Por: Cesar Sanson | 26 Agosto 2013
"O movimento de junho assinala que a nova composição social do Brasil é um terreno de luta aberto como alternativa radical, entre a sua homologação dentro dos valores exauridos do capital global, e a formação selvagem da nova composição do trabalho metropolitano". O comentário é de Giuseppe Cocco e Bruno Cava em artigo publicado pelo sítio uninomade, 25-08-2013.
Eis o artigo.
No momento em que escrevemos, o movimento sensacional de junho no Brasil parece passar por uma fase ambivalente, que pode ser definida por três características: refluxo, difusão e deslocamento.
Refluxo: terminaram as mobilizações maciças com centenas de milhares de pessoas, que aconteciam pelo menos duas vezes por semana (geralmente às segundas e quintas), ou quando dos jogos da Copa das Confederações. Isto não significa que a fase das megamanifestações tenha acabado. O estado de mobilização se mantém, como uma latência sempre à espreita dos poderes constituídos. Qualquer coisa de fundamental na percepção mudou: os governos reconhecem nas manifestações um poder formidável, ao mesmo tempo em que os governantes são obrigados a negociar, transigir e sondar lideranças, sem saber muito o que fazer com a novidade. As mobilizações anunciadas para o 7 de setembro serão um termômetro importante do nível de massificação do movimento.
Difusão: o movimento multiplica as formas de vida: protestos, assembleias e ocupações dos palácios e câmaras, inclusive em cidades menores. É um processo envolvendo todo o país, contendo todo o arco de reivindicações existentes. Sem, contudo, perder a centralidade da questão dos transportes coletivos. Os protestos criaram uma situação revolucionária, na medida em que imediatamente reforçam e requalificam as lutas, as reivindicações e os movimentos que já existiam. Estamos no tempo de um próprio e genuíno Kairós: é aqui e agora que os muitos fazem valer plataformas de luta até pouco tempo bloqueadas, tais como: o direito à cidade, a legalização do aborto, a mobilidade urbana ou a luta contra o terror policialesco, usado como método sistemático de regulação da pobreza.
Deslocamento: o eixo fundamental das mobilizações – de que hoje depende, em boa parte, o futuro do movimento – passou de São Paulo ao Rio de Janeiro. O Rio é o cartão postal do projeto de um novo Brasil rico. Foi o teatro dos Jogos Panamericanos, da Conferência Rio+20, de partidas da Copa das Confederações e, finalmente, da visita do Papa argentino. Aqui ocorrerão a final da Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016). Foi no Rio que as jornadas de junho se mantiveram durante todo o mês seguinte e seguem com força até hoje (meados de agosto), com manifestações, reuniões, assembleias que acontecem todos os dias, e sem sinalizar nenhum enfraquecimento. O Rio é hoje uma cidade desobediente, insubmissa às intervenções higienizadoras promovidas pelo governo (em suas três esferas) em nome dos grandes eventos. No Rio, a atual fase do movimento está iluminada claramente por uma luz bem mais potente, lançada sobre a brecha aberta pela multidão com o paradoxo lulista.
A brecha da multidão no paradoxo lulista
Podemos começar com duas afirmações sobre o movimento de junho e seus desdobramentos atuais. A primeira é que ele consiste no melhor resultado dos governos Lula e Dilma. A segunda é que a multidão de pobres e trabalhadores metropolitanos abriu uma brecha no paradoxo produzido por uma década de governo federal do PT, no que havíamos definido como “a centralidade paradoxal dos pobres” (que outros definiram “lulismo”, reduzindo-a a sua dimensão eleitoral ou economicista).
As duas afirmações nos permitem subitamente circunscrever a situação difícil em que se encontram o PT e o governo. De uma parte, o movimento frutificou a partir da mobilização produtiva que esses governos promoveram; de outra, o governo e o PT interpretaram a mobilização somente do ponto de vista eleitoral e economicista, avaliando-a de maneira meramente objetiva. Mostraram-se, desta forma, totalmente incapazes de compreendê-la em sua dimensão subjetiva. Não conseguem compreendê-la como resultado de uma mobilização produtiva, que vem gerando continuamente outros sujeitos sociais, novas qualidades e novas capacidades. Com efeito, por um tempo, mostraram-se hostis, arriscando-se até a empurrar o movimento, justamente em sua fase mais maciça, nas mãos da reação à direita.
Fechando-se completamente na estranha hibridação entre o neodesenvolvimentismo (reindustrialização e megaobras) e o neoliberalismo (a emergência de uma “nova classe média”, tomada apenas como faixa de renda e consumo), o governo Dilma mostrava todos os sintomas do esgotamento da ambivalência do período Lula. Mas, embora fosse possível perceber e observar as inflexões e estreitamentos, até junho o paradoxo continuava vigorando soberano. Então, quando ninguém mais esperava, a terra tremeu. Certezas, cálculos e previsões ficaram soltas no ar, como personagens de desenho animado que passam da borda do precipício mas demoram um tempo para perceber… e despencar.
Logo depois dos sucessos eleitorais do PT nas eleições municipais, especialmente em São Paulo e em sua coalizão no Rio, a presidenta Dilma já se preparava antecipadamente para uma reeleição triunfal. Os dirigentes do PT admitiam como única variável que pudesse ameaçar a altíssima popularidade e a reeleição de Dilma algum eventual capricho do ciclo econômico. Novamente, a abordagem se mantinha no plano objetivo, inadequada para compreender a latência das transformações no nível da produção de subjetividade, um processo capilar e disseminado que o próprio lulismo acelerou.
O primeiro abalo se concentrou em São Paulo e não por acaso estremeceu a posição do governador tucano e do recém-empossado prefeito do PT. Não tardou para o jovem prefeito “de esquerda” se juntar ao governador tradicional da direita, para defender a correção dos cálculos que justificariam o aumento das tarifas do transporte coletivo. Mas a magnitude dos sismos não parou de aumentar e, atrás da cortina de fumaça de gás lacrimogênio, os joelhos da representação começaram a dobrar. Apesar do desgosto estampado no rosto, governadores e prefeitos das duas maiores cidades se viram obrigados a aparecer na televisão para declarar oficialmente o congelamento das tarifas. Tarde demais, a essa altura as ondas de choque já eram incontroláveis. O decreto da plebe sobre as passagens de ônibus seria só o primeiro de uma longa série, forçando sucessivos recuos e tergiversações por parte dos poderes constituídos.
Depois do terremoto, chegou o tsunami: enquanto prefeitos e governadores procuravam desesperamente (em uma inversão cômica de papéis) “eleger” alguns representantes do novo movimento para tentar barganhar e cooptar, as manifestações continuaram massificando, cada vez mais autônomas, com objetivos sempre mais amplos e generalizados, num deslocamento onde o Rio de Janeiro rapidamente se tornou o epicentro do movimento. Nesse período, protestos massivos aconteceram em mais de 400 cidades e, num grau nunca visto, também nas periferias das metrópoles. O ápice desta primeira fase se deu com as manifestações de três ou quatro milhões de pessoas no Rio, em 17 e 20 de junho, e aquela, em regime de toque de recolher, durante a final da Copa das Confederações. Em 17 de junho, no Rio, as manifestações culminaram numa ofensiva de milhares de jovens à Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro[n.1].
A multidão foi convidada à mesa de discussão, a terra tremeu e quando a onda anômala quebrou na cabeça do PT e da esquerda em geral, os seus dirigentes ainda eram os únicos a não perceber a situação. Por quê? Porque a onda atingiu em cheio o paradoxo lulista. A onda que quebrou é o próprio modo de ser que o PT e o governo deixaram de encarnar nos últimos anos. Diante disso, a intelligentsia petista vacila entre 1) a criminalização das manifestações, rotuladas como golpistas, de direita e/ou de velha classe média – sempre temendo que as principais “vítimas” dos protestos seriam os governos do PT; e 2) uma vaga simpatia diante das mobilizações populares, num tom quase cívico, mas sem captar e muito menos acolher a sua força constituinte, que poderia ser transformadora da maneira de governar do PT e da esquerda nos governos. A única operação política do PT – comandada por Lula em primeira pessoa – se reduziu a nomear como representante do movimento uma rede de branding e marketing da juventude, no padrão “new generation”.
A partir de 2010, o paradoxo lulista já sinalizava a saturação, ameaçando seu equilíbrio: por um lado, o pacto de governabilidade parecia cada vez mais um consenso autoritário e, por outro, o governo era progressivamente contestado pela multiplicação de episódios de luta e movimentos de resistência. Até esse momento, o lulismo havia conseguido manter uma face dupla: de uma lado, um “lulismo de estado”, que opõe uma gestão moderna, eficiente e centralizada do estado, ao atraso, às velhas elites e à corrupção, como uma solução para o subdesenvolvimento; de outro lado, um “lulismo selvagem”, que contrapõe ao estado neocolonial brasileiro a radicalização da democracia, uma democratização “desde baixo”, a partir das minorias e seus devires.
Nas jornadas de junho e seus desdobramentos, o lulismo selvagem se recompôs de modo autônomo, por fora do governo, rompendo a ambiguidade. Esta carga selvagem determinou não só a imprevisibilidade dos protestos, mas também manifestou a insatisfação ante o modelo neodesenvolvimentista que, segundo os indicadores oficiais, é um sucesso. Nesse sentido, as manifestações exprimem uma indignação generalizada contra o sucesso de um modelo, abrindo o horizonte a outra realidade política e antropológica: o bRASIL menor – mundobraz!
Os dois eixos contraditórios do lulismo
O consenso sempre mais autoritário – com Dilma – relegava aos ritos eleitorais e sua podridão o que parecia ser a vitalidade do apoio das bases (dos pobres, mas não só) às políticas de redução da desigualdade e democratização do acesso, promovidas pelo governo federal. Mas as jornadas de junho romperam o impasse político e social que havia se tornado a centralidade paradoxal dos pobres, trazendo-a para primeiro plano e não só como cálculo eleitoral. Parece-nos – também é hora de dizê-lo – que essa ruptura seja definitiva e irreversível (independente de como se traduzirá nas eleições).
Para explicar um pouco melhor o paradoxo de que falamos, vale a pena enunciá-lo de outro modo, quer dizer, desenvolvendo-o em dois eixos complementares e contraditórios.
O primeiro eixo se desenhou com a multiplicação – nos últimos 2 ou 3 anos – de lutas minoritárias, que não conseguiam recompor e generalizar-se na cidade: é a resistência dos moradores das favelas contra remoções em nome de megaobras e megaeventos, da luta dos índios da Amazônia contra as megabarragens, das greves “selvagens” dos operários dessas obras, das ocupações de terra por parte de índios e quilombolas. Nas novas explosões, podemos reunir as iniciativas endêmicas de resistência e produção cultural nas favelas e periferias, inclusive contra a presença violentíssima e tradicional da polícia. Estas e muitas outras lutas permaneciam localizadas ante o fato que o governo Lula (e Dilma), em seu conjunto, continuou melhorando sensivelmente a qualidade de vida de muitos, e em especial, dos mais pobres. A relação entre a curva crescente do PIB e a curva decrescente da desigualdade mostra claramente o caráter novo do que significa o sucesso nos últimos dez anos no Brasil.
Tudo isso mesmo considerando que os progressos inegáveis, em termos de redução da desigualdade, apenas arranham a dureza da pobreza e a violência da relação dos pobres com os sistemas públicos (saúde, educação, polícia, justiça) e, sobretudo, com a cidade: transportes e infraestrutura básica. Essa crise deixou de ser localizada em junho. Rompeu-se, com o movimento de junho, a normalidade (construída) em ter um estádio novo do lado de favelas gigantescas com esgotos a céu aberto. Rompeu-se a naturalização do genocídio de jovens negros e negros, contestando a polícia com as palavras de ordem de todas as manifestações, a partir da meados de junho até hoje.
O segundo eixo paradoxal é a tradução eleitoral do primeiro, e aparece na figura do impasse a partir de 2005. Isto é, depois da crise política, ligada ao “escândalo” da compra de votos parlamentares de pequenos partidos, para constituir a maioria parlamentar do PT. Nessa ocasião, a crítica ao governo Lula corria imediatamente o risco de ser capturada pela oposição à direita. O lulismo é propriamente o nome deste beco sem saída para as lutas e a crítica ao governo Lula-Dilma, chocando-se sempre com a captura pela oposição à direita. Por um lado, desde a reeleição em 2006, graças às políticas sociais, Lula (e o PT seguiu Lula, nunca o contrário) transformou radicalmente sua relação com a base eleitoral. O eleitorado migrou dos setores mais organizados (classes médias, trabalhadores) das cidades mais desenvolvidas do Sul e do Sudeste, para as massas pobres (marginais, porém majoritárias) das periferias urbanas e zonas menos desenvolvidas (em particular, o Nordeste).
A crise política de 2005, que parecia poder provocar a destituição precoce de Lula, preparou em vez disso a cama para a sua afirmação estrondosa, como um fenômeno mais forte (ao menos, na superfície) tanto que a captura pela direita reacionária, quanto a lógica do próprio PT (e dos pequenos partidos que o complementam). Isto permitiu a Lula impor-se sobre a oposição de direita e setores diferentes do PT (definindo, por exemplo, a sua candidata à sucessão, Dilma Rousseff). Por outro lado, todas as críticas ou lutas contra o lulismo e seus limites eram desqualificadas como “jogo da direita” ou, mais simplesmente, condenadas à impotência política.
Então, a insurreição de junho começou forçando algumas pequenas brechas abertas no beco sem saída, com a revolta contra o preço dos transportes coletivos. A multidão do trabalho metropolitano ocupou e alargou a brecha, estilhaçando o paradoxo e assim destituindo-o. O poder destituinte detonou qualquer sensação de legitimidade de que gozavam os governos e representantes, bem como os acordos e negócios de cúpula que determinam as políticas públicas, sempre às margens de qualquer processo democrático. Na medida em que o Movimento pelo Passe Livre (MPL) promove uma luta pela redução das tarifas (o objetivo final é a gratuidade), obtém como resultado uma redução das margens de lucro do grande negócio do transporte coletivo. Essa redução golpeia em cheio as malhas dos acordos de gabinete, comprometendo as condições de governabilidade, com efeito político imediato.
Não admira o prefeito (PT) de São Paulo declarar que era “matematicamente” impossível mexer no preço das passagens. Poucos dias depois, a força dos protestos mostrou que o problema não era econômico ou aritmético. O preço justo, no final das contas, não é nenhum “justo natural”, mas aquele que a multidão consegue impor ao poder constituído. O preço é uma relação de força e é imediatamente político. É isso que o economicismo socialista ou keynesiano do PT (e de Dilma) não entende e hoje prova não querer entender: a relação entre o crescimento dos juros (o spread) e a inflação passa, antes de qualquer outra consideração, pela violência da moeda. De junho em diante, a multidão tem sido bem sucedida em democratizar parte da circulação monetária, criando uma nova e verdadeira moeda, aquela do comum das lutas.
O primeiro decreto da multidão brasileira, em junho, foi a destituição da alternativa falsa que bloqueava a generalização metropolitana das lutas menores, que se dava cronicamente com a chantagem do retorno eleitoral da direita, isto é, da pior elite neoliberal e autoritária. Esse bloqueio chantagista simplesmente não funciona mais. Talvez não imediatamente, mas a ruptura do paradoxo lulista pelo tumulto multitudinário no Brasil terá seguramente consequências também noutros países sul-americanos, onde o binarismo chavismo x antichavismo, kirchnerismo x antikirchnerismo etc continua a funcionar como máquina de bloqueio das lutas. Este bloco de lutas não é paradoxal apenas porque causado pela polarização (frequentemente mais superficial do que real) entre os “novos” governos e a direita, que não pára de gesticular ameaçadoramente através da mídia. O paradoxo consiste no fato que este mecanismo termina por pacificar a sociedade e impedir que os “novos” governos reúnam condições para guinar à esquerda, ainda quando – como é o caso hoje – uma mobilização poderia permiti-lo.
A constituição selvagem da classe sem nome [n.2]
A dinâmica eleitoral do “lulismo” tinha (e não se está dizendo que esteja definitivamente destruída) como base material as transformações sociais determinadas por uma série convergente de fatores. Podemos elencar os fatores em ordem crescente, do ponto de vista das causas subjetivas; e em ordem descrescente, do ponto de vista das determinações materiais. A integração crescente da economia e da sociedade brasileira dentro do capitalismo cognitivo é o primeiro e principal fator material. O segundo fator foram as políticas de distribuição de renda (políticas sociais, valorização do salário mínimo real, criação de postos de trabalho), de maneira que os efeitos da modernização (terciarização da economia) e da globalização (exportação de commodities) fossem usados – pela primeira vez – para a redução da desigualdade. O terceiro fator está nas políticas transversais de qualificação do crescimento e redução da desigualdade. São políticas de cotas raciais, democratização do acesso à educação superior, difusão de escolas técnicas, expansão e democratização do crédito.
Hoje, no governo e no PT, se perguntam: por que tanta insatisfação em um cenário de relativa inclusão social de milhões de brasileiros? Por que tantas manifestações num momento em que a crise do capitalismo não só passou ao largo da economia brasileira, mas também configurou uma oportunidade para a sua afirmação nacionalista no mercado mundial? Quando sinceras, essas perguntas partem da premissa que os tumultos acontecem somente nos períodos de recessão ou penúria. É uma espécie de síndrome da Bastilha, que só consegue enxergar o vigor revolucionário na imagem das massas esfaimadas armadas de fuzis e foices.
Mas, em junho, não foi somente a população atingida pelos grandes eventos ou pela higienização urbana que se rebelou. Sucedeu um efeito de escala, colhendo apoios num gigantesco espectro social. Vários analistas de esquerda não conseguem perceber o kairós da multidão brasileira porque estão prisioneiros da lógica do quanto pior, melhor. As manifestações demonstram o contrário, que quanto melhor, melhor! No outono brasileiro, sentimos o eco do outono quente italiano de 1969: QUEREMOS TUDO! O espessamento e o aprofundamento de uma nova composição social foram produto de uma subjetividade que quer mais e melhor. As conquistas pretextam novas conquistas, multiplicando-se em uma dinâmica expansiva de direitos. O poder constituinte se realiza por saltos qualitativos, proliferando demandas e criando, na imanência de um viver melhor, as novas formas de cooperação e mobilização política.
Aqui, reencontramos a centralidade paradoxal dos pobres em toda a sua magnitude. O capitalismo cognitivo que se desdobra no Sul (e no Brasil, com particular dinamismo) mobiliza os pobres (os “excluídos”, o proletariado e o “subproletariado” metropolitanos) enquanto tais: sem previamente homogenizá-los ou homologá-los por meio de uma ativação salarial do tipo industrial. Ou seja, os pobres são mobilizados enquanto pobres, diretamente sobre os territórios metropolitanos ou nos meandros da floresta, nas modulações produtivas da circulação.
Como se antecipava, o trabalho (o viver) é mobilizado fora da relação salarial e, no Brasil, isto ocorre no remix das formas tradicionais de precariedade, herdadas do subdesenvolvimento, com as formas mais modernas de flexibilidade terciária. O efeito conjugado das políticas de distribuição de renda e daquelas qualitativas de inclusão é paradoxal: se, por um lado, são internas ao novo ciclo de acumulação do capital, por outro determinam efetuações de mobilidade social que vão muito além da ascensão de uma nova base de consumo (de bens ou eleições). Se os pobres são explorados enquanto tais, também é reconhecida a sua potência. Uma vez que os pobres não estão mais proletarizados como “trabalhadores”, eles passam a lutar como pobres: jovens, mulheres, negros, favelados, índios, informais, queers, cada um na sua diferença produtiva e afirmativa.
Com a chegada de Dilma ao poder, a centralidade paradoxal dos pobres passa a um novo patamar. Aquilo que, com Lula, parecia ambíguo e relativamente aberto, – seja pela imaturidade desse processo, seja pela sensibilidade política e pessoal do próprio Lula, – começa a passar por um processo pesado de fechamento e homologação. Por um lado, o fechamento das brechas e ambiguidades se torna geral: começando pela cultura, em que se deu a inexplicável restauração dos interesses reacionários da indústria cultural e da elite, para culminar no slogan do governo (Brasil, país rico é país sem pobreza), passando também pelo desinteresse (no mínimo) diante das questões dos direitos as minorias, das mulheres, dos sem terra, dos negros, dos LGBT, dos pobres, das favelas e dos indígenas.
A fase de fechamento com Dilma encontra certamente explicação em sua biografia tecnocrática e economicista (que eventualmente coincide com o empenho socialista da juventude guerrilheira). Mas não se trata somente disso. Existem outros fatores mais estruturais. Em primeiro lugar, a crise do capitalismo global teve um efeito contraditório sobre o ciclo brasileiro. O Brasil, o país mais “estável” da América do Sul, se tornou uma nova fronteira de um capital global exaurido. Passou a estar submetido à forte pressão externa, com seus mercados funcionando como válvulas de escape para investimentos globais desorientados. Ao mesmo tempo, aumentava internamente uma espécie de euforia generalizada a respeito da nova condição emergente: o país finalmente poderia galgar uma posição e um status diferenciados no ranking da economia e das instituições globais.
O segundo fator pode ser visto como a demonstração que, se o capitalismo cognitivo é capaz de mobilizar os pobres enquanto pobres, por meio da segmentação, isto não significa que os seus mecanismos de acumulação possam ir além de certo nível de homologação do consumo e da composição social. A expansão terminou por bater no teto, freada pela própria necessidade de controlar o processo de acumulação. Finalmente, o terceiro fator é de tipo político.
O pacto de governabilidade se transformou em um consenso gradativamente mais totalitário, que começou a mostrar as garras em todos os níveis. Esse consenso assumiu três formas e produziu duas grandes consequências (a corrupção e a crise da clivagem direita – esquerda).
A primeira forma do consenso é a convergência significativa da oposição política (e também da imprensa) ao redor da figura da presidenta. Dilma é considerada uma gerente competente, subsiste um grande consenso sobre as políticas sociais, e também convergência significativa sobre os projetos de desenvolvimento (suas técnicas de gestão), com uma disputa bastante tímida sobre as inflexões da política econômica.
A segunda forma do consenso é o esgotamento definitivo da dinâmica de movimento dentro do PT. Nesta altura, o PT já emerge como um partido muito mais burocratizado internamente, visceralmente afetado pelo funcionamento do estado, do que se poderia imaginar ou prever. Mas não se trata apenas do PT: também todos os movimentos organizados (como o MST) e os partidos de extrema-esquerda – para não falar dos sindicatos – foram ultrapassados, às vezes repelidos, ou de toda sorte incapazes de “ler” o movimento.
A terceira forma é mais estrutural. Trata-se do regime de valores que se tornaram hegemônicos na coalizão de governo, assumidos acriticamente pelo PT: não a construção de um novo horizonte radiante (provavelmente socialista ou solidário), mas a homologação dentro da miragem da “nova classe média”.
O governo Lula-Dilma e o PT terminaram por depositar a confiança no marketing, que lhe permitiu os grandes sucessos eleitorais, da mesma maneira que aqueles administradores que confiam em títulos ultrainflacionados e investem neles para obter uma performance milagrosa na Bolsa. Só que um dia a falência é inevitável e aquela fé se converte num suicídio político. E é isto que sucedeu em junho.
Para se ter uma ideia, podemos substituir a metáfora do castelo de cartas pela imagem de um belo e novo transatlântico, recém zarpado do porto do subdesenvolvimento. Chama-se Brasil Maior e está singrando pelo oceano da crise do capitalismo, em rota segura para o continente dos países desenvolvidos. Na ponte de comando, desfilam confiantes os partidos da coalizão do governo, enquanto os passageiros da primeira classe brindam à opulência, seguros de um consenso inquebrantável. Um motor duplo garante a propulsão do navio, produto da engenharia da governabilidade: o primeiro é o “neodesenvolvimentismo”, o segundo é aquele da “nova classe média”. Só que a considerada “nova classe média” não achou nada interessante permanecer na área da segunda classe e, junto dos pobres da terceira, resolveu ocupar a ponte principal, jogando água no choppe da primeira. Acabou a orgia do consenso.
O primeiro motor era o neodesenvolvimentismo. Era o modelo abraçado pelo governo Lula, e sobretudo Dilma, como ação estratégica em meio à crise do capitalismo. Ele significa o retorno do economicismo: com incentivos e subsídios milionários à indústria “nacional” – em realidade, multinacionais automobilísticas e de eletrodomésticos, a fim de inundar a cidade de máquinas – e aos grandes projetos (megabarragens hidrelétricas, submarino nuclear, indústria extrativa) e megaeventos (Copa das Confederações, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo, Olimpíadas).
O segundo motor é o regime discursivo destinado a homologar os efeitos da mobilidade social ascendente, construídos pelo governo do PT dentro da ideia – economicista e neoliberal – da emergência de uma “nova classe média”, isto é, de um novo estamento de consumidores, eleitoralmente majoritário e politicamente conservador, de pé graças ao crescimento econômico moderado.
Mais eis que a festa está arruinada. É justamente desta composição social que o regime discursivo da governabilidade, do Brasil “emergente” e “grande”, disto que era considerado a “nova classe média”, que irrompe orgulhosamente na ponte, onde se celebrava em uma atmosfera autocomprazível e soberba. O perigo não está fora nalgum iceberg: o perigo se mostrou ser o monstro que já está dentro [n.3], devorando as entranhas do próprio transatlântico, perturbando o determinismo de sua rota pré-estabelecida e supostamente “necessária”.
A multidão do trabalho metropolitano se apresenta e constitui como um sujeito capaz de produzir e afirmar – de maneira constituinte – outros valores, transmitindo o impulso das grandes cidades para as menores, as periferias e os rincões. O movimento de junho assinala que a nova composição social do Brasil é um terreno de luta aberto como alternativa radical, entre a sua homologação dentro dos valores exauridos do capital global, e a formação selvagem da nova composição do trabalho metropolitano.
O que vimos em junho foi a emergência selvagem da classe sem nome. De junho até hoje, essa potência selvagem está buscando inventar as instituições do comum metropolitano e fazendo ocupações de câmaras municipais, manifestações e “decretos da plebe”. No Rio, isto é muito claro, em particular com a vitória conquistada contra as remoções de favelas e a demolição prevista do antigo Museu do Índio, que hoje aloja uma ocupação indígena.
O comum como luta
Para terminar, é preciso retornar ao começo: não se pode compreender o movimento de junho e seu desenvolvimento sem captar a dimensão qualitativa (e não só quantitativa) das manifestações. Esta dimensão qualitativa é a grande inovação, uma das chaves fundamentais para entender o que aconteceu e está acontecendo. Podemos fazê-lo em três momentos: 1) as imagens de um documentário de Fortaleza, 2) a dinâmica das marchas no Rio, e 3) o papel dos “black blocs” (sempre no Rio).
Num primeiro momento, tomemos o documentário dedicado às manifestações que ocorreram em Fortaleza [n.4]. Podemos ver as grandes mobilizações iniciais (a maior levou 90 mil pessoas) e a polêmica que as atravessou (em particular, sobre a questão da resistência e da violência). As manifestações finais aconteceram durante a partida entre Espanha e Itália, da Copa das Confederações. Os manifestantes – bem menos numerosos em comparação com as manifestações iniciais – decidiram confrontar a polícia e se organizaram para fazê-lo.
Disseram-no abertamente, inclusive diante das câmeras de TV. Um dos jovens em preparação mostra um grande garrafão de plástico cheio de água, colocado no meio da rua e explica: “este é um bem comum, disponível a todos para se proteger do lacrimogênio, aprendi isso olhando os manifestantes de Istambul”. Quando o nevoeiro de lacrimogênio começa, se podem ver os manifestantes afogarem os lenços no recipiente, fechando-o com o pé. No episódio, que se repetiu um pouco em todos os lugares, se recordam de modo impressionista de uma série de elementos constitutivos das jornadas de junho. Não se pode esquecer que elas se inserem no ciclo global de lutas insurrecionais e constituintes (disparado pelas revoluções árabes em 2011), atualizado em maio com a revolta de Istambul, um pouco antes da fogueira brasileira. As imagens da luta da multidão turca favoreceram a mobilização da multidão no Brasil e também a sua forma: praticamente todas as grandes mobilizações das jornadas de junho foram perpassadas pela determinação de empurrar o protesto além das dimensões rituais tradicionais, além de uma simples procissão, assumindo a autodefesa e a ação direta.
Um tabu, num país onde a polícia está habituada a usar armas letais como bem entende, de maneira inteiramente arbitrária (como de resto fez durante as jornadas de junho no Rio, com uma chacina de 10 moradores da favela da Maré, logo depois da repressão de uma manifestação). Se a imprensa, os vários níveis de governo e a “esquerda” institucional buscaram – como se vê no citado documentário – criminalizar os “violentos” (chamados “vândalos”), a prática da autodefesa e da ação direta foi um elemento essencial e duradouro, que conferiu ao movimento – em toda a sua diversidade – uma dinâmica e uma virtude constituinte. O garrafão de água no meio da rua, à disposição da multidão em luta, é a própria imagem disto que podem ser o comum e a sua cidade.
O segundo momento, que ajuda a dar uma ideia do movimento, é a reconstrução esquemática da dinâmica das marchas no Rio, em junho. Enquanto em São Paulo, a mobilização aglutinou muita gente desde o princípio, enfrentando uma forte repressão da parte da polícia paulista, a primeira manifestação no Rio reuniu poucas centenas de pessoas. A novidade foi que uma parte consistente das 300 pessoas estava, desde o início, decidida a não se limitar ao rito da passeata. Isto é, havia tomado a decisão – independente do número de manifestantes – de confrontar quem quer que os ameaçasse no direito de ocupar a rua, contestando os símbolos do poder político e financeiro. Poucos dias depois, a marcha cresceu para 1.000 pessoas com a mesma determinação. Na terceira marcha, em 13 de junho, já eram 10.000 com a mesmíssima determinação. Ao passo que o número de participantes crescia exponencialmente, o poder constituído não sabia que carta usar e, no 17 de junho, duas semanas depois do início do movimento, o centro do Rio estava tomado por um milhão de manifestantes. Tentando evitar as provocações, a polícia se manteve distante, quase invisível… de nada adiantou. Em vez de retrair-se, a manifestação prosseguiu em direção à Assembleia Legislativa do estado do Rio (ALERJ), onde o contingente existente da polícia – por um bom tempo – era incapaz de reagir ao avanço de milhares e milhares de jovens.
Três dias depois, em 20 de junho, os manifestantes no Rio chegavam a dois ou três milhões. Desta vez, no entanto, a polícia inverteu a estratégia e atacou brutalmente a manifestação, começando no ponto final da marcha, ao lado da sede da prefeitura municipal – uma das avenidas que dava acesso direto a uma partida em andamento da Copa das Confederações, no estádio do Maracanã. Isso não mudará nada. Apesar do terreno desfavorável (espaços enormes) e a presença dos blindados, da cavalaria etc, milhares de jovens novamente decidem resistir, enfrentando a repressão e contra-atacando símbolos do poder público, bancos e, particularmente, a FIFA. Daí, nessa mesma noite, se seguiram perseguições e repressões violentas e indiscriminadas por parte da polícia pelos bairros do centro do Rio por onde a multidão dispersava, com o pretexto de “restaurar a ordem”, suscitando ainda mais indignação e mobilização nos dias seguintes.
O terceiro momento aconteceu durante os encontros que marcaram os protestos contra a final da Copa das Confederações, no Rio, em 30 de junho. Eram jovens (a maioria da periferia) que começavam a chegar às manifestações mascarados, se identificando como black blocs. Claramente, o imaginário é ainda outra vez global, dentro de um estilo de manifestar-se e organizar típico dos anarquistas e autonomistas europeus. Na realidade, não é exatamente assim. Mascarar-se para as manifestações, da parte dessas centenas de jovens da periferia – muitos dos quais negros – significa (além da proteção contra o gás) afirmar uma dupla determinação. Em primeiro lugar, para poder lutar democraticamente sem arriscar-se a “desaparecer misteriosamente”. Em segundo, o confronto com a polícia se mantém ao mesmo tempo reafirmado (autodefesa com escudos, uso de coquetéis incendiários, fundas e outros petardos além do clássico paralelepípedo) e de baixa intensidade: as barricadas são feitas com o incêndio do lixo e as ofensivas contra a propriedade se concentram sobre agências bancárias e negócios de grandes cadeias varejistas, nunca indiscriminadamente. O confronto se dá internamente à constituição democrática da paz e é só por isso que terminou por ser aprovado pela quase totalidade do movimento, com exceção dos partidos e movimentos organizados, que vêem ameaçados seu “monopólio” de guiar as massas.
Depois das grandes manifestações de junho, os jovens dos blacks blocs se tornaram o sujeito fundamental para a continuidade do movimento – sempre no Rio. Presentes nas ocupações fixas (da Câmara Municipal à praia do Leblon, adjacente à residência do governador), eles participaram em quase todas as mobilizações diárias, ocupando a cidade e construindo um sentido “desde baixo”, dentro do agencement do movimento: cidade – internet – ação direta. No final do mês de julho e primeira metade de agosto, os jovens vestidos de preto, que acharam na bandeira da anarquia os símbolos irrecuperáveis de uma autonomia selvagem, foram capazes de multiplicar e diferenciar as mobilizações, das ocupações às contestações nos palácios de governo, aos confrontos nos bairros mais luxosos da praia ou nas marchas quilométricas que se infiltraram em fileiras de peregrinos durante a visita do Papa.
Como dissemos, as tentativas de criminalizá-los (conduzida inclusive por partidos da esquerda no governo) e tratá-los como um componente minoritário, isolado, violento e marginal não deram certo. O funcionamento brutal e brutalizante do estado e sua polícia, uma vez a brecha constituinte aberta, termina funcionando ao ao contrário: diante da capacidade do movimento de apropriar-se da crítica da violência contra os pobres, as armas da criminalização são gradativamente desmontadas, levando a um recuo da repressão.
Um dos momentos mais interessantes da estética política dos black blocs do Rio foi a primeira tentativa de ocupação da Câmara Municipal. Durante uma manifestação que tinha por objetivo a ocupação permanente, um grupo significativo de jovens mascarados despistou a vigilância policial e conseguiu ocupar o edifício na Cinelândia, de onde haviam sido violentamente despejados pouco tempo antes (não sem uma resistência grande dos manifestantes). No dia seguinte, a imprensa denunciou os danos causados pelos manifestantes e publicou a foto de um quadro pichado. Tratava-se do retrato de um coronel do exército, em cuja testa um artista selvagem tinha desenhado – em traço nítido – dois chifres. Rapidamente, todas as redes sociais reconheceram no quadro o coronel Antônio Moreira César, o cortador de cabeças, um dos comandantes das incursões que reprimiram a revolta messiânica de Canudos (e foi morto pela resistência dos beatos-guerreiros de Antônio Conselheiro), no alvorecer da república. O matador do estado com os chifres é a figura ainda atual de um poder policial que massacra a vida dos pobres todos os dias nas favelas e periferias. Nas redes, foi solicitada a proteção formal do quadro contendo os chifres, como uma verdadeira obra de arte, enquanto a imprensa rapidamente se “esqueceu” do assunto.
Vive-se uma situação impensável até pouco tempo: a multidão é capaz de construir em sua desterritorialização e reterritorialização um novo tipo – desconhecido no Brasil – de paz. Os jovens do black bloc são reconhecidos como a expressão mais potente (porque não única) do movimento e são eles que terminam por arrastar consigo os jovens militantes. Se, nos anos 2000, dizíamos que “Lula é muitos”, hoje, cada um desses jovens é uma multidão.
Notas:
1 - O filme 100 mil, sobre o 17J no Rio, por Jefferson Vasconcelos, http://vimeo.com/68873185#
2 - Estamos usando a bela intuição de Hugo Albuquerque http://descurvo.blogspot.com.br/2012/09/a-ascensao-selvagem-da-classe-sem-nome.html
3 - Sobre a dimensão “interna” das lutas, pretendíamos desenvolver um parágrafo específico, mas não tivemos tempo de escrever. Diremos de qualquer maneira que a incapacidade dos partidos de esquerda na oposição em “dirigir” o movimento (sem contar as situações em que eles foram expulsos das manifestações, bem como a inadequação de suas categorias teóricas) é uma demonstração de como todas as hipóteses com as quais eles trabalhavam, sempre a partir de um fora ideal, foram tão surpreendidas pelas manifestações quanto as da esquerda no governo.
4 - O documentário se chama Com vandalismo, produzido pela Nigeria Audiovisual, acessível em http://www.youtube.com/watch?v=KktR7Xvo09s.
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Queremos tudo: as jornadas de junho e a constituição selvagem da multidão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU