Guarde o coração na palma da mão e caminhe. Comentário de João Lanari Bo

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03 Dezembro 2025

"Guarde o coração na palma da mão e caminhe, por fim, esgota racionalizações abstratas induzidas rumo a uma conclusão, ou mais uma conexão. O mundo de Fatima Hassouna não é simbólico, é à flor da pele", escreve João Lanari Bo, professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo), em comentário publicado por A Terra é Redonda, 28-11-2025.

Eis o comentário.

1.

Guarde o coração na palma da mão e caminhe, dirigido pela iraniana Sepideh Farsi, insiste numa imagem arrebatadora, o rosto de Fatima Hassouna, palestina de 24 anos, residente em Gaza. Durante quase um ano Sepideh Farsi ligou para Fatima, chamadas com vídeo, a despeito das dificuldades de conexão – e dos bombardeios e tiros.

Idas e vindas da conexão funcionam como pontuação cinematográfica, connexion cortada (em francês: o celular da diretora é de Paris, onde mora) e retomada. O sorriso de Fatima Hassouna preenche a tela, ilumina a tela. O rosto humano, dizem os cabalistas, é um mapa, reflexo físico da alma e local de revelação espiritual.

A linguagem é simples, direta, são dois eixos que se oferecem ao espectador: as ligações em primeiro plano, e imagens da devastação de Gaza, captadas com um olhar atento e expressivo, breves interpolações que contextualizam a cena. A fotógrafa é a própria Fatima Hassouna: suas fotos, postadas no Instagram, conseguem a proeza de se diferenciar da massa de informação visual que (quase) banalizou a tragédia diária que se passa na Faixa de Gaza.

Claro, Fatima Hassouna não é a única testemunha que corre por fora do mercado de imagens efêmeras dessa guerra brutal, outras vozes também vieram (e vêm) à tona. Seu sorriso acolhedor, sem embargo, é único, desarma e prende a atenção do espectador.

A linha do tempo de Guarde o coração na palma da mão e caminhe começa em 24 de abril de 2024, e termina 15 de abril de 2025. Sepideh Farsi, impedida de entrar em Gaza, conhece no Cairo um palestino refugiado, Ahmad, que passa o contato de Fatima.

No mundo hiperconectado dos nossos dias, tomado por feeds e algoritmos, a imagem da Fatima Hassouna rompe com a sucessão de fragmentos que concorrem para a impressão de realidade gerada por notificações e estatísticas, reportagens e breaking news, todos capazes de levar a ondas fugazes de indignação, mas desumanos.

A comunicação entre sujeito e objeto do documentário – na falta de uma palavra que melhor defina o formato do filme – cria uma sensação de proximidade pelo uso familiar do dispositivo, humanizando o sofrimento da guerra.

2.

Mas, hélas, Fatima Hassouna é uma imagem, pura representação digital, formada por uma grade de pequenos quadrados chamados pixels – e a união desses pixels com informações das cores cria a imagem completa. À familiaridade dos gestos e falas, sobrepõe-se a impotência e, no limite, o entorpecimento. A rotina de Fatima Hassouna é implacável – falta água, comida, a destruição aproxima-se de sua casa cada dia que passa, mas ela não desanima.

Falar com Sepideh Farsi é uma intermitente evasão – seus olhos brilham quando fala sobre seu desejo de visitar Teerã, Roma, Vaticano. São picos de alegria que suspendem o cruel distanciamento entre os pontos de fala. Ao saber que o filme foi selecionado para exibição no festival de Cannes – o áudio oscilou nesse momento – ela exulta: “Sim, sim, eu conheço!” À pergunta se gostaria de comparecer, não hesita: “Claro!”.

Guerras, como sabemos, funcionam como vitrines de novas tecnologias – e a comunicação entre Fatima Hassouna e Sepideh Farsi faz parte desse conjunto. Outras tecnologias, porém, são absurdamente letais: em 2021, Israel anunciou que as big techs Amazon e Google haviam vencido licitação de 1,2 bilhão de dólares para implantar centros para “nuvens” no território israelense, com o objetivo de alavancar a tecnologia local.

Em princípio destinada a dados da administração, a finalidade da “nuvem”, ao que parece, favoreceu também a implantação de um meticuloso sistema de reconhecimento biométrico, com a finalidade de destruir e aniquilar alvos selecionados. A execução de Yahya Sinwar, em 16 de outubro de 2024, líder do Hamas tido como mentor do ataque de 7 de outubro de 2023, foi o ápice espetacularizado – e macabro – dessa tecnologia.

Fatima Hassouna, sempre enaltecendo a capacidade de luta do povo palestino, não esconde um certo desapreço por Yahya Sinwar – “muita gente aqui não gosta disso, não gostaram desta eleição. Por isso estão rejeitando Sinwar”. É o único comentário político que faz. De resto, o diálogo flui, mesmo nos momentos de depressão – o sorriso, logo em seguida, volta a iluminar a imagem. E as bombas não param de cair.

Guarde o coração na palma da mão e caminhe, por fim, esgota racionalizações abstratas induzidas rumo a uma conclusão, ou mais uma conexão. O mundo de Fatima Hassouna não é simbólico, é à flor da pele.

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