15 Setembro 2011
A "Guerra do Rio" acompanhada por todos os brasileiros através do "show midiático" em novembro de 2010 "faz parte de um projeto que está sendo montado há muito tempo, o qual não desmonta a estrutura da violência, porque ela está dentro do próprio aparelho do Estado", diz José Cláudio Alves à IHU On-Line.
Em entrevista concedida por telefone, o sociólogo explica que parte significativa da sociedade civil apoia a repressão e o controle policial nas favelas porque a concepção de segurança pública está relacionada com o combate ao crime. "Para a sociedade, bandido bom é bandido morto. Essa é a ideologia predominante, porque rende dividendos para todos os lados. Quanto mais se matam pobres, negros, favelados de comunidades pobres – isso em uma sociedade segregada como a nossa –, mais se gera um rendimento político, porque a sociedade pensa que o Estado está trabalhando para eliminar o mal, o bandido, o crime organizado".
A instalação de Unidades da Polícia Pacificadora – UPPs nas favelas tem um impacto pequeno no combate à violência, se comparada à adesão de policiais à "estrutura de corrupção". "Esta rede rende algo em torno de 11 bilhões de reais ao Rio de Janeiro. (...) A economia formal também se beneficia com o tráfico de armas e de drogas. O jogo do bicho, por exemplo, é uma das formas mais bem estruturadas do crime organizado: uma família pode lucrar, por semana, com o caça níqueis e o jogo do bicho, dois milhões e meio de reais, algo em torno de dez milhões de reais por mês. A violência existe porque muitos lucram com ela", reitera.
De acordo com José Cláudio Alves, por trás da imagem de cidade maravilhosa, configura-se no Rio de Janeiro a cidade segregada, "onde as pessoas sabem claramente qual é o seu espaço, onde devem estar, que locais podem frequentar, que horário devem sair, que horas devem voltar".
José Cláudio Souza Alves é graduado em Estudos Sociais pela Fundação Educacional de Brusque. É mestre em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor na mesma área pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente é professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor concorda com a informação de que a polícia carioca é a que mais mata no mundo?
José Cláudio Alves – Sim. Essa informação já vem repercutindo há muitos anos no Rio de Janeiro. Em 2008, foram publicados dados referentes ao número de mortes provocadas pela polícia e, naquele período, ela já era considerada letal. Há uma cultura que, de um lado, é homicida e, de outro, é suicida: a polícia que mais mata é também a que mais morre.
IHU On-Line – Qual é a opinião pública diante da instalação de Unidades de Polícia Pacificadoras – UPPs nas favelas cariocas?
José Cláudio Alves – Analiso o quadro do crime organizado no Rio de Janeiro, do tráfico de drogas, grupos de extermínio, a construção dos grupos paramilitares, das milícias, etc. e a minha interpretação está voltada para perceber o quanto essa estrutura foi articulada, organizada e montada pelo próprio Estado. Portanto, a instituição estatal está na base, na origem da construção dessa estrutura de violência e de organização do crime.
A lógica da polícia reforça a militarização e o uso da violência extrema nas questões ligadas à segurança. Há também uma lógica de espetacularização, em que os meios de comunicação transformam a questão da segurança pública num grande show midiático. Os atentados que ocorreram em novembro de 2010 e a ocupação do Complexo do Alemão televisionada pela mídia e denominada de a "Guerra do Rio" fazem parte de um projeto que está sendo montado há muito tempo, o qual não desmonta a estrutura da violência, porque ela está dentro do próprio aparelho do Estado. É o Estado que dá à estrutura de violência a sua condição mais adequada, mais favorável, mais intransponível e impune, já que não se consegue acessar e punir a própria estrutura do crime, que está dentro dos aparatos policiais.
Opinião pública
Nessas operações policiais, é possível prender pessoas, mas a estrutura é muito mais ampla do que se possa imaginar, porque ela funciona há muito tempo e se mantém. A população apoia a ocupação das comunidades, a execução sumária televisionada, a guerra explícita e aberta com o uso de equipamento bélico, porque o combate ao crime já foi "trabalhado" na concepção social de segurança. Para a sociedade, bandido bom é bandido morto. Essa é a ideologia predominante, porque rende dividendos para todos os lados. Quanto mais se matam pobres, negros, favelados de comunidades pobres – isso em uma sociedade segregada como a nossa –, mais se gera um rendimento político porque a sociedade pensa que o Estado está trabalhando para eliminar o mal, o bandido, o crime organizado. Então, a população, que não tem referenciais em relação à segurança pública – porque nunca tive acesso à segurança pública – acredita neste projeto político-midiático como a melhor forma de resolver o problema.
IHU On-Line – Qual o interesse do Estado na militarização e na espetacularização do crime e em manter a estrutura de violência cíclica? Percebe diferentes formas de controlar e disciplinar as massas empobrecidas?
José Cláudio Alves – A militarização e a forma violenta de tratar a questão da segurança já têm sido construídas desde a ditadura militar e serve a uma grande rede de interesses. O Estado segrega populações inteiras de comunidades pobres quando controla entradas e saídas das pessoas das favelas e quando controla o que acontece nestas comunidades. Então, quando a milícia ou um grupo paramilitar entram em uma área segregada, eles podem operar em inúmeros serviços e ganhar muito dinheiro. Para se ter uma ideia, eles vendem água pública, terra de barrancos – desmontam barrancos de morros para aterrar áreas pantanosas para que as pessoas possam construir suas barracas –, vendem gás, internet. Como se percebe, um conjunto de serviços urbanos que operam hoje, na cidade do Rio de Janeiro, são oriundos das áreas segregadas.
A polícia até consegue prender alguns traficantes, mas a adesão de policiais à estrutura de corrupção é mais ampla. Essa estrutura se associa a outras estruturas tradicionais do crime como o roubo de carro, de casa, tráfico de armas e de drogas. Portanto, esta rede rende algo em torno de 11 bilhões de reais ao Rio de Janeiro. Um quilo de cocaína custa cerca de sete mil reais. Ao misturar essa quantidade com fermento para bolo, fazem-se 47 mil, o que significa que se têm sete vezes o valor investido inicialmente. Quem faz essas operações de milhões não são os pequenos traficantes que estão presos e, sim, os empresários, banqueiros, pessoas que estão totalmente vinculadas à economia formal. Portanto, a economia formal também se beneficia com o tráfico de armas e de drogas. O jogo do bicho, por exemplo, é uma das formas mais bem estruturadas do crime organizado: uma família pode lucrar, por semana, com o caça níqueis e o jogo do bicho, dois milhões e meio de reais, algo em torno de dez milhões de reais por mês. A violência existe porque muitos lucram com ela.
IHU On-Line – Quais foram os desdobramentos do combate ao tráfico de drogas, da ocupação militar no complexo do Alemão e da implantação de UPPs nas favelas cariocas no ano passado?
José Cláudio Alves – Depois da pacificação de algumas favelas, os traficantes continuaram tendo acesso a armas porque a polícia revendeu o material para eles.
Para entendermos o crime no Rio de Janeiro, é necessário compreender a história de cada área para poder avaliar este grande tabuleiro. A facção criminosa Comando Vermelho, que é a hegemônica do crime organizado do tráfico de drogas, está sendo empurrada para a periferia, para atuar na Baixada Fluminense, na área da Leopoldina. O Comando Vermelho está tentando impedir essa transferência e por isso acontecem os confrontos a que estamos assistindo.
As UPPs estão em aproximadamente 69 comunidades, das mil comunidades existentes na cidade. A partir desses dados, se vê que elas estão concentradas em áreas de interesse do Estado, as quais vão receber investimentos para a Copa do Mundo. Além disso, as UPPs estão sendo instaladas em áreas que não são as mais violentas. As áreas violentas estão nas periferias da Baixada Fluminense e na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Estas, pelo contrário, não receberam nenhum tipo de política que pudesse reduzir a violência.
Não posso negar que nos locais em que se instalaram as UPPs os confrontos armados, as vitimizações e os tiroteios foram reduzidos. Entretanto, o crime continua sendo organizado nestas comunidades e está operando sem tiroteio. As UPPs reintroduziram o debate sobre a remoção de favelas e comunidades, o qual tinha desaparecido. Percebe-se também a politização das políticas públicas, quer dizer, as comunidades recebem políticas através da polícia, e não mais por meio da liderança da comunidade. A pior forma de se resolver a questão da segurança é militarizá-la e colocá-la de cima para baixo. É isso que as UPPs fazem.
IHU On-Line – Qual seria a alternativa à ocupação da polícia nas favelas? Em que consistiria uma política de segurança pública eficaz no Rio de Janeiro?
José Cláudio Alves – Seria necessária uma construção social para se discutir o problema da comunidade, compreender quem são aquelas pessoas, que lideranças elas formam, etc.
IHU On-Line – O que favorece o surgimento de milícias nesses ambientes?
José Cláudio Alves – A convivência, ao longo de vinte anos, do aparato policial nas favelas com o crime organizado. Sempre houve uma relação direta entre a polícia e o tráfico de armas e drogas nestas comunidades. Portanto, esta convivência permitiu a construção de um projeto.
Com a introdução das milícias nas favelas, não se precisam mais arregimentar pessoas empobrecidas para instruí-las como se deve usar uma arma; o policial já tem este entendimento. Então, não existem confrontos armados porque não há confrontos entre milícias e a estrutura policial. As milícias estão encontrando um cenário extremamente favorável de lucratividade, de controle sobre as comunidades, sem nenhuma ação que possa impedi-las de continuar funcionando.
Enquanto as facções criminosas enfrentam dificuldades porque disputam territórios entre si, as milícias possuem um comando mais organizado e hierarquizado por dentro da estrutura do Estado, sem confrontos abertos contra o aparato policial. A sociedade carioca vive uma situação muito dramática e a população não entende o que está acontecendo. Assim, ela apoia aquilo que midiaticamente é mais forte e acaba reforçando esta estrutura da violência. É fundamental qualificar a população e fazê-la compreender esta realidade para agir melhor frente a tudo isto.
IHU On-Line – Qual é a herança da ditadura militar na polícia carioca? Como o senhor vê a utilização das Forças Armadas para assegurar a segurança pública interna no Rio de Janeiro?
José Cláudio Alves – A estrutura militar nunca foi desmontada. Em 1967, concebeu-se a polícia militar da forma que ela atua hoje: repreensiva, ostensiva. Além disso, a polícia nunca foi, de fato, limitada no uso do poder.
Do total de homicídios do Rio de Janeiro, apenas 7,8% são investigados pela polícia. Havia uma meta do Ministério Público de solucionar todos os crimes de homicídio cometidos até de 2007. Entretanto, descobriu-se que, no de Rio Janeiro, 96% de todos estes casos foram arquivados pelo Ministério Público.
Um comandante da Polícia Militar quer semanalmente em suas mãos 20 talvez 30 mil reais. Este dinheiro é obtido através de propina de crimes que foram cometidos. Além disso, os policiais sequestram traficantes e cobram para liberá-los. Eles pedem dinheiro dos comerciantes, dos banqueiros, dos empresários. Essa estrutura é corporativa e respaldada em uma lógica de violência crescente. Portanto, achar que uma tropa incorruptível como o BOPE está isenta disto é uma ilusão. Em 2005, o BOPE alugou o "caveirão" para que traficantes de uma favela sequestrassem oito jovens da comunidade de Vigário Geral. Estes jovens nunca foram encontrados.
Forças armadas
As Forças Armadas seguem a mesma lógica de que a violência se resolve a partir da militarização. O Exército é qualificado para uma lógica de confronto sem derrota: a tropa jamais pode voltar derrotada. Então, amplia-se mais ainda a violência.
As tropas que ocuparam o Complexo do Alemão foram treinadas por anos no Haiti e possuem uma concepção de atuação muito mais brutal. Esta é uma prática muito antiga nos Estados Unidos: eles sempre treinaram suas tropas em confrontos exteriores para depois utilizá-las em confrontos internos. Foi assim nos confrontos em 1994 em Los Angeles e em Nova Orleans depois do Furacão Katrina. O Brasil está ensaiando este modelo, sobretudo por causa dos futuros eventos que acontecerão no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – Como entender a aceitação da população em relação à atuação da polícia, quando se sabe que existe milícia, corrupção? A aceitação é apenas em função da mídia?
José Cláudio Alves – Outros fatores explicam essa aceitação: há uma ausência de alguma política coerente ou significativa de segurança pública. Nós estamos falando com uma população que não tem acesso a isso, uma população que muitas vezes está entregue à ferocidade. As pessoas nunca perceberam o que seria conviver numa outra realidade. Logo, a sua concepção é essa lógica da execução sumária.
Os traficantes e a polícia, que controlaram a violência nessas comunidades, usam dessa violência para fazer o controle. Vou dar um exemplo: se um traficante cometer algum crime contra a própria população da favela e o líder daquela facção tiver consciência disso, ele punirá violentamente o garoto para que sirva de exemplo para aquela comunidade. Portanto, as pessoas estabelecem uma segurança calcada na violência. Assim, como essas comunidades vão perceber outra forma de segurança? Não há para eles esse universo.
IHU On-Line – Como vê a imbricação entre favelas e grandes centros no Rio de Janeiro? Como se dá essa relação entre a população? Diferentemente de outros estados brasileiros, percebe no Rio de Janeiro uma separação classista? Como essa discriminação contribui para propagar a violência?
José Cláudio Alves – O Rio de Janeiro foi constituído assim: é a cidade maravilhosa, mas também é a cidade de chumbo. Para entender essa construção histórica, temos de nos remeter ao início do século XX, às políticas que seguiram nos moldes de remoção, como o Plano Agache. Mais tarde, surgiu o projeto populista com Getúlio Vargas, que tentou romper com essa modalidade de segregação e de remoção. A partir daí, permitiu-se, através da lógica populista de votação do operariado negro, a construção de espaços de comunidades empobrecidas dentro das áreas de interesse econômico com o objetivo de reconhecer e valorizar o trabalhador urbano pobre. Então, é assim que se consolidam as grandes favelas no Rio de Janeiro em 1940 e 1950. A ditadura militar retoma a ideia das remoções, e aí acontecem as remoções do Morro da Catacumba e de áreas do centro do Rio de Janeiro.
A lógica segregadora sempre existiu no Rio de Janeiro. Há um discurso de que o carioca é o homem cordial, mas por trás dessa imagem existe uma cidade segregrada, em que as pessoas sabem claramente qual é o seu espaço, onde devem estar, que locais podem frequentar, que horário devem sair, que horas devem voltar. O Rio de Janeiro é o maior campo de concentração sem arame farpado do mundo, porque um terço da população extremamente empobrecida é controlado a partir de uma polícia criminosa. É uma estrutura muito eficiente e com baixíssimo custo.
Eu moro em Vigário Geral e canso de ver as pessoas dizendo que moram no bairro Jardim América, que fica próximo. Há essa tentativa de ludibriar. Alguns moram em Pavão ou Pavãozinho, mas dizem que moram em Copacabana. O Rio é uma grande ilusão: permite-se a criação de uma imagem de prazer, da beleza, mas o preço que se paga para manter essa imagem é elevadíssimo e ninguém quer discutir o assunto.
IHU On-Line – Qual a importância de manter uma cultura do medo coletivo para a construção das sociedades urbanas no Brasil? Como esse medo se instaura na sociedade? A polícia é suficiente para apaziguar esse sentimento?
José Cláudio Alves – O medo se transformou na grande chave desse processo de controle. A fronteira dessa estrutura política e econômica de dominação se volta para as próprias periferias que ela construiu em termos espaciais. O Estado e o capital precisam da extração de uma mais-valia cada vez maior e com riscos cada vez menores em cima desses segmentos. E, para conseguir isso, utilizam-se de formas de controle, sobretudo a partir da violência, da execução sumária, de projetos de segregação. Esse modelo nos diz que, para que o novo salto tecnológico e econômico aconteça, é preciso consolidar populações que vão ser efetivamente segregadas, eliminadas, executadas.
O medo é determinante e nos impede de fazer denúncias e questionamentos. Esse medo que nos amedronta todos os dias quando olhamos jovens, pobres, negros, moradores de periferias, moradores de favelas, nos distanciam dessas pessoas. Os ricos e a classe média não frequentam mais os locais onde a população pobre está. Por outro lado, essa parcela da população também não consegue mais se aproximar porque sabem o lugar deles, sabem do risco que é fazer essa aproximação.
A sociedade enlouqueceu
Esse medo vai corroendo toda a possibilidade de solidariedade, compaixão, de alianças no campo político ou econômico, elementos que pudessem construir outro projeto de nação. É difícil de derrubá-lo, porque o medo não é algo racional: as pessoas alimentam uma visão sobre o mundo e começam a encaixar tudo o que veem no mundo dentro dessa visão. Então, alguém pode estar vendo algo que não é nada daquilo que acha que está vendo e, mesmo assim, achar que é aquilo. O medo impede de ir além daquela concepção: as pessoas sentem pavor, se isolam, se fecham, reduzem o núcleo de relacionamentos, reduzem a área de expansão, começam a olhar para as populações que são criminalizadas ou criminalizáveis de uma forma absolutamente distinta, sem que tenha o menor interesse em se aproximar delas e até endossando toda essa política de eliminação, de execução sobre elas.
Para mudar esse comportamento, as ações precisam ser conduzidas em várias direções: nas políticas de segurança voltadas para as áreas sociais na educação. Seria necessário construir linhas de comunicação entre as comunidades, para que pudessem interromper essa segregação. E, no campo da subjetividade humana, temos que construir elementos que estão desaparecendo, como a solidariedade, a compaixão, o colocar-se no lugar do outro, o ser capaz de olhar para o próprio medo. A violência está mexendo exatamente com a sobrevivência de todos nós. O medo nos impede de fazer esses movimentos, e aí surgem todas as doenças da modernidade porque a sociedade enlouqueceu. Normalmente, tenho dito isso: nós enlouquecemos porque tudo virou motivo para ações violentas. As pessoas perdem o senso; elas perderam as suas referências.
(Por Patricia Fachin, Rafaela Kley e Stéfanie Telles)
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"A sociedade enlouqueceu: tudo virou motivo para ações violentas". Entrevista especial com José Cláudio Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU