02 Dezembro 2025
No último Festival de Cannes, em maio de 2025, uma presença aguardada era a da jovem fotojornalista palestina Fatma Hassona, 24 anos, protagonista do documentário Guarde o Coração na Palma da Mão e Caminhe. Dirigido pela cineasta iraniana Sepideh Farsi, o filme havia sido selecionado para a seção ACID, uma mostra paralela organizada pela Associação para a Difusão do Cinema Independente. No entanto, um dia depois que soube da seleção, quando ainda cogitava se poderia sair de Gaza para ir ao festival, Fatma foi morta, com outros cinco membros de sua família, num ataque israelense - que, como acusa a cineasta, nesta entrevista exclusiva a Neusa Barbosa, do Cineweb, teria sido intencional para calar a voz da jovem, uma ativa fotógrafa e denunciante do genocídio palestino.
A entrevista é de Neusa Barbosa, publicada por CineWeb, 26-11-2025.
Nesta entrevista, concedida via zoom, Sepideh Farsi, radicada na França há mais de 40 anos por sua própria militância política contra o regime iraniano, comentou sobre as circunstâncias da realização do filme, que ganhou este títudo a partir de uma frase da própria Fatma.
Eis a entrevista.
Obrigada por ter-nos permitido conhecer Fatma Hassona através do seu filme. É alguém que imagino que você também não irá esquecer facilmente. Como foi seu sentimento quando soube que ela tinha sido morta pouco antes da première do filme em Cannes?
Começarei lembrando qual foi a sensação antes disso, ao saber que o filme havia sido selecionado. Senti tamanha alegria na época, aquela sensação: “Conseguimos! Superamos todos os obstáculos, todas as limitações”. Porque ela não podia sair de Gaza, eu não podia entrar. Conseguimos nos falar por um ano. Conseguimos fazer um filme que foi selecionado. Muito poucos documentários são selecionados por Cannes. Era uma notícia maravilhosa. Foi tão fantástico poder compartilhar isto com ela, você vê isso no filme. E isso também mudou o filme.
De que modo?
O final que eu havia planejado era muito diferente. O final era aquela longa sequência de travelling. Quando, em 17 de abril, deram-me a notícia de que ela tinha sido morta, não sei como descrever, foi tamanho choque! Eu entrei em negação. Tentei telefonar-lhe freneticamente, pensei que era algum equívoco, que não podia ser verdade. Havíamos conversado um dia antes, aliás.
Sim, inclusive vocês falavam da possível viagem dela a Cannes.
Sim. E, a princípio, eu havia decidido não fazer nenhuma mudança no filme. Pensei em mantê-lo como era quando ela ainda estava viva. Então, passaram-se semanas e comecei a pensar que deveria compartilhar aqueles últimos momentos de conversa com ela. Acrescentei mais dois minutos, porque achei importante incluir a reação dela à notícia sobre a seleção do filme em Cannes. Então, não é uma coisa longínqua. Toda a vez que assisto ao filme, ela está viva de novo, ela meio que volta à vida, de alguma forma.
É verdade. Quando assisti ao filme, sabia que ela tinha sido morta. Mas ela está tão viva ali, sempre mantendo aquele sorriso, mesmo compartilhando tantas tragédias.
O sorriso dela tem muitos significados. É um sorriso de resistência, às vezes alegre, às vezes triste, às vezes ausente, cansado, mais melancólico. Ele muda suas cores e tons, mas é sempre um sorriso muito brilhante. É impressionante.
Nas suas conversas, você é bem mais realista do que ela, que parecia ter sempre muita esperança de que as coisas melhorassem em Gaza um dia. Ela mantinha seu espírito apesar de estar numa situação tão difícil.
Eles têm que manter essa esperança, sabe? Senão, não sobreviveriam. Isto é que os mantêm.
E é ótimo que a tecnologia permita que se compartilhem testemunhos como este, porque você não pôde entrar em Gaza mas conseguiu conversar com ela por meses.
Sabe, vivemos num mundo em que estamos constantemente sob vigilância. Somos espionados, eles conferem nossos conteúdos, eles nos despejam as mensagens que querem. Então, você pode usar isso ao reverso para resistir. Você deve encontrar um meio de dizer aquilo que é necessário dizer.
É mesmo importante não deixar o tema de Gaza desaparecer. Até porque houve um cessar-fogo que não está sendo respeitado.
Sim, por isso é importante que este filme exista e que seja exibido ao redor do mundo. Porque, como você disse, o cessar-fogo não é realmente um cessar-fogo, o acordo de paz não é realmente um acordo de paz. Como você pode fazer um acordo de paz se uma das partes não está presente? Se os palestinos não estão lá, que tipo de acordo de paz é esse então? Também é por isso que Israel continua a violar o cessar-fogo, constantemente, desde o primeiro dia. O que fizeram foi que, poucas horas antes que o cessar-fogo entrasse em vigor, eles bombardearam de novo o edifício em que Fatma estava morando, então ele desabou. O prédio ainda estava de pé, mas desabou. Não vejo nisso mais do que a vontade de eliminação, de genocídio. É a prova do genocídio. Por que outro motivo você faria isso?
Como Fatma era uma fotojornalista muito conhecida, você acha que o bombardeio de seu prédio pode ter sido proposital?
O bombardeio teve sim um alvo preciso. Convido você a procurar uma investigação que está sendo desenvolvida pela Forensic Architecture, que é uma ONG que investiga execuções extrajudiciais, como as de jornalistas. Eles divulgaram um relatório sobre a morte dela e a conclusão foi clara: foi um ataque com alvo predeterminado e não foi causado por uma bomba. Um drone sobrevoou o prédio onde ela morava e jogou dois mísseis, que foram programados para atravessar os andares de cima e explodirem no segundo andar, onde Fatma morava. É um caso idêntico ao de muitos outros jornalistas palestinos e também libaneses. No caso dela, especificamente por conta de suas fotografias. Porque ela estava documentando o genocídio e passando para a mídia. Numa entrevista à Al Jazeera que encontrei depois de sua morte, ela estava ali, mostrando sua câmera, falando de sua determinação em denunciar o que acontecia. Eles não queriam que isso continuasse.
Sim, queriam detê-la. Mas não puderam impedir o seu filme.
A beleza e a tristeza disso é que o filme estava pronto e eu estava tão feliz de talvez tê-la comigo, de poder apresentar o filme…
Teria sido mesmo extraordinário se ela pudesse ter ido a Cannes. Mas você mesma tem sua própria experiência pessoal com ditaduras.
Sim, pude sentir mais afinidade com ela por conta da minha própria experiência no Irã, de onde eu tive que sair. Por isso, eu tive mais abertura para ouvir a história dela do que uma pessoa com uma formação diferente poderia ter tido.
E você acha que as coisas têm melhorado recentemente no Irã?
Em alguns níveis, houve mudanças. O movimento das mulheres, que começou em 2022, foi imenso. Há cada vez mais mulheres sem hijabs nas ruas. Mas quero frisar que o movimento não é apenas sobre isso, é muito mais amplo. As pessoas estão exigindo liberdade de muitas outras maneiras. Isto ainda está em processo. Você não lê muitas notícias sobre isso agora, porque se noticia muito sobre a Palestina, o genocídio, então não se fala muito sobre o Irã. Num certo sentido, as pessoas ali ainda estão resistindo. Por outro lado, o regime continua reprimindo muito. Há execuções, presos políticos sendo mortos, mulheres ativistas sendo condenadas à morte, que podem ser mortas a qualquer momento, como Sharifeh Mohammadi, Pakhshan Azizi e Varisheh Moradi, sem qualquer razão para isso. São mulheres que militam para a melhoria da sociedade, em prol das crianças, da mudança climática. Mas a pior parte é que, desde que Israel atacou o Irã, em junho, as coisas pioraram, porque o regime, diante do ataque inimigo, endurece como ditadura. Então, eu diria que as coisas estão melhorando, porque as pessoas estão lutando e resistindo mas, por outro lado, o regime está reprimindo e algo tem que sair desse impasse. Veremos.
Você continua não podendo ir ao Irã, visitar sua família.
Se eu for, provavelmente serei presa de novo. Mas o grande desafio no Irã é a água, que está acabando. Este é um grande desafio que o regime não está conseguindo administrar, causando grande insatisfação. E a situação econômica também é muito ruim.
Então, as pessoas podem voltar às ruas a qualquer momento.
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