Por: Patricia Fachin | 29 Março 2017
As operações Lava Jato e Carne Fraca, em sua “essência”, buscam atingir a “medula do sistema patrimonialista brasileiro” e “combatem a mesma cadeia de corrupção que envolve agentes públicos (políticos, dirigentes e técnicos) e empresários (inclusive, os intermediários)”, defende o economista Reinaldo Gonçalves na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Crítico da política primário-exportadora brasileira, que incentiva, através do desenvolvimento da pecuária e do agronegócio, os grandes gigantes econômicos, Gonçalves avalia que elas são a “expressão do fracasso do Brasil no século XXI” e frisa que, no país, “o tratamento preferencial para grandes grupos econômicos gera ineficiência sistêmica, corrupção e desigualdade de riqueza e renda”.
Diante das crises econômica e política, avalia, o país e “as forças progressistas, em particular, pagam o preço de escolhas erradas, silêncios, covardias, ignorâncias, cumplicidades e corrupções”, mas o “dado fático é que, no Brasil atualmente, a sociedade civil organizada é fraca, e não há partidos e dirigentes com um mínimo de legitimidade e capacidade para condução de um projeto alternativo”. A universidade, em contrapartida, critica, “está ocupada pela Antirrepública”, e a “esquerda brasileira, dentro e fora das universidades, não tem mais propostas consistentes, está desorientada”. E alfineta: “Parte da esquerda também foi contra o impedimento de Dilma, defende a Odebrecht, JBS etc. e critica a Operação Lava Jato e as instituições republicanas. Só falta defenderem os grandes bancos”.
O “foco da pouca potência das forças progressistas”, sugere, deveria ser o de “fortalecer as instituições republicanas, acabar com o foro privilegiado, promover reformas políticas que enfraqueçam as oligarquias partidárias, apoiar a legislação anticorrupção do MPF e defender as operações Carne Fraca, Lava Jato e outras do gênero. (...) Precisamos da Lava Jato dos bancos, das empresas de telecomunicações, dos planos de saúde etc.”
Reinaldo Gonçalves | Foto: UFRJ
Reinaldo Gonçalves é formado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Economia pela Fundação Getúlio Vargas – FGV-RJ e doutor em Letters and Social Sciences pela University of Reading, na Inglaterra. Atualmente leciona Economia Internacional na UFRJ. É autor de, entre outras obras, Economia internacional. Teoria e experiência brasileira (Rio de Janeiro: Elsevier, 2004), Economia política internacional. Fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil (Rio de Janeiro: Elsevier, 2005) e Economia Política Internacional (Rio de Janeiro: Elsevier, 2016, edição revista e atualizada).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Que leitura o senhor faz da Operação Carne Fraca? O que esses escândalos demonstram sobre o Brasil?
Reinaldo Gonçalves - Devemos ficar felizes sempre que criminosos são punidos. Esse é mais um exemplo da corrupção sistêmica: políticos indicam agentes públicos para cargos de direção; dirigentes nomeiam agentes públicos; que, por seu turno, envolvem-se com empresários. As mercadorias negociadas são: tráfico de influência, ascensão funcional, subornos, propinas, doações e fraudes. A corrupção tem formas diversas (nem sempre na forma pecuniária) e é usada para mover a política e os negócios. É mercadoria procurada e vendida por agentes públicos e empresários. O controle de agências reguladoras é uma mercadoria no Brasil. O objetivo da corrupção é a fraude.
Na cadeia produtiva da carne, irregularidades, fraudes e crimes começam no pasto (rastreabilidade etc.); passam pelos frigoríficos (processo de produção); supermercados (que desligam freezer à noite); e restaurantes (servem carne com prazo de validade vencido). O resultado é evidente na saúde do brasileiro: disenterias, infecções alimentares e mortes. Vale notar que somente uma pequena minoria de frigoríficos brasileiros tem certificação internacional. É pena que flagraram pouco mais de vinte frigoríficos, inclusive, alguns que exportam.
IHU On-Line - Como a esquerda em geral tem reagido à Operação Carne Fraca? Parte da esquerda tem adotado um discurso de defesa da indústria nacional, argumentando que esse tipo de operação prejudica as atividades das empresas. Que leitura o senhor faz desse tipo de discurso?
Reinaldo Gonçalves - Da mesma forma que a carne de alguns frigoríficos, a esquerda brasileira (grande parte) também está contaminada. Proteger criminosos, sob qualquer pretexto, é inqualificável. Criminosos têm que ser punidos com o rigor da lei. Ponto. Qualquer argumentação em contrário é apodrecimento mental e ético.
IHU On-Line - Uma das políticas econômicas adotadas no governo Lula foi o incentivo a grandes empresas nacionais e multinacionais, financiadas pelo BNDES, e à época se falava da importância de o Brasil ter “gigantes nacionais”, a exemplo da JBS e da Brasil Foods, no ramo alimentício, mas também em outros setores, a exemplo das empresas de Eike Batista. Naquele momento, os economistas divergiram acerca dessa política. Hoje, já é possível fazer um balanço de quais foram as consequências desse aporte aos gigantes nacionais?
Reinaldo Gonçalves - Há décadas já sabemos que há duas condições necessárias para o êxito da política dos campeões nacionais. A primeira é o princípio da “cenoura e vara” (carrot and stick). Os que recebem os incentivos, subsídios e privilégios (cenoura) precisam alcançar as metas de desempenho, caso contrário, são punidos (vara). A segunda condição é que os grupos favorecidos não podem capturar os agentes públicos envolvidos diretamente nos esquemas de incentivos; ou seja, o princípio básico para o êxito dessa política é o distanciamento entre o Estado e os grupos econômicos privilegiados (arm´s length principle, na literatura). Os analistas críticos da política de campeões nacionais sabem que o sistema brasileiro (patrimonialista, nepotista, clientelista e corrupto) contraria ambos os princípios.
O que existe no país é a intimidade e a promiscuidade entre agentes públicos e grupos dominantes. Cada grupo tem sua coleção de serviçais, despachantes e prestadores de serviços no setor público (são os amigos, os italianos etc.). O resultado é que a política nasce contaminada já que a impunidade é garantida. No Brasil o tratamento preferencial para grandes grupos econômicos gera ineficiência sistêmica, corrupção e desigualdade de riqueza e renda.
IHU On-Line - Recentemente o New York Times declarou que a Operação Carne Fraca lança dúvidas sobre a indústria do agronegócio no Brasil, que tem sido um dos grandes pilares da economia brasileira. É possível estabelecer alguma relação entre os casos de corrupção denunciados pelas Operações Carne Fraca e Lava Jato e o surgimento dos gigantes nacionais?
Reinaldo Gonçalves - O sucesso da pecuária, o agronegócio e a exportação de asa de frango, picanha etc. é a expressão do fracasso do Brasil no século XXI. É a especialização regressiva, o retorno da economia primário-exportadora, o modelo turbinado Centro-Periferia, o modelo de crescimento instável e empobrecedor. Na essência as Operações Carne Fraca e Lava Jato combatem a mesma cadeia de corrupção que envolve agentes públicos (políticos, dirigentes e técnicos) e empresários (inclusive, os intermediários).
A Operação Lava Jato é o evento mais importante da História do Brasil desde o processo de redemocratização em meados dos anos 1980. Ela atinge a medula do sistema patrimonialista brasileiro. É um raro exemplo da prática dos princípios republicanos com servidores públicos cumprindo suas obrigações. Essas operações sinalizam que nem tudo está perdido e que a sociedade brasileira precisa focar no combate a tratamento preferencial, privilégio e impunidade.
Em relação à cadeia produtiva da carne, vale lembrar que a pecuária brasileira é campeã nas práticas de desmatamento (portanto, poluição – arco do boi = arco do desmatamento na Amazônia). As fazendas e as construtoras dominam a lista suja do trabalho escravo elaborada pelo Ministério do Trabalho. A Sociedade Mundial de Proteção Animal fez campanha sobre maus-tratos a animais na exportação de boi vivo. O professor José Roberto Novaes da UFRJ tem inúmeros estudos que mostram as deploráveis condições de trabalho nos frigoríficos em que acidentes e lesões são recorrentes.
Em relação aos crimes dos empresários da pecuária e agroindústria, o cidadão não deve relativizar (como faz a grande imprensa focada nas verbas de publicidade), nem minimizar (como faz o governo focado na defesa dos interesses próprios e dos setores dominantes). Ganha um sanduíche de mortadela com salmonela quem disser que ficou surpreso com os atos ilícitos dos frigoríficos.
IHU On-Line - O governo Temer tem conseguido ou não retomar as rédeas da economia? Que avaliação o senhor faz das medidas adotadas pelo governo para retomar o crescimento da economia e conter a recessão?
Reinaldo Gonçalves - O que esperar de um presidente que foi escolhido por Lula para ser vice da Dilma? Aqueles que votaram em Dilma são corresponsáveis pelas medidas adotadas pelo governo Temer. Eu me arrependi profundamente – e me envergonho – de ter votado em Lula em 2002. Não votei nele em 2006 e também não votei na Dilma em 2010 e 2014. Os meus trabalhos e livros apontam, inequivocamente, para a trajetória de instabilidade e crise gerada por esse governo (A Economia Política do Governo Lula, coautoria com Luiz Filgueiras, em 2007; Desenvolvimento às Avessas, 2013).
Ademais, os estudos sobre o reequilíbrio pós-impedimento mostram que em 60% dos casos há retomada do crescimento nos dois anos seguintes ao impedimento. Os estudos mostram também que medidas liberalizantes que fragilizam o tecido social e a economia reduzem a capacidade de recuperação e, inclusive, são fontes de instabilidade política. Ocorre que a herança de Dilma é desastrosa e, portanto, qualquer resultado, ainda que medíocre (por exemplo, estagnação da economia e estabilidade do desemprego em níveis elevados), é melhor que a queda no abismo em que estávamos.
Não há dúvida que a economia brasileira precisava de um ajuste forte e o impedimento é uma oportunidade nessa direção. Ocorre que o atual governo (inclusive, a equipe econômica) é ruim. No entanto, o governo Temer será menos ruim que o governo Dilma. O trágico é que ele, além do ajuste macroeconômico, está se aproveitando para adotar medidas que terão sérias consequências negativas no longo prazo (privatização com agências reguladoras frágeis, desnacionalização, previdência, reforma política etc.).
IHU On-Line – Os dois últimos anos da economia brasileira foram apontados como os piores do ponto de vista recessivo. Quais serão as consequências disso para os anos futuros? É possível estimar quanto tempo a economia brasileira vai demorar para retornar aos níveis anteriores de crescimento?
Reinaldo Gonçalves - Casos semelhantes de pós-impedimento indicam algo como dois anos para recuperação do nível de atividades e melhora das finanças públicas, emprego e balanço de pagamentos. A redução da inflação e a recuperação do investimento são processos mais lentos. No Brasil a trajetória de profunda recessão herdada do governo Dilma é, sem dúvida alguma, a principal causa de queda da inflação e do baixo nível de investimento. O custo, naturalmente, é a manutenção de altas taxas de desemprego por um período mais longo. Ou seja, endividados e desempregados continuarão sofrendo no médio prazo.
IHU On-Line - O senhor sempre fez muitas críticas às políticas econômicas dos governos Lula e Dilma. Hoje, no campo econômico, que propostas a esquerda tem para o Brasil?
Reinaldo Gonçalves - O apodrecimento de parte da esquerda brasileira está na herança desastrosa do governo Lula, juntamente com o invertebramento da sociedade civil, o aprofundamento do patrimonialismo e da corrupção e o retrocesso estrutural na economia, como discuto no livro Desenvolvimento às Avessas (Rio de Janeiro: LTC, 2013). O governo Lula foi uma tragédia em termos econômicos, políticos, institucionais, sociais e éticos. Propaganda enganosa: redução da desigualdade e da vulnerabilidade externa, política externa independente, desenvolvimentismo etc. Por exemplo, em trabalhos recentes analiso a relação entre política externa no governo Lula, exportação de bens, internacionalização de empreiteiras e corrupção (Cooperação Sul-Sul, Mercosul e Relações Comerciais Bilaterais do Brasil. Fracasso da Política externa do PT; Política externa, viagens internacionais do presidente Lula e comércio exterior. O fiasco do caixeiro-viajante; e Diplomacia presidencial, corrupção, internacionalização das empreiteiras e perda de poder do Brasil no sistema internacional). (Veja aqui mais textos para a discussão).
Os governos do PT implicaram grande retrocesso da projeção internacional do país e também das organizações progressistas e do pensamento crítico. Exemplo: a universidade, locus privilegiado do pensamento crítico, está ocupada pela Antirrepública. Quem diria, a República abandonou a universidade e vive agora na Polícia Federal. A esquerda brasileira, dentro e fora das universidades, não tem mais propostas consistentes, está desorientada.
IHU On-Line - Ciro Gomes seria uma alternativa à esquerda? Já é possível tatear qual seria o direcionamento econômico de seu possível governo?
Reinaldo Gonçalves - Somente a esquerda demenciada pode propor isso. Por que propor uma reles cópia borrada e não o original (Collor)? Pior que isso somente a candidatura de Lula em 2018. Perderam o senso do ridículo. Além da esquerda desorientada (os que não entenderam a herança desastrosa de Lula e Dilma e querem errar, errar de novo e errar pior), há a esquerda apodrecida (os que se corromperam com ascensão na carreira, contratos, doações, subornos, propinas etc.) e a esquerda demenciada. Parte da esquerda também foi contra o impedimento de Dilma, defende a Odebrecht, JBS etc. e critica a Operação Lava Jato e as instituições republicanas. Só falta defenderem os grandes bancos.
Esquerda apodrecida, demenciada e desorientada. O poder é relacional e até no hospício há relações de poder: a direita avança no Brasil porque tem o mínimo de lucidez que a esquerda perdeu. Olha a tragédia aí, gente: até a direita liberaloide está mais consistente que a esquerda brasileira atualmente.
IHU On-Line - Existe oportunidade para o Brasil retomar o crescimento econômico e investir num novo caminho neste momento? Quais e que caminhos seriam adequados para o país?
Reinaldo Gonçalves - O país está à deriva há muitos anos em consequência dos governos do PT. Por isso precisamos da punição de Dilma e Lula. O país em geral e as forças progressistas, em particular, pagam o preço de escolhas erradas, silêncios, covardias, ignorâncias, cumplicidades e corrupções. O preço é alto e pago em longas prestações. Naturalmente, as reforminhas capengas e liberalizantes do governo Temer só fragilizam ainda mais o país, que está doente e desmoralizado. E, para agravar o quadro de expectativas, desde o governo Lula o Brasil está sendo vendido para os chineses! Esses bucaneiros do século XXI criarão muitos e graves problemas para os brasileiros no futuro.
O dado fático é que, no Brasil atualmente, a sociedade civil organizada é fraca, e não há partidos e dirigentes com um mínimo de legitimidade e capacidade para condução de um projeto alternativo. É perda de tempo ficar discutindo propostas alternativas já que a capacidade de luta é quase nula. Os conservadores (apoiados pelos bancos) devem continuar dominando a cena política brasileira no horizonte previsível. Entretanto, as forças progressistas que restam não podem ficar inertes. No curto e médio prazos, o foco da pouca potência das forças progressistas é fortalecer as instituições republicanas, acabar com o foro privilegiado, promover reformas políticas que enfraqueçam as oligarquias partidárias, apoiar a legislação anticorrupção do MPF e defender as operações Carne Fraca, Lava Jato e outras do gênero que, espero, continuem ocorrendo. Precisamos da Lava Jato dos bancos, das empresas de telecomunicações, dos planos de saúde etc.
O foco é o combate à corrupção, impunidade, ineficiência sistêmica, democracia de baixa qualidade e república de baixa estatura. Em particular, a Operação Lava Jato é fundamental para que agentes públicos, políticos e grandes empresários criminosos sejam punidos exemplarmente. A punição da canalhocracia fragiliza grupos econômicos dominantes, corruptos e ineficientes e rompe ou abala suas associações criminosas com agentes públicos, políticos, sindicalistas e intelectuais. Precisamos de penas pesadas para agentes públicos, políticos corruptos do PT, PSDB, PMDB etc. e para empresários e executivos de grandes grupos econômicos, mesmo que isso signifique o enfraquecimento do grande capital.
É preciso quebrar a medula do patrimonialismo. Sem limpeza política e ética não haverá Brasil; melhor dizendo, haverá a versão piorada do Brasil das últimas duas décadas ̶ fracasso civilizatório evidente e crescente (violência, corrupção, instabilidade, cinismo, hipocrisia, desperdício, desmoralização, desesperança, barbárie etc.)! Para alguns isso pode parecer exagerado; mas, a propósito, durante os 60 minutos dessa entrevista, sete brasileiros (alguns trabalhadores desempregados) foram assassinados por outros 7, 14, 21 ou 28 brasileiros! A taxa é alta pelos padrões internacionais.
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Lava Jato e Carne Fraca atingem a medula do sistema patrimonialista. Entrevista especial com Reinaldo Gonçalves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU