20 Julho 2014
“A crença na própria superioridade ideológica, em termos de politização, ou superioridade moral, em termos de desinteresse altruísta, acaba levando parte da esquerda ao autoritarismo, dissociando meios e fins”, constata o pesquisador.
Foto: www.notibras.com |
As reações policiais e jurídicas aos protestos realizados durante a Copa do Mundo, especialmente na final da Copa do Mundo, no Rio de Janeiro, são classificadas como práticas de Estado de exceção no país por alguns manifestantes e intelectuais. Entre eles, destaca-se Bruno Cava, blogueiro do Quadrado dos Loucos e ativista que acompanha as manifestações desde junho de 2013.
“Alguém ser preso pelo que pode vir a fazer, pelo que o Estado julga que possa vir a fazer, não deixa de significar ser preso pelo que ‘não fez’. Esse é um indício forte de que a exceção está se tornando a regra, em matéria de manifestações”, diz à IHU On-Line.
Segundo ele, as ações da polícia abrem “a possibilidade para que qualquer um envolvido em lutas políticas, qualquer um exercendo seu dissenso democrático, seja criminalizado pelo que pode vir a fazer, pelo que seus colegas de movimento ou coletivo podem vir a fazer. Muita coisa, afinal, pode sempre vir a acontecer nas ruas e nos protestos, especialmente diante de uma polícia superviolenta que não hesita em gerar o caos e intensificar a violência”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Bruno Cava comenta os protestos do último final de semana na Praça Sáenz Peña, Rio de Janeiro, e as razões das manifestações terem menos eco durante a Copa do Mundo. “Quem gritava ‘Não vai ter Copa’ não acreditava que poderia barrar o megaevento, como se a expressão devesse ser tomada ao pé da letra. Talvez os únicos que cogitaram isso, que a ideia fosse frustrar o evento, foram as forças ligadas ao governo, receosas ou verdadeiramente paranoicas com o estrago que uma repetição de junho poderia causar no meio da Copa do Mundo”. Para ele, “há uma fetichização” em torno das manifestações de junho de 2013, “como se fosse possível sustentar manifestações de 100, 200 ou 500 mil pessoas todos os meses”. A questão a ser pensada nesse momento, enfatiza, é “como, com que novas formas, organizar a potência e os desejos que os protestos exprimiram, numa direção construtiva e afirmativa de alternativas para a democracia?”
Pós-Copa do Mundo, Cava pontua que as eleições, o segundo grande momento do ano no país, “podem acabar sendo apenas frustrantes, ao não enfrentar pautas reais e urgentes. Corre-se o risco, como nunca antes, de o debate eleitoral ficar apenas em acusações mútuas, no personalismo, na lógica do ‘menos pior’”. Entre as razões da atual conjuntura, ressalta o fato de a esquerda ser como “um caramujo dentro da concha, essa esquerda guarda a reserva mental de que, embora esteja inteiramente comprometida num pacto conservador, com aliados cada vez mais à direita, e cada vez mais íntimos e indispensáveis, e embora esteja executando um programa autoritário de repressão política, ainda assim, ainda nutra uma vaga boa consciência de que, ao fim e ao cabo, trabalhe para os pobres, para o ‘povão’”.
Bruno Cava é graduado e pós-graduado em Engenharia de Infraestrutura Aeronáutica pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica - ITA, graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e mestre em Direito na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito. É blogueiro do Quadrado dos Loucos e escreve em vários sites; é ativista nas jornadas de 2013 e nas ocupas brasileiras em 2011-2012; participa da rede Universidade Nômade e é coeditor das revistas Lugar Comum e Global Brasil.
Confira a entrevista.
Foto: surgiu.com.br |
IHU On-Line - Como aconteceram as manifestações e, em contrapartida, qual foi a reação da polícia na Praça Sáenz Peña, no Rio de Janeiro, durante a final da Copa do Mundo? Você menciona que houve um cerco da polícia aos manifestantes. Pode nos relatar como ocorreu?
Bruno Cava - Grupos ativistas diferentes convergiram na Praça Sáenz Peña naquela tarde: coletivos de favelas protestando contra violência policial, racismo e crimes cometidos por agentes das Unidades de Polícia Pacificadora - UPPs, midiativistas brasileiros e estrangeiros, coletivos anarquistas, frentes autonomistas e assembleístas, militantes dos comitês populares da Copa, militantes de alguns partidos da oposição de esquerda, educadores em greve, punks, arteativistas, entre outros. O lugar próximo do Maracanã aproveitava a visibilidade do jogo para manifestar o dissenso ante a maneira como o mundial foi organizado e realizado.
A polícia aplicou a tática do "kettling", que já tinha sido usada em São Paulo e Belo Horizonte. É fechado um perímetro com barreiras, onde os manifestantes ficam confinados, imobilizando o protesto. Ninguém entra, ninguém sai, o direito de ir e vir é suspenso, como num estado de sítio. A ideia é cansar os manifestantes, forçá-los a negociar a liberdade. A situação realmente causa uma tensão grande, devido à sensação de estar encurralado.
No domingo, conforme profusão de relatos e vídeos, depois de fechar o cerco, vários manifestantes foram ameaçados, xingados e agredidos por policiais, alguns tiveram equipamentos de mídia quebrados e até roubados. A situação perdurou até o final da partida no estádio, quando o cerco foi levantado, e as pessoas puderam sair.
IHU On-Line - Quem foram as 26 pessoas com mandado de prisão determinado na véspera (19 cumpridos com as prisões, 7 foragidos) e quais foram as razões das prisões?
“Uma lógica golpista: dá-se um golpe nas instituições democráticas para preservá-las, e assim por diante”
Bruno Cava - Os 26 mandados de prisão, dos quais 19 foram efetivamente cumpridos com o encarceramento das pessoas, foram dirigidos a ativistas de movimentos do Rio de Janeiro, que já eram objeto de investigações de caráter político, principalmente pela delegacia especializada em crimes de informática, desde pelo menos o segundo semestre de 2013, como consequência das jornadas de junho. Os presos são uma amostragem da diversidade de vários grupos atuantes da cidade, e as prisões ocorreram na véspera da final, o que sugere uma estratégia de intimidação.
Talvez a operação tenha sido motivada pela velha tática da decapitação, a fim de cortar os supostos “cabeças” do movimento, embora os movimentos em questão sejam mais horizontalizados e multifacetados, como uma hidra, você corta uma cabeça e nascem duas.
Ou talvez não tenha sido apenas para tirar esses ativistas de circulação, como também para disseminar o medo entre os demais, de maneira geral, apostando na desmobilização pelo "susto".
Vale lembrar que, em cinco de setembro do ano passado, foram presos, em casa, três administradores da página Black Bloc RJ no Facebook, por "formação de quadrilha armada".
Na ocasião, além de camisetas pretas, máscaras e "material usado em manifestação" (como consta nos autos), foi encontrada uma faca na casa de um dos presos, além de uma mistura de Durepox e pregos que podem ser usados para furar pneus. As prisões aconteceram na antevéspera dos protestos marcados para o 7 de setembro, que chegaram a reunir duas mil pessoas na Avenida Presidente Vargas, perturbando o desfile. Uma semana depois, os três foram liberados: se verificou que as prisões não tinham sustentação. Essa mesma acusação, "formação de quadrilha armada", foi usada agora para prender os ativistas; o fundamento agora é que, numa das casas, foi encontrada uma arma de fogo. Só que a arma, com a licença vencida, era do pai de uma das acusadas. Assim como em 2013, uma vez passado o evento, a final da Copa, os presos começam a ser liberados mediante concessão de habeas corpus, revelando a ausência de fundamentação real.
É difícil saber a extensão e profundidade, já que as ações são na maioria dos casos secretas, mas um dos "legados" da repressão às jornadas de junho foi a instauração de um inquérito-mãe que, sob a justificativa de coibir os tais "black blocs", passou a investigar indiscriminadamente as formas de organização e mobilização de manifestações, protestos e coletivos de luta por direitos. Essa investigação conta com trâmite facilitado e boa vontade de agentes do estado de outras instituições, de forma que são autorizados grampos, quebras de privacidade, ações de busca e apreensão e, eventualmente, prisões. Quando se pretende criminalizar alguém ou um subgrupo específico, o inquérito-mãe é desmembrado, para salvaguardar o tronco principal da investigação, constituído por um banco de dados sobre manifestações, manifestantes e seus dados pessoais, fotos, perfis nas redes sociais, endereços, relatórios. Aparentemente, a arapongagem tem duração indefinida e vem sendo prorrogada, como uma espada de Dâmocles, algo talvez próximo à atuação histórica de polícias secretas (sempre políticas), em regimes autoritários. Não é algo que acontece apenas no Rio de Janeiro.
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“O cerco de praças define o espaço de anomia, onde a violência se descola do estado de direito para, paradoxalmente, reafirmá-lo como imputação” |
IHU On-Line - Quais são os indícios de práticas de Estado de exceção no Brasil?
Bruno Cava - Alguém ser preso pelo que pode vir a fazer, pelo que o Estado julga que possa vir a fazer, não deixa de significar ser preso pelo que “não fez”. Esse é um indício forte de que a exceção está se tornando a regra, em matéria de manifestações. É como em "Minority report": o criminoso é punido antes que o crime aconteça. Seria ótimo, né? Só que não. O nosso sistema penal não é dirigido pelos Pre-Cogs do filme. Abre-se a possibilidade para que qualquer um envolvido em lutas políticas, qualquer um exercendo seu dissenso democrático, seja criminalizado pelo que pode vir a fazer, pelo que seus colegas de movimento ou coletivo podem vir a fazer. Muita coisa, afinal, pode sempre vir a acontecer nas ruas e nos protestos, especialmente diante de uma polícia superviolenta que não hesita em gerar o caos e intensificar a violência.
Talvez esse seja um legado autoritário da Copa que, aos poucos, vai se decalcando na paisagem, se tornando a normalidade, se não for possível reverter a tendência.
O direito penal tem função subsidiária. Ele serve como último recurso, incontornável, quando todas as alternativas foram previamente tentadas e esgotadas. Cercear a liberdade de alguém, violar suas comunicações, efetuar buscas em sua casa, prender, cassar seus direitos "preventivamente", tudo isso não deveria acontecer numa democracia senão em casos extremos. O que se vê, no entanto, é que as polícias, o MP e o judiciário preferem autorizar a violência (não só física, como também a da violação de direitos e garantias, a exacerbação penal) como primeiro recurso. É uma lógica busheana: a violência é aplicada para se evitar a violência; uma lógica golpista: dá-se um golpe nas instituições democráticas para preservá-las, e assim por diante.
Estado de exceção
Mas é preciso ficar claro que o Estado de exceção não é o absolutamente outro, em relação ao estado de direito. A exceção está dentro do direito. A ordem jurídica depende de uma situação de normalidade, de um "grau zero" de violência objetiva, a partir do que se definem as anormalidades, se divide o mundo da lei e o mundo do crime. Caberia ao Direito, então, distinguir a regra da exceção e, com a força da lei, punir o crime e realizar a justiça. Mas quem decide o que é essa normalidade que serve de fiel da balança para o Direito? Para Carl Schmitt, que teorizou bastante sobre o Estado de exceção, quem decide é o soberano. O poder soberano vai definir o quanto de "maldades", a quantidade de violência e injustiça admitida como "normal", e que vai, portanto, ser relevada, a fim de estabelecer um ponto de aplicação do Direito.
No Brasil, sabemos muito bem qual é esse "grau zero" de violência objetiva: é um sistema penal profundamente racista e seletivamente assassino, estruturante de uma sociedade que já viveu o escravismo e várias ditaduras. E sustentado por um consenso discursivo e midiático que considera normal um policial atirar com fuzil numa favela e até mesmo realizar execuções sumárias de suspeitos, ou então matar "por engano" ou "por excesso" moradores da favela; ações que, em outros bairros da cidade, com brancos de classe média, gerariam imediato escândalo. As práticas de exceção, nesse caso, são a regra. A decisão a respeito desse limiar é que determina o quão democrático é o Direito, e não alguma estrutura formal de direitos e as instituições existentes.
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“A ditadura não voltou, ela nunca foi embora, apenas seus limites foram reconfigurados” |
Ausência da lei
O que estamos vendo no Brasil é a dilatação da decisão sobre a exceção também em matéria de manifestações, de dissenso político. Se, no caso das favelas, o poder punitivo elaborou historicamente a figura do "traficante", no caso dos protestos, a demonização se dá com o "vândalo", o "black bloc". Em ambos os casos, o poder soberano traça a fronteira dentro do que, com a máxima força do Direito, é exercida a máxima ausência de lei: essas figuras demonizadas, que, todavia, progressivamente podem ser qualquer um, merecem a anomia absoluta. O cerco de praças define o espaço de anomia, onde a violência se descola do estado de direito para, paradoxalmente, reafirmá-lo como imputação — mais ou menos o que acontece numa favela quando é invadida à noite pelo BOPE, embora o material das balas (até agora) seja diferente.
O desafio está, portanto, antes em desativar a decisão sobre a exceção, do que em reclamar abstratamente a volta de um formalizado e mistificado "estado de direito", numa pauta antirrepressão que ignora as causas e processos que sustentam a exceção. Em certo sentido, a ditadura não voltou, ela nunca foi embora, apenas seus limites foram reconfigurados. Depois de 1985, o poder soberano havia voltado a ocupar-se de seus fora da lei de sempre, os pobres e negros. O que está acontecendo agora é uma dilatação do limiar da ditadura, numa operação que nunca deixou de ser princípio interno desta democracia. Nesse sentido, ainda falta muito para a redemocratização concluir a fase transicional. Quase com 30 anos de redemocratização, resta, ainda, não só afirmar mais direitos e expandir os existentes, mas também afirmar outro conceito de direito, um direito que seja "poder constituinte" (Antonio Negri) ou "achado na rua" (Roberto Lyra Filho), além do Estado, além da exceção.
IHU On-Line - Como explicar os diversos fatos que aconteceram nos últimos dois anos, desde as manifestações de junho, os protestos seguidos pelo grito “não vai ter Copa”, por conta das críticas ao investimento público feito nos estádios sedes da Copa do Mundo e o baixo investimento em áreas como saúde, educação e, posteriormente ao início do mundial, uma diminuição significativa dos protestos? Que leitura é possível fazer desse cenário? Quais problemáticas foram expressas no não vai ter copa e quais as razões de os protestos terem diminuído?
Bruno Cava - Os protestos de rua explodiram na segunda dezena de junho de 2013, principalmente em 13 e 17-06, atingiram o pico em 20-06, quando mais de um milhão de pessoas saiu às ruas, e depois entraram em rápido declínio quantitativo. Há uma fetichização geral desse momento, como se fosse possível sustentar manifestações de 100, 200 ou 500 mil pessoas todos os meses. Houve também um desvio de perspectiva, muita formulação desfocada do problema, como se nosso problema fosse: por que as ruas esvaziaram? Ou como fazer para que elas voltem a se preencher de gente? Um problema melhor, possivelmente, seja como, com que novas formas, organizar a potência e os desejos que os protestos exprimiram, numa direção construtiva e afirmativa de alternativas para a democracia?
A própria questão da Copa do Mundo, em junho do ano passado, era uma pauta secundária, comparada ao aumento das tarifas de ônibus. Os comitês populares da Copa já vinham fazendo um trabalho de relatar as violações de direitos e os esquemas privatistas ao redor da Copa desde 2010. Quando começou o levante de 2013, essa foi apenas mais uma pauta entre dezenas de outras que ganhou maior destaque com o cenário de agitação generalizada.
O grito "Não vai ter Copa!" surgiu das ruas, com grande ênfase nos momentos em que os manifestantes eram tolhidos em seu direito de ficar na rua, nos momentos de repressão e perseguição. Soava como uma resposta desafiadora, como uma declaração de força coletiva, de perda do medo. Mas, muito provavelmente, quem gritava "Não vai ter Copa" não acreditava que poderia barrar o megaevento, como se a expressão devesse ser tomada ao pé da letra. Talvez os únicos que cogitaram isso, que a ideia fosse frustrar o evento, foram as forças ligadas ao governo, receosas ou verdadeiramente paranoicas com o estrago que uma repetição de junho poderia causar no meio da Copa do Mundo.
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“Adotar o #NãoVaiTerCopa significava reconhecer a força de junho e tentar perseverar naquela potência ao mesmo tempo criativa e destituinte das ruas e redes” |
Com o término das jornadas de junho, que no Rio se estenderam até outubro, o "Não vai ter Copa" se tornou um signo de fidelidade àquele evento. Adotar o #NãoVaiTerCopa significava reconhecer a força de junho e tentar perseverar naquela potência ao mesmo tempo criativa e destituinte das ruas e redes. Nesse sentido, em 2014, #NãoVaiTerCopa serviu, por um lado, para rejeitar a reabsorção pelas forças políticas existentes na esfera representativa e, por outro, como escreveu Tatiana Roque, serviu como refrão, como uma âncora musical, afetiva, para fortalecer os grupos, prolongar linhas organizativas e expandir redes de mobilização que brotaram em junho de 2013.
Porém, certamente, o legado dos protestos de 2013 vão muito além do campo #NãoVaiTerCopa: muitos coletivos e formas de ativismo preferiram não retornar às ruas e continuaram construindo e produzindo de outras maneiras. Ainda assim, com estrutura precária e poucas alianças, as manifestações do #NãoVaiTerCopa conseguiram reunir algumas milhares de pessoas em atos pelo país. Hoje pode parecer pouco, à luz do levante do ano passado, mas é bastante significativo comparado ao que podem fazer, em termos de mobilização, os movimentos sociais mais tradicionais, ligados ao governo ou à oposição.
IHU On-Line - O mal-estar que emergiu nas manifestações de junho de 2013 pode ressurgir num segundo momento, pós-Copa, tendo em vista as eleições de 2014? Podemos pensar em uma retomada da ação coletiva?
Bruno Cava - Serviços como saúde e educação continuam pessimamente servidos à boa parte da população, enquanto mobilidade urbana e moradia continuam se apresentando como quimeras na gestão das grandes cidades. As bases materiais de indignação sem dúvida continuam presentes. Não dá para adivinhar quais seriam os fatores contingentes para uma mobilização de grande escala, daqui por diante. Seria futurologia.
As eleições de 2014 talvez não propiciem esse momento. Elas podem acabar sendo apenas frustrantes, ao não enfrentar pautas reais e urgentes. Corre-se o risco, como nunca antes, de o debate eleitoral ficar apenas em acusações mútuas, no personalismo, na lógica do "menos pior". Essa desolação contrasta com a plenitude dos novos movimentos e formas de organização, ainda que até agora sejam incipientes, dispersas. Mas não dá para avaliar sem incorrer em adivinhação, quando a "matéria escura" do absenteísmo e as novas formas política causarão outro grande impacto no sistema representativo.
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“Hoje me considero de esquerda mais por inércia do que por qualquer encantamento especial” |
IHU On-Line - Em entrevista anterior à IHU On-Line, você afirma que a esquerda ainda alimenta a pretensão de guiar as massas, iluminando o caminho da revolução. Diante disso, o que é ser esquerda hoje?
Bruno Cava - São muitas esquerdas e elas estão sempre se multiplicando, se divorciando, gerando filhos bastardos, acusando-se entre si de traição, heresia, deserção. Hoje me considero de esquerda mais por inércia do que por qualquer encantamento especial. O que é de lascar é uma esquerda brasileira que avalia como a população em geral é conservadora, potencialmente reacionária, e até mesmo fascista. O erro simétrico da romantização do pobre é um tipo de pessimismo antropológico que atribui ao povo uma alienação congênita. Isso aparece, inclusive, em teorias mais sofisticadas, por exemplo, na obra do cientista político André Singer, para quem o governo é o limite máximo da correlação de forças, já que não existiriam alternativas à esquerda, em meio a um caldo social que, no fundo, seria conservador e consumista (Os sentidos do lulismo, 2012).
A crença na própria superioridade ideológica, em termos de politização, ou superioridade moral, em termos de desinteresse altruísta, acaba levando parte da esquerda ao autoritarismo, dissociando meios e fins. Como um caramujo dentro da concha, essa esquerda guarda a reserva mental de que, embora esteja inteiramente comprometida num pacto conservador, com aliados cada vez mais à direita, e cada vez mais íntimos e indispensáveis, e embora esteja executando um programa autoritário de repressão política, ainda assim, ainda nutra uma vaga boa consciência de que, ao fim e ao cabo, trabalhe para os pobres, para o "povão". Por isso, todos os arranjos teriam sido necessários e não há alternativa. O resto é direita, a ser combatida. O caramujo pode até se reconfortar com a crença, mas a concha está ficando claustrofóbica.
(Por Patricia Fachin)
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O caramujo sufocado pela concha claustrofóbica e a “vaga boa consciência” das esquerdas. Entrevista especial com Bruno Cava - Instituto Humanitas Unisinos - IHU