30 Outubro 2025
Mais de 120 mortos, um número limiar entre o sofrimento, a tragédia e o esvaziamento humano da Política. No Complexo do Alemão e na Penha, o horror expôs a vitória da burocracia sobre a ética. É horror porque o sistema – governos, meios de comunicação, testemunhas – passam a transformar corpos alinhados nas ruas em dados, em estatística.
O artigo é de José Geraldo de Sousa Junior, professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) publicado por Jornal Brasil Popular/DF, 29-10-2025.
Eis o artigo.
Hannah Arendt chamou isso de “o colapso da experiência moral”. O mesmo mecanismo que permitiu Auschwitz, Hiroshima, as chacinas em favelas, as guerras “cirúrgicas”. Dizer “mais de 120 mortos no Complexo do Alemão” é diferente de dizer “João, 17 anos, atingido quando voltava da escola”.
O número abstrai, dissolve o rosto, produz distância. Em Diderot, no texto notável – Carta sobre os Cegos para Uso dos que Vêem – o significado pedagógico do experimento moral referido à incomunicabilidade de sentimentos entre seres humanos distantes, que os transforma em seres divididos, indiferentes, cegos, leva a que fiquem incapacitados de perceber razões e sofrimentos recíprocos. O seu propósito é avaliar o quanto, em perspectiva temporal e espacial, o modo particular de conceber o mundo, a vida, a perspectiva civilizatória, refuta o caráter universal da moralidade. Faz sobressair circunstâncias e situações que acentuam as diferenças entre nós e eles. E, assim, enfraquecer os vínculos de responsabilidade no tocante aos deveres recíprocos entre os seres humanos, os quais implicam, como já sustentava Aristóteles, a superioridade das leis gerais sobre as leis particulares, dos deveres para com o gênero humano sobre os deveres para com uma comunidade específica, da distância sobre a proximidade, condições das quais deriva a noção jurídica de crimes contra a humanidade (Disponível aqui).
Que se trata de horror, dizem os organismos internacionais chocados. Em reação, as Nações Unidas manifestando-se pelo Conselho de Direitos Humanos afirmou estar “horrorizada” com a ação policial em curso e pediu “investigações rápidas e eficazes”.
A Anistia Internacional Brasil, embora o seu comunicado específico seja de contexto anterior, adverte que “chacinas não podem tornar-se política de segurança pública” e critica a alta letalidade e impunidade das operações policiais em favelas como o Complexo do Alemão.
Essas obras e passagens se tornam espelhos simbólicos de acontecimentos como a ação no Complexo do Alemão e na Penha, onde o Estado aparece como força destrutiva e não garantidora da vida.
Walter Benjamin dizia que a modernidade transformou o horror em “paisagem de ruínas sem testemunhas”. Zygmunt Bauman, em Modernidade e Holocausto, observou que a modernidade transformou o assassinato em processo técnico. Quando o ato violento é diluído em etapas — relatório, ordem, cumprimento, número — ninguém se sente responsável. O mesmo ocorre quando as mortes em favelas são relatadas como “operações bem-sucedidas” ou “baixas em confronto”.
Mas a tragédia se amplifica quando deixa de horrorizar, quando o horror se torna cotidiano. É o ponto de saturação da sensibilidade, o que Susan Sontag chamou de “fadiga da compaixão” (Diante da dor dos outros). Ver tudo é uma forma de não ver nada.
É importante atualizar os pontos específicos que aparecem nas manifestações dos organismos internacionais e timidamente nos espaços de comunicação brasileiros. Os organismos pedem que se instaurem investigações externas, independentes e eficazes e que as autoridades apurem cada morte, identifiquem responsáveis e garantam que procedimentos legais e direitos humanos sejam seguidos.
A Anistia Internacional reclama transparência e controle, para apurar as circunstâncias das mortes, e que o sistema de “controle externo” das polícias como o Ministério Público, Defensoria Pública, Ouvidorias, Corregedorias, atuem efetivamente.
Mas, sobretudo, advertem para o padrão de letalidade expondo a violência policial em favela, que não podem ser vistas como eventos isolados mas uma condição estrutural que configura as operações como “guerra”, com graves violações de direitos humanos.
Assim que sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Cosme Rosa Genoveva e outros v. Brasil (relacionado ao Complexo do Alemão) se constitui um marco sobre a necessidade de políticas sérias de redução de letalidade policial no Rio de Janeiro.
Também a IACHR (Inter-American Commission on Human Rights – OEA), já se manifestou condenando a violência policial, convocando à ação urgente para garantir os direitos humanos no Brasil, ao mesmo tempo em que recomenda que o Estado brasileiro revise suas políticas de segurança pública para que se baseiem em direitos humanos, com transparência, controle externo e responsabilização.
É possível e efetivo um outro caminho que não seja a chacina? Manifestando-se sobre a operação o Ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, localizou a responsabilidade sobre a operação, tanto no plano político quanto no da segurança, aludindo a relevância da atuação apoiada mais no planejamento e na inteligência que na confrontação repressora.
Ele certamente deve ter em mente a recente Operação Carbono Oculto, assim como as correlatas Operação Quasar e Operação Tank, deflagradas pela Polícia Federal, em conjunto com a Receita Federal do Brasil, o Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) e outros órgãos de fiscalização.
A investigação apontou que a facção Primeiro Comando da Capital (PCC) infiltrou-se em toda a cadeia produtiva de combustíveis (importação, produção, distribuição, comercialização) e, paralelamente, implementou esquema de lavagem de dinheiro via fintechs, bancos digitais, fundos de investimento localizados na Avenida Brigadeiro Faria Lima (São Paulo). Na Faria Lima especificamente foram identificados 42 alvos entre fundos de investimento, corretoras, empresas de fintech, localizadas em cinco endereços da avenida.
A operação mobilizou cerca de 1.400 agentes para cumprimento simultâneo de mais de 200 mandados de busca e apreensão e investigação de cerca de 350 alvos em 10 estados. O volume financeiro investigado é da ordem de dezenas a centenas de bilhões de reais. O esquema apontado movimentou cerca de R$ 140 bilhões segundo alguns relatos. As condutas investigadas incluem delitos como lavagem de dinheiro, fraude fiscal, adulteração de combustíveis, crimes contra a ordem econômica, estelionato, crimes ambientais. Um dos efeitos urgentes foi o bloqueio de bens, veículos, imóveis e a indisponibilidade de valores junto aos suspeitos.
Entretanto, não há relatório público que indique uso de força letal ou confrontos armados com vítimas fatais como parte principal da operação. Foi uma ação predominantemente de investigação financeira, mandados judiciais e apreensões. Logo, a “incidência letal” da operação é baixa ou nula no sentido de mortes ou feridos em confronto.
E todavia, o grau de dissuasão parece elevado, por vários fatores. A própria escala da operação (1.400 agentes, 350 alvos) sinaliza mensagem clara de que o crime organizado de alto nível está sendo atacado. O fato de que o epicentro da operação foi a Faria Lima — tradicional endereço do mercado financeiro brasileiro — reforça o símbolo de que “ninguém está acima da lei”, inclusive quando há atores econômicos sofisticados. Em síntese, uma operação ampla, de alto impacto simbólico e prático, representando um avanço significativo no combate à infiltração do crime organizado na economia formal. Uma operação de inteligência e repressão financeira, não de ação militar-policial com enfrentamento armado. Em termos dissuasivos, com efeito altamente relevante, sobretudo pela escala, visibilidade e simbolismo, quanto mais decorram o seu seguimento institucional – prisões, condenações, monitoramento – para consolidar o resultado no futuro imediato.
Ao contrário, o horror das chacinas como as do Complexo do Alemão e da Penha, se outros intentos não se ocultem na ordem de execução, mostram a passagem da política à necropolítica, onde o Estado abandona o dever de proteger e assume o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer.
É a falência da ação política, porque a política verdadeira — como queria Arendt — é o espaço do encontro e da palavra, não o do silêncio e do tiro. Quando o Estado só sabe agir pela força, cessa a política e começa a barbárie.
Em Eichmann em Jerusalém (1963), Hannah Arendt mostra que o horror pode ser banal, resultado da ausência de pensamento político e moral. “O maior mal é o mal cometido por ninguém, por homens que se recusam a ser pessoas”, levando à sua “banalização”.
Em massacres urbanos, camponeses, indígenas, a “banalidade do mal” é visível na indiferença social e institucional diante da morte de dezenas de pessoas. A violência se torna rotina; a política, incapaz de responder, cede lugar à administração da barbárie. A justiça começa quando o número volta a ser nome e os violadores responsabilizados.
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