Para o antropólogo, “ao medirmos a potência de um desfile meramente por suas afinidades políticas, ignoramos todo o resto”.
O carnaval e o samba, muito antes de apresentarem um retrato unívoco do Brasil, são artes que expressam “as mazelas dos oprimidos, isto é, dos seus criadores” e refletem sobre temas que perpassam suas vidas há séculos, como a violência, o racismo e a opressão, mas não só. O carnaval, como uma “forma de arte extremamente complexa”, também manifesta em seus sambas-enredo uma visão cosmopolítica, religiosa, o modo de vida que circunda elementos do candomblé, a cultura negra e a arte de matriz africana, e isso faz “toda a diferença”, diz o antropólogo Orlando Calheiros à IHU On-Line.
Interessado na potência artística e criativa do carnaval, Calheiros critica as análises que tentam reduzir os sambas-enredo a meras pautas políticas identificadas com setores da esquerda. Um exemplo disso, lembra, foi o reconhecimento da potência do desfile da Mangueira de 2019, por conta do alinhamento político com a esquerda, mas o não reconhecimento do desfile da mesma escola em 2016, quando o samba-enredo teve como tema Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá. “Aos olhos dos não interessados é apenas mais um desfile biográfico, mas o que se passou na avenida foi outra coisa: um desfile que ‘estranhamente’ começava com 15 bailarinas negras, guerreiras de Iansã, o mestre-sala e a porta-bandeiras vieram de iaôs, o samba dizia ‘a sua força me invade/ O vento sopra e anuncia’. O que se passou? Bem, o carnavalesco optou por uma forma diferenciada de narrar a vida da cantora, no lugar de uma tradicional narrativa cronológica, optou pela perspectiva de sua relação com o candomblé, mais especificamente, como um desdobramento de sua relação íntima e profunda com a dona de seu ori, Oyá. O desfile estabeleceu uma indiscernibilidade entre a cantora e a orixá, produzindo uma obra única. Isso é toda uma outra forma de se contar uma história, é toda uma inovação na linguagem da arte. Mas isso tudo foi amplamente ignorado”, lamenta. E acrescenta: “O ponto é: ao medirmos a potência de um desfile meramente por suas afinidades políticas, ignoramos todo o resto. E é justamente esse elemento ignorado que importa para os realizadores desta arte”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Calheiros explicita temas que abordou em seu podcast Benzina durante o carnaval e enfatiza que assim como outras formas de arte, o carnaval é uma arte em si e não pode ser elevado a essa categoria somente quando traz consigo uma mensagem política.
Orlando Calheiros (Foto: João Vitor Santos | IHU)
Orlando Fernandes Calheiros Costa é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ/Museu Nacional, onde coordenou o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica - NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD, coordenando o Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Atuou ainda como pesquisador colaborador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade - PPBio do Ministério da Ciência e Tecnologia. Realizou pós-doutorado no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor visitante
IHU On-Line - Diz-se que, para compreender o Brasil, é preciso entender o carnaval. O senhor concorda? Por quê?
Orlando Calheiros - Bem, eu discordo. Para começar, é preciso se perguntar que Brasil é esse que se almeja compreender. O carnaval é um elemento fundamental de algumas experiências brasileiras – no sentido que ocorrem no território demarcado como Brasil. Algumas, frise-se, pois não creio na existência de uma "experiência brasileira" universal, unívoca etc. Isso sempre foi o projeto do Estado, de Estado, vide Vargas, a Ditadura Militar, o projeto desenvolvimentista, estas coisas. Enfim, o carnaval em tela, o "carnaval carioca", é uma experiência local, citadina, com grande cobertura, divulgação, alcance, mas está longe de constituir uma experiência nacional. Melhor, um fenômeno capaz de desvelar uma suposta verdade sobre um suposto Brasil unificado. Dizer tal coisa seria pressupor que a experiência citadina fluminense – para citar o carnaval que me é familiar – possa servir de parâmetro para as demais experiências, ignorando, assim, a especificidade destas outras experiências. Um exemplo particular: por conta do meu trabalho, passei alguns carnavais em cidades do interior do Pará e em aldeias indígenas. Lá nada acontece nesse sentido, nenhum tipo de mobilização, nada. Ali não existia nada que pudéssemos dizer, chamar de "carnaval". No que a experiência do carnaval carioca, melhor, de certo carnaval carioca, poderia me ajudar a compreender o que se passava nesses locais?
Por isso insisto neste ponto: pressupor que o carnaval carioca (ou qualquer outro) seja essencial para compreender o Brasil como um todo seria excluir estas experiências, a vida nestes lugares alheios ao carnaval, daquilo que consideramos Brasil. Ainda, seria estabelecer uma hierarquia, onde um mundo particular, uma experiência local, emerge como superior, contendo em si a verdade sobre todos as outras. Felizmente, a vida do fluminense citadino não tem muito a dizer sobre aquilo que se passa alhures, a sua arte tem algo a dizer sobre isso, mas enquanto arte – e isso já é muita coisa.
Ainda, é fundamental que se pergunte, qual carnaval? O carnaval da Bahia não é o mesmo carnaval do Rio, da mesma maneira que o carnaval dos subúrbios e periferias cariocas é bastante distinto do carnaval dos blocos das regiões abastadas da cidade. Qual seria o carnaval quintessencial para o entendimento? O carnaval das escolas? O carnaval dos blocos de rua das regiões abastadas? As rodas de samba que acontecem nos bares do subúrbio carioca? As saídas de Clóvis? Seria uma média de tudo isso? Eu desconfio da própria impossibilidade de uma média. Mesmo em um cenário tão diminuto – espacialmente falando – como o Rio de Janeiro. Mesmo aqui, o carnaval é tão múltiplo que se torna impossível determinar uma quintessência da festa.
Contudo, creio que o carnaval em tela seja o carnaval da avenida, o carnaval das escolas de samba. Bem, este carnaval, para mim – utilizando um velho jargão da antropologia –, é bom para pensar. Não apenas para pensar sobre, como se ele fosse pura e simplesmente uma manifestação cultural, ele é bom para se pensar junto. Sim, junto, pois, ao contrário do que a expressão "manifestação cultural" por vezes pressupõe o carnaval, este carnaval pensa. O desfile, o enredo, o samba, as fantasias, trata-se de uma forma de arte extremamente complexa, um agenciamento artístico coletivo, que por vezes se propõe a pensar o Brasil (mas não apenas). Por isso disse que a arte do populacho fluminense pode ter algo a dizer sobre outras experiências brasileiras, mas não apenas, ela também pode ter algo a dizer sobre outros tempos históricos, sobre a própria noção de história, sobre a origem do mundo, sobre as estruturas metafísicas do nosso pensamento filosófico tradicional. Afinal, estamos aqui falando de uma arte de matriz africana, e essa é uma daquelas diferenças que fazem toda a diferença. Uma arte comprometida com encruzilhadas, com a multiplicação de sentidos e afetos, não uma arte comprometida com a univocidade.
E esse me parece um ponto fundamental, trata-se efetivamente de uma forma de arte e não de mera "manifestação cultural", "cultura popular" ou qualquer outro termo que se use para diminuir a potência dos desfiles. Diriam "para entender a Alemanha é preciso entender a ‘Tannhäuser’ de Wagner?", "Para entender a Itália é preciso entender ‘A Captura de Cristo’ de Caravaggio?". Acho que não, ao menos, jamais diriam isso, não do mesmo jeito que dizem que para entender o Brasil é fundamental entender o carnaval. Podemos compreender que a arte destes sujeitos tem relações com seus contextos, com a geografia, com a história, com a política, com o mundo que os cercava. Mas jamais poderíamos reduzi-los a isto. Ignoraríamos a criatividade destes artistas e diríamos que a "Ária de Elisabeth" ou que o Tenebrismo são manifestações típicas de seus contextos? Creio que não. Diríamos, creio, que a primeira atualiza aspectos do drama grego e que o segundo trabalha alguns conceitos estéticos da metafísica cristã – ou qualquer outra coisa, o amor, os tons terrosos etc. – de uma forma muito particular, diríamos que elas, seus artistas, pensam estas questões, ainda que de uma forma que por vezes identificamos como atadas, próximas de uma tradição nacional, mas jamais ignoraríamos o caráter particular desse pensamento, jamais apagaríamos a marca do artista no processo criativo.
As escolas, os desfiles, eles, como obras artísticas que são, também pensam seus contextos, o mundo, mundos, propõe outros mundos, outras formas de vida, de uma forma muito particular, muito atrelada à experiência periférica, favelada, negra, a origem deste carnaval. Contudo, jamais poderíamos tomá-las como uma espécie de desdobramento natural destas experiências. A arte jamais pode ser tomada como "natural", esta ou qualquer outra. É preciso estar atento para o caráter particular destas obras artísticas, ainda que o seu sujeito, nesse caso, seja coletivo (o que a torna ainda mais desafiadora para o entendimento).
IHU On-Line - Como o senhor compreende o carnaval no Brasil? O que esta grande festa revela sobre a cultura, a arte e as manifestações populares brasileiras?
Orlando Calheiros - Bem, existe um discurso geral sobre o carnaval carioca – o único sobre o qual posso falar algo por conta da familiaridade – que diz que ele marca um tempo de experimentações. Essa caracterização da festa me interessa na medida em que diz algo sobre o quanto da nossa libido, da nossa imaginação, está capturada por um certo regime moral. Explico. Identifico nesse discurso elementos de uma perspectiva empobrecida e pálida que vê o carnaval como um momento de libertação das nossas amarras morais, das nossas vergonhas, que vê na festa uma redenção da castração, o momento em que, enfim, somos capazes de experimentar (apenas temporariamente) uma outra forma de vida, realizar nossos desejos mais profundos de uma existência mais livre. Digo que se trata de uma perspectiva empobrecida e pálida da festa, pois essa experiência parece condenada ao puro narcisismo. Ignora o que se passa em outros carnavais da própria cidade, o carnaval da avenida, por exemplo.
Outro dia vi uma discussão que caracterizava o carnaval, em tom elogioso – diga-se de passagem –, como uma "orgia anárquica". Muito me intriga essa utilização equivocada do termo anarquia para designar a libertação dos indivíduos reprimidos, para esse discurso que eleva o sujeito, seus desejos, que o coloca acima do coletivo – colocando-o sobre uma espécie de pernas de pau metafísicas, para usar uma imagem típica desse carnaval. Existe todo um carnaval baseado nisso – e jamais diria que isso não é carnaval –, mas ele, em si, me interessa muito pouco. Veja bem, nada contra a libertação dos sujeitos de suas amarras, muito, mas muito pelo contrário, mas o carnaval não pode ser reduzido a isto, a essa libertação egoística e perecível. Reduzir o carnaval a isto seria incorrer no erro de afirmar a primazia de uma experiência local sobre a outra.
O carnaval que me interessa é o que se passa ao lado deste, o carnaval da avenida, que marca o momento em que esse agenciamento coletivo artístico conhecido como desfile atinge o seu auge. Veja bem, o auge, pois se trata de algo construído ao longo de todo um ano. Os afetos e perceptos que vemos na avenida não emergem do nada, e tampouco cessam ao fim do desfile (a vida nas escolas de samba vai muito, mas muito além do desfile). Enquanto o carnaval da "orgia anárquica" termina na quarta-feira de cinzas, este, o carnaval da avenida, recomeça imediatamente na quinta. Sua temporalidade é muito distinta. Neste carnaval, parafraseando a célebre frase do romance de Ursula K. Le Guin, "ser todo é ser parte". A escola, cada elemento, é um todo em si, mas um todo que só faz sentido conectado ao desfile. Mesmo o mestre-sala e a porta-bandeira, mesmo estes que são a parcela mais particular de uma escola (ao menos aquela que é julgada), mesmo estes só fazem sentido no todo do desfile, do enredo. O carnavalesco, nesse sentido, é uma espécie de regente, de maestro, que escolhe a peça a ser executada, dá os seus contornos plásticos, estabelece uma espécie de restrição estética ao desfile (define o seu tema, o enredo), mas o desfile em si, como um todo, ele lhe escapa.
Este carnaval da avenida, diria, é uma forma de arte supraindividual, em oposição à experiência superindividual da festa tal como desejada pela nossa imaginação pálida. E essa oposição me parece importante para responder à pergunta. O que o carnaval revela? Enquanto o discurso amplamente difundido se apega à redenção da castração pela folia, à libertação individual temporalmente localizada, observamos, ao lado desta, bem ao lado, a emergência de uma forma de arte coletiva, extremamente refinada, derivada do pensamento africano. Uma forma de arte que costuma ser reduzida a uma "festa", costuma ser enquadrada pelos não interessados como uma espécie de "orgia anárquica". Diríamos isso de “O Anel do Nibelungo”? Reduziríamos a sua execução a uma festa? Creio que não. Óbvio, a dimensão festiva, alegre, dessa forma de arte, dos desfiles, é essencial, contudo, não podemos reduzi-la a isto. Este discurso sobre o carnaval que exalta o indivíduo, sua libertação, e ignora os termos de uma outra forma de arte, desvela a incapacidade da nossa filosofia espontânea de experimentar outras formas de vida, de se deixar afetar por outras matrizes do pensamento, revela a nossa incapacidade de imaginar uma libertação dos indivíduos em termos realmente livres, não perecíveis, não egoísticos.
IHU On-Line - Como as pautas das minorias são apresentadas pelos enredos das escolas de samba? O que a apropriação dessas pautas pelas escolas de samba revela sobre o Brasil?
Orlando Calheiros - Tenho alguns problemas com essa questão. A primeira delas é a ideia de "pauta das minorias". A ideia de pauta me parece colocar a questão da vida das minorias única e exclusivamente pela via do Estado, pela via de suas demandas. Quando este não me parece ser o caso das escolas de samba. Ali se canta e, portanto, se pensa a vida, efetivamente, de seus integrantes e de seus semelhantes. E isso inclui as violências que eles sofrem e/ou sofreram. Ponto fundamental, as escolas de samba cariocas são o próprio espaço das minorias. Escolas de samba sempre foram os espaços dos periféricos, dos negros, dos pobres, dos LGBTs. O que não quer dizer que as escolas não reproduzam violências, coisas do tipo, mas qualquer um que já teve algum tipo de experiência nestes espaços, pelo menos a maioria, vai perceber que o pálido citadino carioca, felizmente, ali não é maioria (e não me refiro apenas ao aspecto numérico). Isso significa que não existe "apropriação" de qualquer sorte, o que existe, diria, são múltiplas reflexões sobre um fenômeno que eles conhecem bem, a opressão estatal, a discriminação, o racismo etc. Trata-se de elementos que lhes são extremamente familiares.
O que isso revela sobre o Brasil? De que no território nacional existe essa forma de arte coletiva altamente refinada, que reúne elementos das artes plásticas, da dança e da música, que costumeiramente canta a vida de seus integrantes ou de povos afins, em suma, e que isso inclui falar sobre as violências que eles sofrem costumeiramente.
Em 1969 a Império Serrano cantava "Passava a noite, vinha dia / O sangue do negro corria". E isso para ficarmos apenas na história dos desfiles.
“Heróis da Liberdade”, Império Serrano, 1969
Podemos ser mais abrangentes e dizer que o samba, entre outras coisas, canta as mazelas dos oprimidos, isto é, dos seus criadores. Bezerra da Silva dizia isso o tempo todo, o samba é a defesa do morro. E isso é algo notório. Pega o "Pedreiro Waldemar" de Roberto Martins e Wilson Baptista, de 1948, que dizia "Você conhece o pedreiro Waldemar? / Não conhece? / Mas eu vou lhe apresentar / De madrugada toma o trem da Circular / Faz tanta casa e não tem casa pra morar".
“Pedreiro Waldemar”, de Roberto Martins e Wilson Baptista, 1948
E poderíamos voltar ainda mais, os primeiros sambas já traziam essa marca. "Batuque na Cozinha" de João da Baiana, de 1917, já cantava a vida dos marginalizados pela sociedade, a vida nas casas de cômodo.
“Batuque na Cozinha", de João da Baiana, 1917
E, bem, poderíamos ir além, falar dos lundus que inspiraram os primeiros sambas, como o Lundu de Pai João do século XIX, "Quando iô tava na minha terá / Comia mia garinha / Chega na terra dim baranco / Carne seca com farinha". Então, assim, pensar a violência, o racismo, a opressão está no DNA do samba, não é algo que se iniciou agora, é coisa de séculos.
IHU On-Line - Durante o carnaval, o senhor criticou análises que reduziram alguns sambas-enredo e o carnaval em geral a mera manifestação e crítica política. Pode nos falar um pouco sobre esse fenômeno? Como e por que isso acontece e em quais grupos identifica esse tipo de análise do carnaval?
Orlando Calheiros - Não é segredo que de uns tempos para cá, especialmente a partir de 2018, o desfile das escolas de samba, de algumas, pelo menos, caiu nas graças de uma parcela da militância política alinhada à esquerda. Até aí nada de errado, muito pelo contrário, toda atenção é bem-vinda, especialmente aquela que emerge de setores que até outro dia repetiam toda sorte de impropérios contra essa forma de arte. E nem estou me referindo ao clássico e repisado "o carnaval é o ópio do povo", isso é "pão e vinho"; falo até de coisas mais recentes, como a reação de uma parcela da militância quando a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro - Liesa – com a exceção do presidente da Portela – resolveu decretar seu apoio ao então candidato Marcelo Crivella para a prefeitura carioca. Chegaram a decretar que os desfiles estavam superados, que era apenas uma questão de tempo até que desaparecessem, que se tratava de coisa para "turista" etc. Enfim, acho muito positivo observar uma mudança de posicionamento. E digo isso sem nenhuma ironia. Os meus problemas começam quando apenas os desfiles explicitamente alinhados com os valores destas esquerdas passam a ser considerados "genuínos", enquanto outros são reduzidos ao velho discurso folclorista sobre o carnaval. Aí você vê um desfile profundamente medíocre, como o da São Clemente deste ano, sendo ovacionado pura e simplesmente pelo fato de ter criticado explicitamente o atual Presidente da República. Se o criticado fosse um político de esquerda, a resposta seria a mesma?
Por outro lado, esse discurso ignora sumariamente a própria potência artística e criativa dos enredos e desfiles. Por exemplo, Guernica é um grande quadro apenas por retratar os horrores da guerra? Alguém diria isso? Não, diriam que Guernica é um grande quadro que, dentre outras coisas, traz consigo uma mensagem política. E por que falo disso? Pois da mesma maneira são os desfiles. A Mangueira fez um desfile absolutamente histórico em 2019, com o político "Histórias para Ninar Gente Grande", mas a Portela também o fez em 1984 com o "Contos de Areia", um enredo sobre três notórios portelenses, Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes. E isso não é tudo, pois quando olhamos para a história dos desfiles, o enredo de 1984 teve muito mais impacto sobre a arte dos desfiles do que o de 2019 – da mesma maneira que podemos dizer que Les Demoiselles d’Avignon teve muito mais impacto no desenvolvimento das artes plásticas do que Guernica. O ponto é: ao medirmos a potência de um desfile meramente por suas afinidades políticas, ignoramos todo o resto. E é justamente esse elemento ignorado que importa para os realizadores desta arte.
“Histórias para Ninar Gente Grande”, Mangueira, 2019
“Contos de Areia”, Portela, 1984
IHU On-Line - O senhor disse durante o carnaval que "a sensibilidade das esquerdas elitistas só consegue reconhecer no carnaval, nos desfiles, a redenção do alinhamento político, da resistência em termos folclóricos, jamais traços de uma forma de arte genuína”. Pode explicitar melhor essa ideia: quem são as esquerdas elitistas e que acontecimentos ocorridos neste carnaval exemplificam a sua crítica?
Orlando Calheiros - São justamente estas que ora reduzem a arte dos desfiles ao seu alinhamento político, ignorando todo o resto. Inclusive, ignorando a mensagem cosmopolítica do samba. Um exemplo: reconhecem a potência do desfile da Mangueira de 2019, pois o seu alinhamento é óbvio, é claro, é algo que certas esquerdas de imaginação pálida conseguem perceber de imediato como "político", mas ignoram sumariamente a potência de outro desfile recente da Mangueira (e do próprio Leandro Vieira), o "Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá" de 2016.
“Maria Bethânia: A Menina dos Olhos de Oyá”, Mangueira, 2016
Aos olhos dos não interessados é apenas mais um desfile biográfico, mas o que se passou na avenida foi outra coisa: um desfile que "estranhamente" começava com 15 bailarinas negras, guerreiras de Iansã, o mestre-sala e a porta-bandeiras vieram de iaôs, o samba dizia "a sua força me invade/ O vento sopra e anuncia". O que se passou? Bem, o carnavalesco optou por uma forma diferenciada de narrar a vida da cantora, no lugar de uma tradicional narrativa cronológica, optou pela perspectiva de sua relação com o candomblé, mais especificamente, como um desdobramento de sua relação íntima e profunda com a dona de seu ori, Oyá. O desfile estabeleceu uma indiscernibilidade entre a cantora e a orixá, produzindo uma obra única. Isso é toda uma outra forma de se contar uma história, é toda uma inovação na linguagem da arte. Mas isso tudo foi amplamente ignorado. O pior disso é que quando olhamos para os dois desfiles, de 2019 e 2016, vemos que eles têm muito em comum, que trabalhavam fundamentalmente com a possibilidade de se fundar uma outra história, e por meio dessa outra história um outro mundo. Inclusive, o desfile deste ano, sobre Jesus, retomou o tema. Então, me digam, por que desafiar a univocidade da narrativa ocidental por si só já não é um ato político? Imagino que se o desfile tivesse se focado em narrar a vida da cantora por meio de conceitos do feminismo ele seria considerado político, mas por que afirmar a importância da sua relação com Oyá não é lido dessa maneira?
E aqui atingimos um ponto fundamental: para compreender os desfiles é preciso conhecer o mínimo das religiões de matriz africana. Não é um elemento secundário, é algo central dos desfiles. Da batida das caixas, que derivam dos toques dos terreiros, dos orixás que são invocados nas letras dos sambas, da própria estética das fantasias, que em muitos casos deriva diretamente das roupas feitas para as saídas de orixás, os capacetes, as indumentárias etc. E sabemos que as esquerdas têm uma relação bastante complexa com as religiões de matriz africana, ora demonizando-as (vide toda discussão sobre imolação de animais), ora, movimento epistemicida, reduzindo-as a uma espécie de manifestação folclórica que pouco tem a contribuir com a nossa filosofia política, a nossa arte.
IHU On-Line - Entre grupos de direita também é possível identificar algum tipo de discurso ou análise sobre o carnaval? Como grupos políticos de direita compreendem e se relacionam com o carnaval?
Orlando Calheiros - Depende do que você considera grupos de direita, grupos políticos de direita. Por exemplo, a relação entre o jogo do bicho e o carnaval é notória, a Mocidade Independente de Padre Miguel traz ao lado do seu escudo um castor em homenagem ao falecido Castor de Andrade. E eu diria que integrantes do jogo do bicho podem ser considerados um grupo político bem efetivo no Rio de Janeiro, financiando eleições, estas coisas. Mas se você se refere aos grupos do tipo "bolsonarista", bem, ao menos nos que acompanho, a interpretação se aproxima daquela que descreve o carnaval enquanto uma "orgia anárquica", pior, uma "orgia anárquica patrocinada com verba pública". E isso seria bem negativo, por pressuposto.
IHU On-Line - Como o discurso da “resistência”, tão em voga no Brasil desde que a esquerda perdeu espaço na política, se manifesta, por outro lado, entre aqueles que fazem o carnaval acontecer há muitos anos? Ainda nesse sentido, qual é a potência do samba?
Orlando Calheiros - Daria para dizer que o samba da avenida fala de "resistência" muito antes dessa palavra entrar na moda. "Heróis da liberdade" da Império Serrano é de 69, "A Grande Constelação de Estrelas Negras" da Beija Flor é de 83, "Kizomba, a festa da raça" é de 88 e por aí vai. Inclusive, nesse mesmo ano, tivemos um enredo bastante interessante nesse sentido, "Cem anos de liberdade, realidade e ilusão”, que bradava "Pergunte ao criador / Quem pintou esta aquarela / Livre do açoite da senzala / Preso na miséria da favela", questionando o mito da democracia racial. Isso apenas para ficar nos enredos que a imaginação pálida de certas esquerdas consegue reconhecer como "político", que cantam a "resistência".
"A Grande Constelação de Estrelas Negras", Beija-Flor, 1983
“Kizomba”, Vila Isabel, 1988
Pois, já disse, o samba fala e pratica "resistência" desde os seus primeiros toques, está no seu DNA. Afinal, emerge de uma tradição maldita pela sociedade, em meio aos batuques que eram perseguidos pelo Estado. E assim o faz pois assim é a vida de seus inventores, os pretos, os mais pobres, os periféricos, estes que se recusaram a viver tão somente como instrumentos de trabalho dos mais ricos. Que disseram "não" e produziram arte. A fundação do samba, melhor, o seu fundamento, encontra-se nessa recusa ativa das forças opressivas da escravidão, do racismo, que, como bem cantaram os mangueirenses no supracitado "Cem anos de liberdade", permanecem nos dias de hoje.
IHU On-Line - Que tipo de críticas manifestadas pelos sambas-enredo são esquecidas ou não compreendidas pela esquerda? A sociedade em geral, especialmente aqueles que não gostam de política, conseguem compreender as críticas?
Orlando Calheiros - Eu jamais diria "pela esquerda", diria, por alguns setores à esquerda, especialmente aqueles incapazes de imaginar outras formas de vida, de reconhecer o seu valor. No geral estas esquerdas ignoram tanto o aspecto propriamente artístico dos carnavais da Sapucaí, reduzindo-os a uma espécie de manifestação popular, quanto os aspectos cosmopolíticos desse agenciamento. Eu toquei nisso quando falei de como, por exemplo, ignoram o carnaval da Mangueira de 2016 como "político", mas poderia citar um outro clássico, o carnaval de 1979 da Imperatriz Leopoldinense cujo tema foi "Oxumaré, a lenda do Arco-íris".
“Oxumaré, a lenda do Arco-íris”, Imperatriz Leopoldinense, 1979
Bem, para os não interessados, Oxumaré é um orixá do candomblé ketu. Temos assim todo um enredo, um desfile, não apenas dedicado à entidade, mas ao modo de vida que a circunda, ao candomblé, à vida do povo preto, periférico. Temos, nesse desfile, toda uma ruptura de ordem ontológica: fala-se ali de um outro mundo, um mundo que não é aquele da ciência moderna, tampouco o da metafísica cristã, um mundo onde o arco-íris é uma manifestação do próprio orixá. Um desfile, portanto, que canta e celebra uma outra forma de vida, um outro mundo que aquele sancionado pela imaginação pálida da sociedade envolvente. Um mundo condenado, marginalizado pelo racismo, mas que persiste, que inspira toda uma produção artística. Esse aspecto outro dos enredos, a potência deste ato costuma ser amplamente ignorada, infelizmente.
Eu não entendo o que significa compreender as críticas nessa pergunta. E isso de fato não me importa. O samba, os desfiles, mobilizam afetos, mobilizam suas comunidades, mobilizam aqueles que se deixam interessar. Algo lhes incomoda, lhes afeta, isso é muito mais importante do que a inteireza da crítica. Para ficarmos com o exemplo da Imperatriz. Ali se aprende sobre Oxumaré, se canta a sua saudação "arrobóboia, oxumarê", o pensamento dos interessados se amplia, se transforma. Muitos aprendem, ali, que existem outros mundos possíveis, outras formas de experiência, outras matérias de real para serem exploradas pelo seu pensamento. E esse é um ponto crucial do samba, dos desfiles, ao contrário de outras formas de arte, ele não aceita ser colocado no lugar da não experiência, como os museus – estou aqui citando uma discussão mobilizada por Agamben –, o samba-enredo é uma forma de arte que opera fundamentalmente no campo da experiência, da produção de afetos. E isso lhe importa mais do que, digamos, uma compreensão sociológica nos termos da nossa filosofia espontânea – que muitas vezes se limita a uma repetição vazia de bordões.
Vejamos o desfile campeão da Viradouro. Falou sobre as Ganhadeiras de Itapuã, falou sobre o papel fundamental, central, da mulher negra na luta contra o racismo ao longo da história brasileira, falou da cosmologia dos candomblés. Poderíamos dizer que ao fazê-lo atacou elementos centrais do patriarcado, do racismo, lutou contra a invisibilização e apagamento destas mulheres, do seu papel no passado e no presente. Só o fato de contar essa história já deveria ser concebido como uma crítica fundamental. Contudo, foi além disso. De agora em diante, para muitos e, sobretudo, para muitas, existe uma nova forma de vida, uma nova forma de existir, uma nova forma de lutar. Agora existem as Ganhadeiras, existe Oxum, existe a vida e a criatividade dessas mulheres que disseram "preferiria não" para a estrutura racista e patriarcal da nossa sociedade. O desfile inscreveu uma diferença na vida de muitos e muitas.
IHU On-Line - O senhor pesquisa povos indígenas. Como o índio é retratado no carnaval?
Orlando Calheiros - Aqui é preciso fazer uma distinção, pois, por vezes, os "indígenas" que aparecem nos desfiles não são exatamente os indígenas, digamos, em sua existência atual, mas os caboclos, entidades presentes em diversas religiões de matriz africana. Isso, por exemplo, ocorreu no desfile deste ano da Grande Rio, que retratava a vida de Joãozinho da Gomeia, grande babalorixá de candomblé angola. "É pedra preta / Quem risca ponto nesta casa de caboclo / Chama flecheiro, lírio e arranca toco / Seu ‘serra negra’ na jurema, juremá". O samba canta o nome de diversas destas entidades. A representação destes segue os padrões estabelecidos nos rituais religiosos.
“Vida de Joãozinho da Gomeia”, Acadêmicos da Grande Rio, 2020
Contudo, quando se trata dos povos indígenas, como no desfile da Portela deste ano, a maioria dos enredos ainda tropeça em clichês, em certos primitivismos; ainda que a imagética tenha se afastado dos clássicos "apaches" dos faroestes dos anos 50, ainda tem muito que avançar nesse sentido. E isso, tudo indica, deve ser um campo de atenção para os próximos carnavais.
Contudo, é importante salientar o papel que os desfiles têm na difusão da causa indígena e arregimentação de aliados para a causa. E digo isso com muita propriedade, pois o meu primeiro contato com a causa foi, justamente, por meio de um samba-enredo, o "Como era verde o meu Xingu" de 1983 da Mocidade Independente de Padre Miguel, que bradava "Deixe nossa mata sempre verde / Deixe o nosso índio ter seu chão". Em 2017 a Imperatriz gerou protestos do agronegócio brasileiro com o seu enredo “Xingu — O clamor que vem da floresta”, o samba dizia “O belo monstro rouba as terras dos seus filhos / devora as matas e seca os rios / tanta riqueza que a cobiça destruiu!”, ao mesmo tempo que tinha uma ala intitulada “Fazendeiros e seus agrotóxicos”. O desfile da Imperatriz, apesar de não ter sido dos melhores, trouxe uma denúncia importante, fundamental, a ponto de incomodar os gigantes do agro.
“Como era verde o meu Xingu”, Mocidade Independente de Padre Miguel, 1983
“Xingu — O clamor que vem da floresta”, Imperatriz Leopoldinense, 2017
IHU On-Line - Que diferenças percebe entre o carnaval do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Minas Gerais e do Nordeste?
Orlando Calheiros – Infelizmente, o meu parco conhecimento destes outros carnavais não me permite falar nada sobre isso. E que fique registrado que não se trata de falta de vontade, mas de falta de oportunidade. Gostaria muito de poder conhecer o carnaval baiano ou recifense, por exemplo.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Orlando Calheiros - Sim, de que gostaria que as pessoas estivessem mais atentas para a criatividade do chamado populacho, interessados pelas artes que emergem das regiões periféricas. E não de uma forma folclórica, epistemicida, mas de uma maneira genuína. E que isso, se interessar, significa efetivamente aprender com estas artes, deixar que elas produzam uma diferença no seu entendimento.