Como transmitir os valores da Laudato si’? Entrevista com Marianella Sclavi

Foto: Johan Bergström-Allen | British Province of Carmelites | Flickr CC

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10 Dezembro 2025

"Há muita desesperança: as pessoas hoje, muitas vezes, não veem alternativas, pensam que nada jamais poderá mudar e, por isso, se fecham em si mesmas."

Marianella Sclavi, professora de etnografia, escritora, ativista, autora de long-sellers como A senhora vai ao Bronx (1994) e A arte de ouvir e mundos possíveis (2022), colabora com o Movimento Laudato si’ na aplicação de métodos de participação ativa na área ambiental.

A entrevista é de Giordano Cavallari, publicada por Settimanna News, 07-12-2025. 

Eis a entrevista.

Marianella, no que a senhora está atualmente trabalhando?

Estou concluindo uma pesquisa na França, em Nantes, sobre uma experiência de governo local que se prolonga desde 1989 e se fundamenta no confronto permanente entre os saberes e as experiências dos administradores políticos, dos técnicos e dos cidadãos: quando, de fato, esses três saberes/experiências dialogam entre si e aprendem reciprocamente, os projetos civis resultam mais completos e têm muito mais chances de sucesso. Quero demonstrar isso em um livro de 300 páginas, que será publicado na Itália em maio de 2026 pela editora Bordeaux, e depois, espero, também na França.

Outro compromisso que tem me tomado muito, desde o início do conflito, é o trabalho pela Ucrânia: sou uma das fundadoras do Movimento de Ação Não Violenta e, por isso, estive 14 vezes na Ucrânia, nos últimos anos, para ouvir as histórias das pessoas “comuns” que vivem na própria pele, todos os dias, as consequências da guerra; vou sempre para ouvir, aprender e admirar, por exemplo, o grande número de médicos e enfermeiros voluntários que trabalham a poucos quilômetros da linha de frente para resgatar e cuidar de feridos, ou ainda os protagonistas (muitos deles muito jovens) de uma vasta rede anticorrupção, pouco conhecida na Itália.

Para a maioria dos ucranianos, lutar contra a agressão russa e contra a corrupção são duas faces da mesma moeda. A recente e vitoriosa insurreição popular contra uma lei que pretendia limitar os poderes da Agência Anticorrupção não foi, para nós do MEAN, uma surpresa.

Também me acontece de trabalhar – e é esta a circunstância de nossa entrevista – com o Movimento Laudato si’, cujos valores compartilho apaixonadamente: fui procurada pelos responsáveis para dar uma contribuição profissional ao processo de sensibilização e de envolvimento das comunidades, na passagem do “dizer ao fazer”.

Não se escondem as grandes dificuldades – que existem – em mobilizar as próprias pessoas das paróquias.

Participei recentemente de um belo encontro em Assis – por ocasião dos 800 anos do Cântico das Criaturas de São Francisco, no 10º aniversário da Laudato si’ e durante o Jubileu.

Aos 82 anos, joguei-me com entusiasmo também nesse compromisso, porque vale a pena e me convence.

Como se podem efetivamente transmitir os valores da Laudato si’?

Toda transição efetiva é, antes de tudo, de natureza antropológica, antes ainda que, como neste caso, de natureza ecológica: trata-se de mudar hábitos profundamente enraizados, modos de pensar e de interagir na vida cotidiana. Por isso, coloquei à disposição, junto com a Associação Italiana de Epistemologia e Metodologia Sistêmicas (AIEMS), também um Caderno que possa ajudar os animadores do Movimento a adquirir aquelas competências que facilitam a criação dos contextos e dos pressupostos que tornam efetivamente possível realizar esses valores.

Não basta ir até as pessoas dizer que “a terra está morrendo”, mesmo sendo verdade. É preciso colocar as pessoas em condições de compreender e agir por conta própria: por isso, é decisiva a adoção de métodos que permitam fazer emergir aquilo que se chama de inteligência coletiva, que estudo e pratico há uma vida inteira.

A senhora pode explicar como funciona o método?

Em si, ele é muito simples. A nossa modalidade “normal” de interação é a do relacionamento julgador: estamos acostumados a nos colocar na postura do “eu sei, você não sabe”; ao passo que, se quisermos chegar juntos a algum lugar, deve-se aplicar a regra que diz: “quando alguém discorda de você, não tente explicar-lhe que está errado, tente entender em que sentido ele está certo”.

Com o método da escuta ativa, parte-se do pressuposto de que “o outro e a outra sabem tanto quanto eu” e que, se pensamos de maneira diferente, é preciso chegar a compreender “o que o outro sabe que eu não sei”.

Não posso ensinar sem aprender: este é o pressuposto fundamental.

Isso se torna evidente especialmente nas questões que dizem respeito à transição e ao meio ambiente: enquanto ficarmos presos a modalidades interativas julgadoras e nos polarizarmos em brigas, em vez de buscar soluções já existentes em alguma parte do mundo e que também servem para nós.

Quando o interlocutor reage dizendo: “sim, mas não no meu quintal”; em vez de explicar-lhe que está errado, precisamos compreender suas razões e assumi-las como nossa responsabilidade. A escuta ativa é a criação de uma escuta recíproca visando inventar juntos soluções de interesse mútuo. Somente se há escuta ativa, a partir de experiências concretas, acontece algo que permite avançar rumo à realização do valor.

A senhora poderia dar algum exemplo concreto?

Trabalhei – a convite da Prefeitura de Roma – em uma questão relativa à localização de usinas de reciclagem de resíduos orgânicos (compostagem). Enfrentei, de um lado, projetos desenhados “em gabinete” pela ACEA e pela administração municipal e, de outro, cerca de dez comitês de cidadãos das áreas periféricas onde as usinas deveriam ser construídas, firmemente contrários. Recebi a incumbência de recolocar em diálogo a administração e os cidadãos, já em posições polarizadas e inconciliáveis.

Eu gosto muito de conversar com quem é “contra”, porque sei que sempre tenho algo a aprender: assim, fui falar com os representantes dos comitês – entre os quais havia pessoas muito bem preparadas – além dos simples cidadãos. Lembro-me de um, exasperado, porque já levava uma hora para chegar ao trabalho e achava que, com o aumento do tráfego ligado à nova usina, jamais chegaria a tempo. Colocavam-se também as questões dos odores e das dimensões: há usinas que fedem e outras não, é melhor uma grande ou muitas menores?

Cada um desses problemas deve ser enfrentado todas as vezes, e a concretude e o diálogo entre todos os interessados são fundamentais para encontrar soluções inéditas e que funcionem. Mas é preciso passar do debate ao diálogo, e para isso são úteis facilitadoras e facilitadores.

Organizei o trabalho partindo da consciência – já compartilhada – de que as usinas de compostagem são úteis e são para o bem de todos; promovi visitas “em campo” com os técnicos da administração municipal e com os cidadãos. Pouco a pouco, a partir de uma situação completamente bloqueada, chegou-se a um possível acordo, hoje já parcialmente, mas ainda não integralmente, realizado, por razões estritamente políticas.

Este é um exemplo típico de como se pode chegar a boas soluções – também de caráter ambiental –, ouvindo quem vive e habita o “lugar”.

Outro exemplo é relatado no Caderno (na p. 20), a propósito da economia de energia em bairros de moradias populares.

A participação existe apenas quando as pessoas são tocadas diretamente?

Para obter a participação das pessoas é preciso ser capaz de fazê-las perceber o quanto sua experiência é importante para ajudar a tomar as melhores decisões político-administrativas.

Em geral, muitas pessoas têm medo de aparecer, de intervir, de participar: têm medo do julgamento dos outros.

Certamente, não se pode pensar que todos possam chegar à participação ativa. Existem técnicas de ativação que preveem a constituição de pequenos grupos de opinião das comunidades. E é preciso aceitar que se forme uma liderança local – geralmente de quem já tem um papel conhecido na comunidade, como um farmacêutico – que, por sua vez, ouve e recolhe a inteligência ativa de toda a comunidade: uma espécie de “sal da terra” que permite transferir os problemas individuais para um plano coletivo e de maior esperança.

Esperança?

Sim, porque há muita desesperança: as pessoas hoje, muitas vezes, não veem alternativas, pensam que nada jamais poderá mudar e, por isso, se fecham em si mesmas.

Primeira objeção: para fazer isso é preciso tempo. Tempo demais?

As decisões tomadas de cima para baixo provocam reações de oposição e não funcionam no longo prazo, porque não criam confiança no bem comum. Daí o abandono político e a deserção do voto.

O consenso informado e a participação exigem tempo, recursos e investimentos iniciais, mas esse tempo depois economiza mais tempo e mais dinheiro.

Em três meses, com a minha equipe, já conseguimos criar grupos locais capazes de trabalhar segundo esse modelo, chegando sozinhos às soluções.

Aquilo que funciona em nível local pode funcionar também em escala nacional?

Na França, em 2019, o presidente Macron criou a Assembleia dos Cidadãos para a descarbonização, com 150 pessoas escolhidas por amostragem social. Durante nove meses, trabalharam com cientistas e técnicos, com tudo pago pelo Estado.

Produziram um documento completo. Apenas cerca de 15% foi implementado. Mas, insatisfeitos, os 150 criaram por conta própria um comitê nacional que até hoje pressiona o governo. É uma das experiências mais bem-sucedidas de democracia participativa em curso.

O Movimento Laudato si’ pode ambicionar algo desse porte?

É um movimento internacional, pode buscar fundos e formar facilitadores locais. Quando há dois ou três facilitadores em cada comunidade, os próprios políticos passam a entender que as decisões só funcionam com as pessoas, não sobre as pessoas.

Marianella, por que a Laudato si’ é tão importante para a senhora?

Defino-me como agnóstica, mas me apaixonei por essa encíclica, porque ela expressa exatamente aquilo que penso a vida inteira. E isso até me faz duvidar de que o Espírito Santo não exista mesmo.

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