03 Novembro 2025
"Só haverá paz quando o Estado for presença de direitos, não de morte. Só haverá futuro quando a favela deixar de ser território inimigo. Só haverá Rio de Janeiro de novo quando a cidade se lembrar de que é feita de gente, e gente não é descartável", escreve Frei Betto, escritor e autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
Eis o artigo.
Houve um tempo em que o Rio de Janeiro era qualificado de “Cidade Maravilhosa”. Hoje, o apelido soa como ironia amarga diante das chamas que consumiram quase cem ônibus, das ruas sitiadas e do medo que paralisou milhões de pessoas. O Comando Vermelho disseminou o terror, e o Estado respondeu com o mesmo idioma da barbárie: balas, cerco e corpos espalhados. No fim, 121 vidas se perderam, entre elas, quatro policiais mortos. Nenhum dos mortos consta na denúncia do Ministério Público do Rio que motivou a operação.
Até a noite de sexta, 109 corpos haviam sido identificados. A maioria pertencia a foragidos e integrantes do CV vindos de outros estados: 78 tinham passagens por tráfico, roubo e assassinato; 43 tinham mandados de prisão; 39 eram de outros estados. Trinta mortos identificados não tinham nem sequer passagem pela polícia. Todos, culpados ou não, foram tragados pelo mesmo vendaval de violência que reduz a cidade a zona de guerra. A Gaza dos trópicos!
Essas mortes não começaram no dia da chacina. Começaram há décadas, quando o abandono foi oficializado como política pública. Começaram quando se privatizou o direito à paz e se terceirizou a segurança às facções. Começaram quando o Estado trocou o cuidado pela guerra, a escola pela prisão, o diálogo pelo fuzil.
O narcotráfico não brota do nada. Nasce onde o Estado nunca plantou esperança. Cresce na ausência de políticas públicas, floresce entre muros rachados e becos sem saneamento, alimenta-se da desigualdade e da humilhação. As facções são o espelho deformado do capitalismo brasileiro: hierárquico, violento, sedento de lucro e controle. O traficante é o empresário da ruína, e o consumidor dos bairros ricos seu investidor invisível.
Não há o que celebrar. Uma operação que termina com 121 mortos não é vitória, é derrota civilizatória. O Estado não pode combater o crime reproduzindo sua lógica. A cada incursão policial em que a favela é tratada como campo inimigo, a distância entre o poder público e o povo aumenta. Não se constrói paz sobre o chão ensanguentado da periferia.
O narcotráfico é, sim, um flagelo. E cresce onde o Estado nunca chegou com segurança aos moradores e políticas públicas. As 1.900 favelas cariocas sofrem a insuficiência de escolas, saneamento, transporte, cultura, atividades esportivas, emprego e perspectiva de vida. As facções ocupam o vazio deixado por décadas de omissão governamental. São o espelho perverso de um sistema que exclui, humilha e depois criminaliza os excluídos. O traficante, muitas vezes, é o produto final de uma política que trocou direitos por fuzis e políticas sociais por operações midiáticas.
A violência virou rotina, e a brutalidade se institucionalizou. O governo fala em “ação de segurança”, mas que segurança há em metralhar comunidades inteiras? A segurança pública, no Rio, virou gestão de cadáveres. A cada chacina, repete-se o mesmo roteiro: promessas de “investigação rigorosa”, notas frias de gabinete e o silêncio que cobre a cidade quando as câmeras da mídia vão embora.
Estudiosos do tema são unânimes em admitir que não se destrói facção com fuzil, e sim com políticas públicas. A guerra às drogas fracassa porque não é um combate às drogas, é guerra aos pobres. A cada morte, a favela se torna ainda mais vulnerável, o tráfico se reorganiza, e o ciclo recomeça. O verdadeiro inimigo não é o jovem armado, mas a ausência de Estado que o empurrou para isso.
O Rio, sitiado e queimado, assiste ao colapso de suas maiores riquezas, como o turismo, a beleza da paisagem, o bom humor do carioca. Nenhuma cidade sobrevive quando a morte se torna rotina e a injustiça persiste. Beleza somente não põe mesa, e o cartão-postal desbota diante da dor.
Mas há quem resista. Mães que enterram filhos e ainda erguem faixas nas praças. Cidadãos que filmam, denunciam, documentam. Gente que, entre o medo e o luto, ainda acredita na vida. São esses os guardiões do Rio que resta, o Rio que não se rende.
Os 121 mortos não são apenas números. São o espelho de um país que perdeu o rumo, confunde justiça com vingança, e segurança com extermínio. O Brasil precisa escolher: continuar contabilizando corpos tombados pela violência urbana ou finalmente governar para a vida de todos.
Só haverá paz quando o Estado for presença de direitos, não de morte. Só haverá futuro quando a favela deixar de ser território inimigo. Só haverá Rio de Janeiro de novo quando a cidade se lembrar de que é feita de gente, e gente não é descartável.
Por quem choram as mães dos jovens assassinados? Choram ao ver sonhos desfeitos pela letalidade policial e pelo equívoco de se buscar na criminalidade a escalada para uma vida melhor. Choram sobretudo por um país que perdeu o senso de justiça.
O axioma “bandido bom é bandido morto” significa barbárie travestida de justiça. Ele nega o Estado de Direito, despreza a dignidade humana e substitui a lei e os direitos por vingança. Ao defender o assassinato em vez de reabilitação e combate às causas do tráfico de drogas e de armas, esse pensamento fortalece a violência que diz combater e fragiliza a própria sociedade civilizada.
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