28 Outubro 2009
Uma cidade maravilhosa, mas em guerra. O Rio de Janeiro vive há muitos anos uma situação de gravidade extrema. “Ela se tornou extrema a partir do momento em que as Forças Armadas do Rio de Janeiro e outras partes do Brasil tiveram como princípio da ação policial o enfrentamento de determinado tipo de crime, ou seja, o tráfico varejista de drogas nas favelas”, explica Jailson de Souza e Silva, coordenador geral do Observatório de Favelas, durante a entrevista que cedeu à IHU On-Line por telefone. Jailson analisa o cotidiano que o Rio de Janeiro vive hoje, mas revela, principalmente, o que o morador da favela precisa enfrentar todos os dias. “Costumam falar que a favela é violenta. A favela não é violenta, mas sim é o território da cidade mais atingido pela violência. Os moradores vivem numa situação de tensão provocada pela ausência do Estado no plano da segurança pública”, critica.
Jailson de Souza e Silva é graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com especialização em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É mestre em Educação e doutor em sociologia pela PUC-Rio. Atualmente, é professor na UFF; diretor de projetos do Centro de Educação e Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e Coordenador Geral do Observatório de Favelas.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Podemos dizer que a situação que o Rio de Janeiro vive hoje é de uma gravidade extrema?
Jailson de Souza e Silva – Extrema ela é há muitos anos. Ela se tornou extrema a partir do momento em que as Forças Armadas do Rio de Janeiro e outras partes do Brasil tiveram como princípio da ação policial o enfrentamento de determinado tipo de crime, ou seja, o tráfico varejista de drogas nas favelas. A partir dessa definição, buscou-se estabelecer um processo de guerra contra as drogas. Então, se começa a pensar, cada vez mais, na perspectiva de enfrentarmos o controle dos grupos criminosos nas favelas a partir do enfrentamento bélico onde se estabelece uma guerra de extermínio. Com isso, esse crime passou a ser o principal combatido, e não o tráfico de armas, sonegação fiscal etc. Esse é o demônio da vez. O grande demônio do país hoje é o Fernandinho Beira Mar, mas não temos, por exemplo, o Daniel Dantas. Porque o crime do primeiro é considerado o mais danoso para a sociedade. O Gilmar Mendes, por exemplo, se desse dois habeas corpus seguido, como deu para o Daniel Dantas, para o Fernandinho Beira Mar, aconteceria uma revolução no Supremo. Ele provavelmente sofreria um afastamento.
Além disso, há uma estratégia específica de enfrentamento, que é centrado no enfrentamento bélico. Não investimos, por exemplo, na desarticulação desses grupos que dominam as favelas. Veja bem: a soberania é a capacidade de regular a ordem social. No caso do Rio de Janeiro, o Estado permitiu que a ordem social nas favelas fosse privatizada, ou seja, regulada por grupos criminosos. Num processo de enfrentamento desses grupos, ao invés de fazer uma ação onde se recupera a soberania do Estado nas favelas e se ocupe de forma ordenada e de forma sistemática, simplesmente declaram a guerra. E aí entram as armas de guerra em locais onde existem 20 - 25 mil pessoas por quilômetro quadrado.
Da década de 1980 para a década de 1990, nós triplicamos o número de mortos por assassinato no país. Além disso, aumentou a corrupção policial e judicial, a insegurança, a criminalidade, o uso de armas pesadas no cotidiano do Rio de Janeiro e, pior, não se conseguiu avançar um milímetro no controle do tráfico de drogas a varejo. Tanto que a cocaína e maconha têm os mesmos preços médios que tinha na década de 1980. Então, vivemos um paradigma extremado que não atinge solução alguma.
IHU On-Line – Que soluções ou que medidas você aponta para resolver o problema da violência e o tráfico no Rio de Janeiro?
Jailson de Souza e Silva – Primeiro, precisamos reconhecer que não há solução a curto prazo. O Estado precisa recuperar a soberania sobre toda a cidade. Isso precisa ser um processo progressivo, que garanta os direitos fundamentais dos moradores. Para isso, é fundamental o uso de inteligência. Não adianta a Força Nacional, junto com a PM, invadir o Morro do Alemão, um dos maiores do RJ, matar dezenas de pessoas, e, no dia seguinte, o grupo criminoso com o mesmo chefe aparecer no local, com mais legitimidade ainda. Esse tipo de postura não tem sentido.
Tem que haver um feroz combate ao tráfico de armas, porque o que derrubou o helicóptero, por exemplo, não foi uma sacola de cocaína, foi uma arma de grande calibre. Precisamos evitar a circulação dessas armas. Temos que romper com a lógica simplesmente no varejo, é importante que consigamos impedir que a droga chegue às favelas. É necessário construir uma política de segurança centrada na valorização da vida e no respeito aos direitos humanos. Isso significa que precisamos de uma polícia comunitária e assim reconhecer que os moradores das favelas são os mais atingidos pela violência. Volta e meia sai nos jornais aqui do RJ que, por exemplo, os moradores de Ipanema não dormiram por causa de tiroteio no Cantagalo. Como se os moradores do Cantagalo fossem surdos e também não fossem afetados pelo tiroteio. Costumam falar que a favela é violenta. A favela não é violenta, mas sim é o território da cidade mais atingido pela violência. Os moradores vivem numa situação de tensão provocada pela ausência do Estado no plano da segurança pública. As soluções estão dadas, portanto.
IHU On-Line – A polícia brasileira está preparada para defender a população?
Jailson de Souza e Silva – A população brasileira ainda trabalha com muitos estereótipos, principalmente no campo da violência. Precisamos entender que só a polícia é responsável pela questão da segurança. Não vai haver nunca uma solução para a segurança enquanto não for incorporada por outros setores. Além disso, continua-se achando natural, no Rio de Janeiro, que se usa a violência para combater a criminalidade. Isso faz com que a violência aumente cada vez mais. Temos uma crise profunda de compreensão da realidade efetiva das favelas cariocas.
IHU On-Line – A invasão de morros por redes de quadrilhas rivais é comum?
Jailson de Souza e Silva – Nós chamamos, na verdade, de grupos criminosos armados com domínio de território. Significa que o controle do território é central para desenvolver um conjunto de atividades econômicas ilegais, tais como transporte alternativo, monopólio da venda de gás, o “gato net”. Então, há um conjunto de ações hoje que passa do controle de território. Os grupos criminosos disputam o território. Com isso, há muitas mortes. A polícia não consegue agir de forma preventiva. O problema são as ações pontuais e imediatas que não o enfrentam de forma global. Aí não temos mesmo alternativa.
IHU On-Line – Qual a força que o Comando Vermelho tem ainda na cidade?
Jailson de Souza e Silva – Os grupos criminosos continuam muito fortes aqui no Rio de Janeiro. Eles continuam com poder de regular a ordem social. O Comando Vermelho é o grupo que tem mais territórios, logo é o que tem mais peso. O problema não é o Comando Vermelho, mas sim a estratégia dos quatro grupos para controle dos territórios e, assim, regulá-los de forma autocrática a vida dos moradores das favelas. Então, quando o Comando Vermelho se enfraquece, o espaço dele é ocupado por outro grupo. Assim, o problema é a rede, a estrutura de funcionamento que permite a existência de grupos criminosos que terminam compondo o cenário carioca profundamente desestabilizador, fora de controle pelas Forças de Segurança e pela sociedade civil.
IHU On-Line – O que Evandro João da Silva representava para a comunidade?
Jailson de Souza e Silva – O Evandro era o coordenador do Afroreggae. Ele era referência como jovem da comunidade que busca outros caminhos. Tem uma bobagem que é a ideia de que a imensa maioria dos jovens da favela está envolvida com tráfico de drogas. Mas, no máximo, 1% dos moradores da favela está realmente envolvida. A imensa maioria trabalha no mercado formal ou informal, e está aumentando muito a qualificação em termos escolares. O Evandro era um militante e desenvolvia ações educacionais. Ele era muito dedicado, muito humano, muito alegre. A morte dele foi lamentável, assim como foi de muitos moradores da cidade. Ele foi um símbolo desse tipo de tragédia e da ação de maus policiais.
IHU On-Line – Você sente medo no Rio de Janeiro?
Jailson de Souza e Silva – Eu não. Tem um sentimento de insegurança na cidade hoje que é muito grande. É muito maior do que os dados concretos. Mas eu nunca fui assaltado no Rio de Janeiro e olha que eu vou fazer 50 anos. No entanto, fui assaltado duas vezes em Niterói, que é uma cidade vizinha e considerada muito menos violenta. Existem representações da violência como se a gente vivesse na selva exposta a todos os perigos, o que não é verdade. Existem problemas localizados, principalmente a partir da ação de grupos criminosos privados que precisam ser enfrentados. Mas a vida é a típica das grandes cidades. Esse sentir medo que domina as pessoas é que as impede de se vincular a cidade, de encontrar os outros e, principalmente, de acabar com a indiferença. Temos que enfrentar a paralisia provocada pelo medo e todas as consequências que ele gera.
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"Temos uma crise profunda de compreensão das favelas". Entrevista especial com Jailson de Souza e Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU