parte componente do capital, mas não decide sobre ele. Assim, a forma de manter as relações capitalistas e explorar trabalhadores é alienar estes de qualquer decisão.
A esquerda, ao tratar a economia como algo estático e sem as possibilidades de atuação no interior da relação de trabalho, sem ir além do apego às forças produtivas, cria linhas de raciocínio que reforçam a alienação dos trabalhadores, pois esses acabam vistos como instrumentos em engrenagens maiores. Assim, uma extrema esquerda trata os trabalhadores como impotentes no interior das suas relações de trabalho, podendo recorrer somente às maiores explosões de revoltas ou guerras. Enquanto outra esquerda faz aliança com setores do capitalismo para comprar ganhos dos trabalhadores, submetendo benefícios sociais aos ganhos de produtividade e acordos entre instituições: sindicatos, empresas e associações.
No caso do auxílio, é comum uma esquerda pensar que ele está submetido a uma política de aceitação de renda fornecida pelo capitalismo. Ao mesmo tempo, pela política de submeter a distribuição desse benefício ao ganho de produtividade e também por ser um ganho ligado a uma formalidade de emprego, ao “chão da fábrica”. Essa última questão é parte de um arcaísmo e dessa visão ortodoxa da esquerda, que desconsidera as relações de reprodução dos trabalhadores como parte fundamental. Como já foi descrito, se desconsideram o trabalhador como força ativa, buscar auxílio seria “ficar refém do desemprego”. Aí, uma luta por esse benefício seria “assistencialismo”.
Discordo profundamente e considero uma ignorância imensa tratar assim, pois o próprio capitalismo mostra que a luta pelo auxílio emergencial trata exatamente de uma luta em relação de produção numa sociedade desenvolvida tecnologicamente. Isso, no sentido de que a pressão é feita para além da relação formal de trabalho, mas também pela condição de reprodução da força de trabalho. Isso é condicionado no capitalismo como “geração de consumo”.
Mesmo que um setor da esquerda tenha razão na crítica ao procedimento como é implementado o projeto do auxílio, é preciso entender o porquê e em que posição de classe se coloca ao chamar esse movimento como assistencialista. Uma crítica acertada é sobre o projeto ser condicionado a aumento de produtividade ou gestão da pobreza. Isso conforme disse corretamente a pensadora Virgínia Fontes, no vídeo sobre “pobretologia e falsificação da ira popular”.
Nesse vídeo, ela fala que as políticas de apoio aos setores mais pobres são instrumentalizadas por conselhos do Banco Mundial, desde os tempos da presidência de Robert McNamara, no sentido de cumprir agendas neoliberais com projetos de alteração de leis trabalhistas e privatizações. O Bolsa Família, inclusive, faz parte disso. Conforme citei no início da entrevista, o projeto Renda Brasil traz o projeto do ministro Paulo Guedes, que consiste no corte do abono salarial e seguro-desemprego. Mobilizar setores em precarização, os mais pobres, para implementar retirada de direitos é a intenção inicial, que move a lógica de ganho de produtividade.
Mas existe algo muito importante, que é a imprevisibilidade desse movimento. Por isso que tem algo muito grave numa esquerda que trata a luta pelo auxílio como assistencialismo ou aposta na neutralização política das pessoas atendidas. Isso é fruto de uma esquerda que privilegia a visão de gestores, que olha os projetos por cima e entende o trabalhador como passivo no jogo das forças produtivas. Nisso, basta fazer disputa de projetos e fazer denúncia da política de auxílio.
Esse vício elitista coloca a esquerda junto com a direita que pensa que a distribuição de renda coloca trabalhadores como “preguiçosos”. Isso colocado como parte de uma noção de um setor de trabalhadores que defende suas posições como detentor de oportunidades para se tornar gestores. Nisso, recaem na grosseira contradição: se a política é pela luta pela apropriação dos trabalhadores da riqueza produzida, que foi expropriada pelo capital, por que não considerar a luta pelo auxílio como um autêntico movimento dos trabalhadores contra o capital?
Se a crítica de que esses projetos são meios de gestão da pobreza para fins privatizantes e de austeridade, conforme a receita do Banco Mundial, é pelo limite que condiciona a renda aos mais pobres para retirar direitos trabalhistas de outros setores, é a possibilidade de romper esse limite que mostra a força desse movimento. E em que consiste essa força? Se as pessoas em busca do auxílio foram publicando seus relatos, problemas e pedindo ajuda para serem incluídas, é nesse processo que elas se politizam sobre seus direitos. Alguém que é negado ou bloqueado no auxílio vai na Defensoria Pública da União e toma noção do que pode fazer. A união com outros faz sentir uma força coletiva. E a perspectiva emergencial do auxílio, superando os termos da saída da fome, mas cumprindo um papel de segurança econômica, pode trazer o horizonte de “autovalorização” do trabalhador.
Essa consiste na condição de produzir valor de uso, ou meios para investir na sua reprodução, indo na contramão da “mais-valia”, que submete o ganho salarial ao tempo de produção na empresa. Em termos práticos, a política do auxílio pode romper o “gorjetismo”, que são setores capitalistas se utilizando dos trabalhadores em condição miserável para pagar menos por um trabalho. Essa é a “autovalorização”, que agride tanto a amplitude das relações capitalistas nas empresas, quanto pela consciência da esquerda, que parte de setores que reproduzem as mesmas posições. Como considerar trabalhadores mais pobres como ignorantes e massas de manobra. Mas ocorre o contrário. É a mobilização pelo auxílio que foi politizada pelos atendidos, ao invés de domesticar ou alienar esses trabalhadores. Então, ao mesmo tempo que é absurda a consideração dessa luta como “assistencialista”, a radicalidade dela mostra sua imprevisibilidade tanto pela esquerda quanto pela direita.
O mais interessante é que o “neofascismo” representado por Bolsonaro não esperava a politização desse movimento, quando fazia suas bravatas populistas. Então, já sabendo que não passou pelo “radar” da esquerda, presa em sua ortodoxia, também não foi previsto pela direita. Por isso, é um movimento que parte de dentro do bolsonarismo, mas é a força mais potente contra ele. Pois rompeu os limites da gestão da pobreza, inclusive, quando Bolsonaro negou o projeto do Renda Brasil pelo custeio proposto pelo ministro Paulo Guedes sugerindo os cortes salariais para quem ganha mais de um salário mínimo e meio.
E ainda continua a bater no limite que condiciona o auxílio sobre ganho de produtividade, onde apesar de incentivar a economia, demanda custeio público para além do que o governo pretende mexer: as taxas em grandes fortunas, cobranças de dívidas privadas com a previdência, auditoria da dívida pública. São muitas possibilidades, mas o que importa é a união e pressão que essas pessoas fazem.