01 Dezembro 2025
Organizações comunitárias relatam queda expressiva nas denúncias de violência doméstica desde o início do governo de Donald Trump. Vítimas evitam polícia, hospitais e tribunais.
A reportagem é de Luciana Rosa, publicada por DW, 30-11-2025.
Com o endurecimento das operações migratórias nos Estados Unidos, brasileiras vítimas de violência doméstica passaram a temer não apenas o agressor, mas também o próprio ato de pedir ajuda. A ameaça de serem presas ou deportadas transformou a denúncia em um risco de passarem de vítimas a acusadas, e muitas simplesmente se calam.
Essa nova onda de medo não cria a violência, mas aprofunda ciclos antigos: muitos dos abusos começaram bem antes da atual política migratória. Agora, porém, o isolamento é maior, o silêncio é mais espesso e o caminho até os próprios direitos se tornou ainda mais distante.
"Durante o namoro, ele é aquele príncipe encantado. No dia seguinte, o casamento da menina vira um inferno. Eu descobri nesse percurso que eu fui só mais um número entre tantas outras mulheres que passam por situações até muito piores que a minha", conta Roberta Castello Novo, 42 anos, hoje morando em Charlotte, Carolina do Norte, com três de seus quatro filhos.
Ela conheceu o americano Michael por um aplicativo enquanto ainda vivia em São Paulo. Em março de 2024, mudou-se com as crianças para os Estados Unidos, em um início promissor que durou apenas três meses. Roberta conta que a partir daí o marido passou a controlar tudo: exigia quase todo o dinheiro que ela ganhava com faxinas, cancelou o cartão de crédito, monitorava suas compras e restringia até a comida dos filhos.
Durante uma viagem à Flórida, o primeiro grande conflito veio à tona em público, no aeroporto. Pouco depois, Michael decidiu mudar a família para Utah. Lá, o ambiente piorou: humilhações diárias, isolamento financeiro, chaves do carro escondidas e uma casa improvisada em um porão úmido. Os filhos passaram a demonstrar medo. "Quando dava quatro e meia, cinco horas, eles ficavam na janela olhando se o carro dele chegava. Quando viam, se trancavam no quarto para não serem ofendidos", conta Roberta, emocionada.
A decisão de procurar terapia veio quando ela já se sentia deprimida e descrente do que vivia. A psicóloga Daiane ouviu seus relatos e a alertou sobre o risco do aumento da violência, não somente contra ela, mas também contra os filhos. A partir daí, Roberta começou a registrar em vídeo as agressões e xingamentos.
Sem rede de apoio no país, ela contou com a ajuda de Luciana Hall, voluntária da organização HOPE Institute, que ajuda vítimas de violência doméstica em vários estados. Na noite de 31 de dezembro de 2024, sob forte neve, Roberta decidiu fugir com os filhos. A HOPE providenciou um alojamento emergencial e ajuda com comida. Dias depois, no iPad da família, ela descobriu que o ex-marido já buscava novas brasileiras em aplicativos de relacionamento.
Roberta ainda enfrentou dívidas deixadas no apartamento da Carolina do Norte, problemas na escola das crianças e quatro audiências até conseguir a ordem final de proteção. Recomeçou praticamente do zero, mas encontrou apoio de brasileiras e voluntárias da HOPE, que ajudaram com itens básicos para mobiliar seu novo apartamento. "Elas traziam um cobertor, um copo, um colchão inflável. Assim a vida foi tomando forma", diz.
Hoje, Roberta tem sua própria empresa de limpeza doméstica e celebra a melhora emocional dos filhos, confirmada pela escola. Ela segue em terapia semanal e transformou a própria história em instrumento de apoio: virou voluntária da HOPE e passou a orientar outras mulheres sobre os sinais de abuso.
"Eu fui só mais um número", ela repete. "Mas agora posso ajudar outras mulheres a não passarem pelo que eu passei."
"Estou vivendo o pior momento da minha vida"
Ana*, que pediu anonimato, vive há anos nos Estados Unidos e carrega uma história marcada por violência, medo e desamparo. "Sofri violência durante anos aqui nesse país e, agora que me separei, continuo sofrendo", conta. O agressor, pai de sua filha de seis anos, foi diagnosticado com esquizofrenia, bipolaridade e atraso mental.
"Ele já foi preso por violência doméstica aqui e é procurado no Brasil", diz Ana, que afirma ter buscado ajuda em diversas instituições, como o Women in Distress e o Hope Justice Foundation. Mesmo assim, não encontrou proteção efetiva.
"Vou ter uma audiência de mediação em que provavelmente serei obrigada a deixar minha filha nas mãos desse louco", desabafa. Ela conta que o ex-companheiro "quase bateu no filho de uma amiga no parque" e que ele já tentou enforcá-la "várias vezes".
Ana relata que só descobriu recentemente que ele era procurado no Brasil. "Me fizeram vir para cá grávida de sete meses, prometendo que, se eu quisesse voltar, poderia. Mas, quando minha filha nasceu, me disseram: ‘Ela nasceu aqui, é americana. Se quiser voltar, volte sozinha'. Fiquei três anos longe dos meus outros filhos", conta.
Com ajuda de uma conhecida, ela finalmente conseguiu se separar, mas a violência continuou. "Mesmo com uma ordem judicial dizendo que minha filha não pode sair do condado de Broward, ele a levou para St. Augustine", afirma. Agora, paga US$4 mil a uma advogada. "Minha advogada não me responde. Estou desesperada. Só tenho Deus. Estou literalmente à espera de um milagre", diz.
Transformação foi imediata
"Logo na primeira semana, na nossa primeira noite juntos em casa, quando a gente passou a morar junto, ele já gritou comigo", lembra Mariana Krasch, brasileira que vive nos Estados Unidos há cerca de nove anos e hoje mora em Bountiful, Utah. Ela chegou ao país em 2015.
Em janeiro de 2020, conheceu um americano de origem mexicana pelo Facebook Dating. Ele se dizia um pai solteiro, mórmon, dedicado à família. Em abril daquele ano, apenas quatro meses depois, já estavam casados, no meio da pandemia. A transformação foi imediata.
Mariana descreve um ambiente de controle extremo e ameaças constantes. "Ele não chegou a me bater, mas ele ameaçou", conta, referindo-se ao episódio que ela considera o ponto de ruptura: o dia em que ele trancou sua filha de três anos sozinha em um quarto escuro. A menina nunca havia dormido separada dos irmãos. "Eu ouvi meu filho chorando e fui procurar. Subi as escadas e o filho dele estava do lado de fora do quarto segurando a maçaneta, rindo. Ele disse que minha filha tinha que ‘aprender' a ficar trancada sozinha no quarto. Foi uma cena terrível."
O casamento durou apenas quatro meses. Quando saiu com os filhos, Mariana ficou 15 dias sem ter onde morar. Antes de pegar suas coisas, foi à delegacia pedir proteção. Ele ameaçava acusá-la de roubo. "Mesmo não tendo agressão física, só ameaça, eles me deram bola. Eu dei muita sorte porque a delegada era mulher. Aqui faz muita falta lei específica para mulher, principalmente em casos de pensão e guarda."
Hoje, trabalha há três anos em uma fábrica de munição e reconstruiu a vida ao lado do marido colombiano, com quem está casada há cinco anos. Mas ainda enfrenta desafios: seu filho mais velho, agora adulto, desenvolveu psicose e precisa de internação. Ela pensa em aplicar para a cidadania em 2027 e, ao mesmo tempo, cogita voltar ao Brasil por causa da situação econômica e política nos EUA.
Mariana diz que só conseguiu sair do ciclo de violência porque pediu ajuda. "A escola dos filhos é um ótimo ponto de partida. E a mulher não pode cair na ameaça de que vai ser deportada ou vai perder a guarda. Denunciar é essencial. E existe ajuda gratuita", afirma.
Política de deportação tem deixado mulheres com medo
Mas e quando a ameaça não está apenas dentro de casa e o ato de denunciar o agressor pode acarretar a deportação ou até a detenção da própria vítima? Esse medo, que já existia entre imigrantes indocumentadas, hoje se amplificou a ponto de reconfigurar o comportamento de mulheres brasileiras em todo o país.
Em comunidades brasileiras de estados como Flórida, Carolina do Norte, Utah, Pensilvânia e Nova Jersey, especialistas relatam um fenômeno que já tem nome entre as organizações de apoio: o novo ciclo de isolamento.
Se, na pandemia, o confinamento provocado pelo vírus aumentou a violência doméstica, agora o gatilho é a sensação de perseguição migratória. Muitas mulheres evitam hospitais, tribunais, escolas e até abrigos, mesmo em risco grave, com medo de serem detidas ou separadas dos filhos. E isso está provocando uma onda silenciosa de subnotificação.
"A preocupação maior é sempre o medo de que as pessoas não denunciem os agressores por medo de serem deportadas", afirma Rodrigo Godoi, diretor da ONG Mantena Global Care, em Newark. Ele diz que já observou esse padrão em períodos de "pressão social intensa", como a pandemia de covid-19. "Existe uma correlação direta entre ambientes de confinamento ou medo coletivo e o aumento da violência doméstica", afirma.
Os consulados brasileiros registraram 397 casos de violência doméstica contra brasileiras nos Estados Unidos em 2024. Os números de 2025 ainda estão sendo consolidados, mas entidades e advogadas que trabalham na linha de frente dizem que a procura por ajuda caiu justamente quando a violência aumentou.
A advogada de imigração Fernanda Bueno confirma essa retração. Segundo ela, o efeito é devastador nos casos que exigem boletim de ocorrência, como o visto U, para vítimas de crimes graves nos Estados Unidos. "As clientes ligam para fazer a consulta mas, quando explicamos que precisam registrar um boletim, a maioria desiste. Elas dizem: ‘Até o visto sair, ele já me matou'", relata.
Para Fernanda, houve uma mudança qualitativa no medo. "Não é só o medo do agressor. É medo de que a polícia chame a imigração, de que o parceiro ligue para o ICE, de perder a guarda das crianças, de ser deportada e deixar os filhos para trás", diz. "Esse medo sempre existiu, mas agora está multiplicado."
Por isso, ela explica, o VAWA – lei que permite a regularização migratória de vítimas de "crueldade no casamento" com cidadãos ou residentes permanentes – tornou-se a principal porta de saída. A lei não exige boletim de ocorrência e é totalmente sigilosa, permitindo que a mulher aplique mesmo ainda morando com o agressor. "A maioria dos nossos casos de VAWA envolve abuso psicológico, controle extremo, destruição da autoestima, ciúme obsessivo. Nem sempre tem violência física", diz.
Língua também é barreira
Esse ambiente de medo também chegou às organizações brasileiras que atuam na linha de frente. O HOPE Institute, fundado em abril de 2024 pela brasileira Luciana Hall, relata um aumento repentino de denúncias, mas também um silêncio crescente. "Sete em cada dez vistos de cônjuge ou de noiva que chegam ao escritório acabam envolvendo violência doméstica", diz Luciana Hall.
Valéria Emele, que trabalha como voluntária na HOPE, destaca outra barreira: a língua. "Quando uma mulher brasileira chega em uma organização americana ou latina e colocam alguém para atendê-la em espanhol ou inglês, o risco de retraumatização aumenta. A língua materna muda tudo. Ela sente que pode confiar."
A HOPE atende hoje cerca de quatro casos em acompanhamento intenso, mas a demanda é muito maior. Os atendimentos chegam por formulários online e recomendação boca a boca. A meta da organização para 2026 é abrir um espaço físico com abrigo, apoio jurídico e atividades de capacitação – um projeto que depende de financiamento.
Na Flórida, Rose Newell, fundadora do Projeto Vida, vive o mesmo fenômeno. Com mais de 20 anos de experiência atendendo famílias brasileiras, ela diz que o número de mulheres que a procura despencou desde 2024. "Atendi entre 150 e 200 mulheres entre 2022 e 2023. Agora, em 2024, foram cerca de 40. Elas estão apavoradas", afirma. "Eu imploro: ‘não desiste, você está protegida pela lei'. Mas não adianta. O medo fala mais alto."
Segundo Rose, até escolas públicas têm mostrado resistência em reportar casos suspeitos, e mudanças políticas recentes criaram um clima de incerteza. "O processo está parado por politicagem", diz, referindo-se aos trâmites envolvendo políticas de proteção como o VAWA. Ela também aponta a dificuldade dos consulados, que, segundo ela, têm equipes dedicadas, mas "ficam de mãos atadas por limitações diplomáticas".
Apesar do clima de medo, iniciativas comunitárias continuam surgindo. Em Nova York, em 22 de novembro, o coletivo Entre Fronteiras lançou a campanha "Justiça e Dignidade para Brasileiras no Exterior", reunindo psicólogas, advogadas, organizações de apoio a imigrantes e grupos de mulheres negras na Biblioteca Brasileira. A proposta é fortalecer redes de proteção, ampliar o acesso à informação e combater o silêncio que isola brasileiras vítimas de abuso.
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