11 Agosto 2020
"Com menos de 3% da população do planeta, Brasil já tem quase 15% dos mortos por covid. Mas Bolsonaro ainda consegue fugir à responsabilidade. E mais: na prisão arbitrária de Franco Netto, provável ataque à Fiocruz", escreve Maíra Mathias, jornalista e editora do portal Outra Saúde, em artigo publicado por Outras Palavras, 10-08-2020.
No sábado, chegamos às 100 mil mortes e três milhões de infecções pelo novo coronavírus conhecidas no Brasil. A tragédia sem precedentes na história do país não mereceu panelaços. A imprensa tem se esforçado para dimensionar seu significado em histórias, comparações, simulações e gráficos diversos. Mas alguma coisa parece ter estancado a indignação que era demonstrada numa base diária meses atrás. Concordamos com o advogado Thiago Amparo quando ele diagnostica que o luto coletivo existe, só que está sendo esmagado pela necropolítica. “Bolsonaro está vencendo pelo cansaço”, constata, por sua vez, o jornalista Bernardo Mello Franco.
No dia do fatídico marco, só atingido até agora pelos Estados Unidos, Jair Bolsonaro celebrou a vitória do Palmeiras e replicou a propaganda da sua secretaria de Comunicação que distorce informações para comemorar números catastróficos. Como os milhões de “recuperados” – conceito extremamente duvidoso em se tratando de uma síndrome que tem mostrado poder para desabilitar permanentemente suas vítimas, com pulmões lesionados, rins danificados. Ou o número de mortes por milhão de habitantes, métrica que não serve. “Se cai um avião com 210 pessoas ninguém diz que foi uma morte por milhão de habitantes”, explica Ricardo Parolin, em entrevista ao UOL. “Com cerca de 3% da população mundial, concentramos 14% dos óbitos registrados por covid-19”, situam as pesquisadoras Jurema Werneck, Gulnar Azevedo e Zeliete Zambon.
Hoje, a quantidade de vidas perdidas já aumentou mais um “muito”: mil cadáveres se acumularam de lá para cá. “E seguimos contando os corpos que não podemos velar”, escreve Antonio Prata, resgatando a conclusão do atual presidente sobre a ditadura – ‘o erro foi ter torturado e não matado’, disse Bolsonaro no rádio em 2016 – para inferir: “Era óbvio, mas segue sendo surpreendente que um presidente eleito hasteando a bandeira da morte nos entregue, vejam só, a morte.”
Diante dos 100 mil mortos, Supremo e Congresso decretaram luto oficial. Não há punição à vista para quem optou pelo “caminho da insensatez”. “A responsabilização por esta tragédia humana não pode deixar de ser feita”, defendem as entidades da ciência, da advocacia, da imprensa, etc. O difícil é achar quem tenha poder para tal e esteja disposto a assumir a tarefa. Aparentemente, estão todos “tocando a vida”.
Na sexta, o ministro da Justiça, André Mendonça admitiu que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do ministério produziu um “relatório” sobre 579 policiais que se declararam antifascistas na internet. O reconhecimento aconteceu depois de dias em que o ministro tentou abafar o escândalo do dossiê de inteligência, revelado por Rubens Valente, no UOL. Segundo parlamentares, ele se defendeu, dizendo que tomou conhecimento do documento só depois da reportagem.
As declarações de Mendonça foram dadas em reunião da comissão mista do Congresso que trata do tema, fechada ao público. “Para mim ficou patente e caracterização de que vivemos um caso clássico de espionagem política do governo em relação a opositores“, avaliou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), presente no encontro.
Em 2019, um dos primeiros atos do presidente foi transformar a Seopi em um serviço de informação. Antes, a Secretaria tinha a missão de intermediar ações policiais. Na mesma linha, o governo Bolsonaro gastou 68% a mais com ações de inteligência e segurança institucional do que a média verificada na gestão de Michel Temer. Ao todo, foram R$ 90,9 milhões – e esse ano, os gastos já tinham alcançado R$ 41,7 no início de agosto, segundo levantamento do Globo.
Em 31 de julho, a Abin passou por uma reestruturação e foi criado um Centro de Inteligência Nacional, com mais cargos e a atribuição de enfrentar “ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade” – bem no espírito da Lei de Segurança Nacional, entulho autoritário cada vez mais usado pelo governo.
O relatório do Ministério da Justiça, os gastos crescentes com vigilância e a criação do Centro da Abin dão concretude às declarações que vieram à tona com a divulgação do vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril, quando Bolsonaro cobrou relatórios diários de inteligência da Polícia Federal, que não tem essa atribuição, e disse que tinha um sistema “particular” de informação.
Naquele mesmo dia 22, Bolsonaro afirmou que iria intervir no Supremo, conforme reportagem da revista Piauí – que até agora não foi negada pelo Planalto. O El País constatou que nem os próprios ministros da corte parecem dispostos a dar a importância que a revelação merece. Preferem botar panos quentes por avaliarem que o pior momento da crise institucional já passou. “Se você não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe”, nota Celso Rocha de Barros em sua coluna na Folha.
Tem pouco mais de um mês que o presidente não ataca os outros poderes. Bolsonaro está mais pragmático em meio às investigações e denúncias que pesam sobre si e sua família. Só nos últimos dias, foram reveladas inconsistências nas suas declarações sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz e Márcia Aguiar na conta de Michelle Bolsonaro. Foram rastreados 27 depósitos num total de R$ 89 mil. Quando o caso estourou em 2018, o presidente disse que o dinheiro (então depósitos que totalizavam R$ 24 mil) era parte do pagamento de um empréstimo feito por ele a Queiroz no valor de R$ 40 mil. Já a última envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) dá conta de que ele usou R$ 86 mil em espécie para pagar salas comerciais no Rio.
“Por mais grave que seja, o já revelado está longe do que pode alcançar. Bolsonaro sabe o que esconde e se preparou desde a campanha para montar um sistema protetor”, nota Janio de Freitas.
E parte do mecanismo que dá hoje sustentação ao presidente (e casa bem ao pragmatismo recém-adotado) é o auxílio emergencial. Para André Singer, a “pandemia criou uma situação inesperada que pode facilitar uma transição inesperada”, já que para receber os R$ 600 a maioria dos beneficiários do Bolsa Família teve de abrir mão do programa criado –e super identificado – com Lula e com o PT. “É como se as pessoas tivessem saindo do programa lulista e entrando num programa bolsonarista. O governo começou a pensar numa estratégia inteligente, mas depende de ter recursos, que é fazer com que as pessoas não voltem mais para o Bolsa Família, mas entrem direto no Renda Brasil”, analisou, numa entrevista ao Globo em que fala que, pela primeira vez, vê se delinear no horizonte uma ameaça concreta ao lulismo.
Alexander Lukashenko, que recomendou à população da Bielorrússia tomar vodca e ir à sauna para combater o novo coronavírus, foi reeleito presidente do país ontem. O processo eleitoral foi marcado por forte repressão. Na véspera do pleito, a líder da campanha de Svetlana Tikhanovskaya, candidata da oposição, foi presa. Svetlana é casada com o youtuber Siarhei Tikhanovski, que liderava as pesquisas informais da corrida presidencial, mas foi preso em maio – destino de outro candidato, Viktor Barbariko, detido em junho.
O acesso a sites da oposição e da comissão eleitoral, assim como a redes sociais e serviços de mensagens foi limitado pelo governo – que, ainda por cima, estabeleceu o voto antecipado, aumentando as suspeitas de fraude. O mecanismo nada tem a ver com a pandemia: Lukashenko é um dos poucos chefes de Estado que não estabeleceu medidas de distanciamento social, e já chegou a declarar que a crise sanitária não passava de “psicose”. Ontem, depois da divulgação da sondagem oficial que deu 79% ao político no poder desde 1994, houve protestos na capital Minsk. A polícia ocupou as ruas, usou canhões d´água para dispersar a população e prendeu manifestantes.
O pesquisador da Fiocruz Guilherme Franco Netto foi solto na tarde de ontem. Ele havia sido preso na manhã da quinta, no âmbito da Operação Dardanários que teve como principal alvo o secretário de Transportes do governo Doria, Alexandre Baldy. A prisão do pesquisador foi baseada nas delações de Edson Giorno e Ricardo Brasil, donos da empresa de tecnologia da informação Vertude. Eles acusaram Baldy e seu primo – Rodrigo Dias, ex-presidente da Funasa e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – de receberem propinas em troca de vantagens à Vertude. Um dos contratos do suposto esquema de corrupção teria sido firmado com a fundação de apoio da Fiocruz, a Fiotec. Segundo o repórter Fausto Macedo, os delatores apontaram o pesquisador da Fundação como seu “contato” na autarquia.
Franco Netto é um dos cientistas mais respeitados do país na área de saúde ambiental e tem recebido solidariedade de diversas entidades e pesquisadores da área, que viram com estranheza todo o caso. Outra Saúde apurou que, nos bastidores, é disseminada a avaliação política de que a prisão teve como objetivo desacreditar a Fiocruz e colocar lenha na fogueira para uma intervenção do governo federal nas eleições à presidência da Fundação, que acontecem este ano. Um site para coletar assinaturas em apoio ao pesquisador foi criado no fim de semana.
Semana passada, destacamos por aqui o anúncio feito pelo secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, Hélio Angotti, de que o ministério da Saúde havia encomendado 110 milhões de seringas e agulhas para viabilizar a vacinação contra o coronavírus – caso o imunizante seja aprovado, é claro. Mas a entidade que representa os produtores de itens hospitalares faz um alerta: o tempo que a indústria nacional leva para produzir 50 milhões de seringas é de cinco meses. Entrevistado pela coluna de Mônica Bergamo, o superintendente da Abimo Paulo Henrique Fraccaro, lembra ainda que a importação pode ser um caminho difícil, já que a demanda pelo insumo vai crescer em todo mundo, e que não existe gordura para cortar, uma vez que o calendário nacional tem que continuar garantindo a aplicação de outras vacinas.
Aliás, pesquisadores estão contestando pesadamente – e com toda a razão – a ideia do Ministério de replicar os critérios de vacinação da influenza para o coronavírus. As crianças, por exemplo, estão no grupo de risco da gripe, mas não da covid-19. Na pandemia de H1N1, os critérios foram definidos por um comitê de especialistas. “É um absurdo as possíveis vacinas contra Sars-Cov-2 seguirem a mesma lógica de vacinação da Influenza. É um erro. Doenças diferentes requerem estratégias diferentes“, defende Fernando Hellmann, da Universidade Federal de Santa Catarina, em entrevista ao Globo.
A candidata a vacina da empresa chinesa CanSino começará a fase 3 dos testes clínicos na Arábia Saudita. O objetivo é angariar cinco mil voluntários por lá. Outros países, como o Brasil, já foram sondados pela farmacêutica para participar desta etapa, mas ainda não há nada fechado. A tecnologia, desenvolvida em conjunto com a unidade de pesquisa militar da China, usa um vírus de resfriado humano enfraquecido (o adenovírus 5) para ensinar o sistema imunológico a reconhecer o SARS-CoV-2. Como já falamos por aqui, existem candidatas a vacina contra o HIV que usam esse mesmo mecanismo, mas estudos apontaram o aumento do risco de infecção nesses casos. A vacina recebeu licença para o uso nas Forças Armadas antes mesmo da divulgação dos resultados da fase 2, que parecem promissores e foram publicados na Lancet no final do mês passado.
Na sexta, foi a vez de o governo russo anunciar que vai conceder esta semana o registro da vacina desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia. O plano já havia sido divulgado: começar a vacinar a população em setembro. Esse imunizante também usa adenovírus, mas é cercado de controvérsias. Primeiro porque os pesquisadores afirmaram ter aplicado a candidata neles mesmos, o que segundo a própria associação russa de pesquisa clínica (Racra) constituiu violação dos princípios desse tipo de teste e das regulações internacionais. Depois, porque se sabe muito pouco sobre os estudos, que não chegaram à fase 3. A fase “1-2” teria envolvido apenas 38 voluntários.
“No momento todas as vacinas sérias feitas por empresas e universidades de renome estão comprometidas com a transparência. Isso não foi feito com a vacina da Rússia que para nós, cientistas, não existe. Não sabemos nada sobre ela até agora, qual é a tecnologia empregada, os resultados da fase pré-clínica. Não foi feita uma única publicação”, critica Natália Pasternak, do Instituto Questão de Ciência, em entrevista à Folha.
O plenário do Supremo Tribunal Federal pode julgar se os responsáveis têm o direito de decidir não vacinar crianças com base em justificativas ‘filosóficas, religiosas, morais e existenciais’. O julgamento deve colocar em embate dois argumentos: a liberdade dos pais versus o bem estar das crianças e adolescentes. O caso em análise subiu para o STF depois de diferentes decisões nas instâncias inferiores. Tudo começou em 2019, quando o Ministério Público de São Paulo entrou na Justiça contra um casal de Paulínia que nunca havia vacinado o filho, então com três anos. O processo corre sob sigilo, mas se sabe que entre os argumentos, os pais dizem ser “adeptos da filosofia vegana” e caracterizam a imunização como “intervenção invasiva”. A primeira instância acatou essas justificativas; o Tribunal de Justiça, não. O relator de ação no Supremo é Luís Roberto Barroso, que propôs atribuir repercussão geral levando o caso ao plenário. Os ministros vão decidir se o julgamento pelo pleno se justifica.
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As 100 mil mortes e o triunfo temporário do cinismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU