26 Junho 2013
O cientista político André Singer é um festejado teórico do "lulismo" – como ele batizou o alinhamento de segmentos sociais, antes hostis ao PT, às forças políticas comandadas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora surpreso com a forma como eclodiu, Singer diz que o movimento que tomou conta das ruas do Brasil estava "meio anunciado". Ele o relaciona à ascensão de um "novo proletariado". Nos últimos anos, diz, ele ganhou emprego e renda, mas vive ainda de forma precária. Para Singer, a emergência do movimento coloca o governo Dilma diante de uma encruzilhada. Os manifestantes pedem mais gastos públicos, enquanto o mercado cobra austeridade.
A entrevista é de Guilherme Evelin, publicada na revista Época, 23-06-2013.
Eis a entrevista.
As manifestações são um abalo para o lulismo? Acabou a lua de mel da maioria da população com o PT?
Elas representam um possível retorno do movimento de massas, ausente no cenário político brasileiro desde, pelo menos, 1992. Ele começou a desaparecer com a derrota eleitoral de Lula em 1989, quando se encerrou um ciclo de dez anos de mobilizações. O movimento tem hoje características novas e não pode ser ainda caracterizado como um abalo, mas um desafio importante. Coincidiu com um momento complicado da economia. O lulismo enfrenta duas forças em direções contrárias. Essas manifestações tendem a ser um movimento por aumento de gasto público. E, do lado do capital, vemos pressão pelo corte dos gastos públicos. É um momento que representa um desafio para o lulismo. Não havia, nos setores que se mobilizam, uma lua de mel com o governo. Há uma forte base do lulismo no subproletariado, um setor expressivo da população, que não está na rua.
Quem está na rua?
Minha hipótese é que as manifestações estão compostas de duas camadas sociais. Uma são os filhos da classe média tradicional, estabelecida assim há mais de uma geração, que possivelmente puxaram as manifestações. Elas ganharam adesão também do que chamo de novo proletariado. Não é uma nova classe média. São jovens que não pertencem a famílias nitidamente de classe média, mas passaram a ter emprego por causa do lulismo. Mas têm empregos precários, com alta rotatividade, más condições de trabalho e baixa remuneração. Ao longo das manifestações, a participação desse segundo grupo foi aumentando. Isso talvez explique por que, na segunda etapa, elas se expandiram pela Grande São Paulo, pelo Grande Rio e pelas cidades em torno das capitais. A segunda camada é muito mais extensa do que a primeira e mostra o potencial do movimento.
A que o senhor atribui a insatisfação que emergiu?
O lulismo é um processo de reformismo fraco, de mudança estrutural do Brasil, mas muito lento e concentrado no subproletariado, os mais pobres. De um modo geral, esse subproletariado não está nas capitais. É mais expressivo no Nordeste ou no interior do que nas grandes capitais. O lulismo é um modelo que favoreceu essa camada e, indiretamente, também os trabalhadores urbanos, porque aumentou emprego e renda. Mas os problemas urbanos das grandes metrópoles são muito caros. Para você conseguir resolvê-los, precisa fazer investimentos gigantescos, que teriam de sair dos cofres públicos. Para isso, teria de haver um rearranjo, em matéria tributária ou de serviços da dívida, ou na forma de taxação das grandes fortunas, ou tudo isso junto. Isso não foi feito. Os problemas urbanos se acumulam e se somam à precariedade da situação do novo proletariado. A situação estava meio anunciada, porque esse setor tem condições agora de reivindicar. Na verdade, foi completamente inesperada a maneira como o movimento emergiu. Mas, em retrospecto, a equação que explica o que aconteceu é bem clara.
Por que o senhor localiza o fim do movimento de massas em 1989 – e não no impeachment de 1992?
As manifestações pelo impeachment de Collor são uma espécie de uma última aparição daquele grande ciclo, que já terminara. O ciclo acaba em 1989, porque a derrota de Lula abriu a porta para o neoliberalismo no Brasil e quebrou a espinha dorsal da classe trabalhadora organizada, com aumento do desemprego. Houve uma diminuição expressiva no número de trabalhadores industriais nos anos 1990, seguida pela década do lulismo, onde começou a recomposição do trabalho. É um erro pensar que os movimentos sociais de massa ocorrem na depressão econômica. Eles ocorrem depois da ascensão das condições econômicas.
As manifestações não têm liderança, não têm organização, não têm partido. Por que virariam um grande movimento?
Há uma recusa dos partidos, dos sindicatos, das instituições tradicionais. O princípio fundamental é a descentralização. São movimentos horizontais, em que a orientação principal é não ter hierarquia. Essa horizontalidade tem uma enorme vantagem. Os movimentos são pouco propensos à burocratização, grande problema de partidos e sindicatos. Isso é extremamente saudável. Mas há uma contrapartida: eles não têm uma direção clara e centralizada. Essa característica torna esses movimentos mais difíceis de entender. No que isso vai dar? Foi desencadeada uma energia social que não voltará atrás rapidamente. O curso que ela encontrará não sei dizer. Mas acredito que outras coisas desse tipo virão.
Quais serão as consequências no sistema político?
O novo ator impacta o sistema político, mas não o substitui. O sistema político continuará funcionando. Não deixará de existir, porque, na verdade, passamos por um momento em que esses novos movimentos não têm alternativa. Os partidos terão de incorporar coisas, dialogar com o movimento, fazer concessões, mudar. Alguns ganharão. Outros perderão. Para dar um exemplo concreto, o próprio movimento da Marina Silva é uma antecipação disso, porque ela fala aos ouvidos de parte dos manifestantes.
Marina será a grande ganhadora?
Não digo isso, porque, embora esse movimento se caracterize pela horizontalidade, ele tem uma agenda materialista. Estamos falando da distribuição da riqueza. É isso que está em jogo: para onde vão os recursos, sejam os públicos, sejam os que transitam entre capital e trabalho. Marina lida muito mal com essa agenda materialista, porque ela quer ficar no meio. Essa posição é inviável.
Qual pode ser a consequência nas próximas eleições presidenciais? Atrapalha a reeleição da presidente Dilma?
É impossível fazer um prognóstico. As manifestações pendem para a esquerda. O impacto sobre a candidatura Dilma dependerá de como ela lidará com essa pressão, por mais recursos para transporte, saúde, educação e segurança.
E o PT? Como será afetado?
O PT está desafiado, com o lulismo. Como o PT tem uma importante, embora não dominante, facção de esquerda, esses setores estão diante de perguntas existenciais.
O lulismo atendeu aos anseios de consumo de parte da população. Esse modelo de crescimento não foi posto em xeque pelas manifestações, que pedem melhores serviços públicos e não mais consumo?
Não creio que seja um problema do modelo de crescimento. Ele incluiu pessoas excluídas. Com isso, ativou a economia por baixo. Mas houve uma diminuição da margem para isso. Desde 2011, estamos num quadro complicado, que tem a ver com a crise do capitalismo iniciada em 2008. Acreditava-se que tinha sido contida em 2009. Na verdade, não conhecemos ainda o final do túnel. Se a economia tivesse continuado com um crescimento maior, haveria margem para investir mais em saúde, educação, segurança. Mas ela anda devagar. Os recursos estão mais escassos. Os juros subiram. As restrições ao capital especulativo foram retiradas. E agora há uma enorme pressão para cortes de gastos públicos. Há um pacote para produzir um ajuste recessivo na economia. De alguma maneira, as manifestações dizem: "Isto não!".
O senhor diz que o lulismo não procurou enfrentar o capital na política econômica. Nos últimos dois anos, o governo a flexibilizou, e os resultados foram crescimento baixo e inflação mais alta, por causa dos gastos públicos. A estratégia desenvolvimentista de Dilma não deu resultados.
Isso mesmo. Na crise mundial, o governo Dilma decidiu dar um passo à frente e modificou os termos da política neoliberal. O resultado, em crescimento, foi decepcionante. Os economistas dizem: faltou investimento. Algo na equação então falhou, porque tudo foi feito para proteger o capital produtivo brasileiro. Tenho ouvido reclamações contra o intervencionismo do governo, mas é um intervencionismo para facilitar a vida desse capital. O que não funcionou não está claro ainda. Não quero subestimar o tamanho dos problemas. Mas, se é para seguir a linha reformista, esses problemas precisam ser enfrentados para manter as mudanças. Se voltar à agenda neoliberal, não dá para fazer as mudanças.
Mas Dilma já tem recuado. Aumentou os juros e voltou ao câmbio flutuante.
O governo tem recuado nos últimos seis meses. O capital pede um novo recuo, com o corte dos gastos públicos. Essas manifestações pedem o aumento dos gastos. Por isso, é um momento em que os desafios são sérios e cruciais. Essa é a questão: para onde o governo penderá nessa bifurcação.
Pode haver uma desestabilização do governo?
Não creio. O governo tem capacidade de entender o que acontece e demonstrou que não está descolado. Tenho certeza de que tentará equacionar as questões.
Como resultado, as instituições mudarão?
Sim e não. Sim, pois serão obrigadas a alguma abertura. Mas não a ponto de se desfazer. Os sistemas político e econômico continuarão em suas bases tradicionais. Pode estar se abrindo um ciclo longo, em que haverá as duas coisas. É o que acontece na Europa e mesmo em outros países, onde ocorreu a Primavera Árabe. Os movimentos lá foram enormes, mudaram o regime político. Mas, quando houve eleição, os partidos tradicionais ganharam. É o que deverá acontecer aqui. Temos, nas ruas, milhares de pessoas. Mas o eleitorado são milhões. Esses milhões é que votarão e decidirão.
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André Singer: "A energia social não voltará atrás" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU