24 Outubro 2025
"Em Gaza, como na Ucrânia, é preciso ousar a paz. O momento é muito grave e se corre o risco de eternizar a guerra", afirma Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, mediador de paz em Moçambique, Guatemala e Costa do Marfim, e ex-ministro da Cooperação Internacional.
A entrevista é de Giacomo Galeazzi, publicada por La Stampa, 23-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
No domingo, no Auditório Parco della Musica, em Roma, o presidente italiano Sergio Mattarella abrirá o encontro internacional "Ousar a Paz", que se encerrará na terça-feira, no Coliseu, com uma oração com Leão XIV e outros líderes mundiais das religiões: no centro do fórum estarão 10mil participantes e 400 delegados, incluindo o rabino-chefe da Europa, Pinchas Goldschmidt, e o grande imã de Al-Azhar, Ahmad Al-Tayyeb que assinou, com Francisco, o histórico Documento sobre a Fraternidade Humana pela Paz Mundial e a convivência comum. O presidente francês, Emmanuel Macron, também é esperado no encontro.
Eis a entrevista.
Gaza e Ucrânia: onde a situação é mais complicada?
Em Gaza, a situação é conturbada e extremamente complicada. Na Ucrânia, é grave devido ao adiamento da reunião Trump-Putin, e o drama do impasse. Ali, o diálogo deve ser sempre mantido, mesmo sem pré-condições, por um motivo humanitário e um militar. A Ucrânia está sofrendo demais, o país está destruído, tem dez milhões de refugiados no exterior. Enquanto isso, a Rússia não consegue vencer.
Com quais possíveis consequências?
Ambos os motivos, humanitário e militar, determinam que é preciso chegar a um ponto de acordo. No Alasca, as coisas não saíram como esperado. Ninguém sabe o que Vladimir Putin realmente pensa, mas não há alternativa senão o diálogo sem pré-condições para pôr fim à carnificina e salvar a cara do próprio Putin, mas também de Trump e Zelensky. Como dizia o Cardeal Achille Silvestrini durante a Guerra Fria, a razão diplomática e militar deve se conciliar com uma saída decorosa para todos os envolvidos. Putin não consegue levar a melhor no campo; quanto mais se luta, mais a situação se complica.
E o que poderia acontecer agora?
É melhor brigar em volta de uma mesa do que num campo de batalha, como ensina Jean Monnet, um dos pais fundadores da União Europeia. Além disso, quanto mais o tempo passa e a guerra prossegue, mais o complexo militar-industrial decide. Dwight Eisenhower, que como general venceu a Segunda Guerra Mundial, alertou para esse perigo em seu último discurso como presidente dos EUA. A expansão do complexo militar-industrial está assumindo muito espaço. E até o rearmamento está se tornando uma forma de fortalecer uma economia em crise.
No entanto, a UE está se rearmando.
Rearmamento é uma palavra arriscada. Se for para dissuasão, é necessária uma diplomacia que funcione, e hoje não é o caso. Um impasse dramático está se amplificando. É por isso que o encontro agora em Roma é importante, enquanto nos encontramos em uma situação em que a guerra está sendo reavaliada a ponto de nem sequer imaginarmos a paz. De domingo a terça-feira, acontecerá justamente um encontro que coloca no centro o diálogo, subvalorizado em todos os níveis. Francisco dizia: ‘O mundo sufoca sem diálogo’. Agora é realmente necessário ousar a paz e superar a névoa que a obscureceu.
O que está obscurecendo a paz hoje?
A desvalorização da diplomacia como diálogo lento e construtivo que visa um ‘compromisso’ justo. As religiões não podem assistir como espectadoras inertes. E neste período vemos que algumas religiões abençoam a guerra. O ‘espírito de Assis’ começa com João Paulo II em outubro de 1986 e tendia a dissociar as religiões da atração fatal da guerra e torná-las uma força fraca para a paz. Foram desvalorizadas aquela que Giorgio La Pira chamava de ‘tensões unitivas’, desacreditadas nesta que é uma era de força, um tempo de guerra. Elas são a paz, o ecumenismo, o diálogo, a negociação, o desarmamento, a cooperação.
Estamos voltando ao Leste contra o Ocidente?
Durante a Guerra Fria, as referências à cultura da paz certamente não impediram conflitos, mas constituíram um limite, uma alternativa. Da memória do horror vinha o imperativo moral e político de não ultrapassar certos limites, de buscar a paz. A memória da guerra perdeu valor, a esperança de paz enfraqueceu. A afirmação de uma política tão realista que acaba se esvaziando de sua força se difundiu por toda parte. Ousa-se tão pouco que acabamos sendo arrastados pelos acontecimentos.
As religiões têm algum impacto agora?
As religiões têm um histórico de envolvimento na guerra, a ponto de sacralizá-la. Chegaram até a proclamar a guerra em nome de Deus. Uma autêntica e escandalosa blasfêmia. Portanto, os homens de religião devem agora insistir para que se passe da idade da força para o encontro e o diálogo. É um momento mágico para as religiões. Completamos 60 anos desde a declaração conciliar ‘Nostra Aetate’, que iniciou o diálogo com o islamismo, o judaísmo (incluindo o repúdio ao antissemitismo e à acusação de deicídio contra o povo judeu), o budismo, o hinduísmo e outras religiões. Mas, de acadêmico e teológico, o diálogo inter-religioso tornou-se em 1986 uma mensagem poderosa com o espírito de Assis, que é a recepção criativa de ‘Nostra Aetate’. Líderes religiosos reunidos para rezar uns ao lado e não contra os outros, como disse Wojtyla.
Que lição podemos aprender com isso?
A imagem icônica de sermos diferentes, mas juntos, significa paz. Desde então, Santo Egídio tem continuado esse encontro, como em Varsóvia em 1989, quando o Muro tremia no 50º aniversário do início da Guerra Mundial. As religiões certamente não têm o monopólio da paz. A paz não pode ser monopólio de ninguém, porque então não seria paz. Quando mulheres e homens de diferentes religiões se encontram, apesar de sua diversidade, cria-se uma harmonia. É uma história que vem de longe.
A cultura da paz está em crise?
Seria fácil — e é também justo — responder que isso está acontecendo por causa da brutalidade das guerras, das agressões e do terrorismo. Mas também consumimos uma herança moral que nos foi legada pelo século XX e suas terríveis experiências: duas guerras mundiais, o Holocausto, os deslocamentos de populações, o uso da arma atômica. Uma herança encarnada pelas testemunhas do Holocausto, agora desaparecidas. Mas também uma herança narrada por uma geração, os nossos idosos, que sabiam o que era a guerra mundial, porque a viveram. Agora eles não existem mais. E as consequências são evidentes.
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