22 Setembro 2025
O desafio é reconstruir um pacto social de uma justiça econômica e justiça social — sem que uma seja usada para sabotar a outra.
O artigo é de Luís Nassif, publicado por Jornal GGN, 21-09-2025.
Luis Nassif é jornalista, com passagens por diversos meios impressos e digitais ao longo de mais de 50 anos de carreira, pelo qual recebeu diversos reconhecimentos (Prêmio Esso 1987, Prêmio Comunique-se, Destaque Cofecon, entre outros). Diretor e fundador do Jornal GGN.
Eis o artigo.
A ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos não pode ser explicada apenas por variáveis econômicas superficiais, como o aumento da inflação. Em entrevista ao jornalista Luiz Guilherme Gerbelli, do Estadão (“Governo Trump será ‘absolutamente terrível’ para a economia dos EUA, afirma vencedor do Nobel”), o cientista político James Robinson, autor de “Por que as Nações Fracassam”, oferece uma leitura mais profunda: o fenômeno Trump é resultado de uma reação cultural e estrutural à degradação das condições de vida da classe média americana. Este artigo parte dessa análise para explorar o paradoxo da democracia contemporânea, marcada pela concentração de renda, polarização ideológica e manipulação das pautas sociais por um poder econômico invisível — o chamado Partido dos Bilionários.
A falsa objetividade econômica
Durante o período eleitoral, analistas econômicos apressaram-se em atribuir a queda de popularidade de Joe Biden à inflação. Essa leitura, baseada em planilhas e indicadores, ignora o mal-estar social mais profundo que se alastra entre os cidadãos comuns. Robinson aponta que a ascensão de Trump está ligada à figura do “hommus bobus” — o homem comum, desorientado, que reage emocionalmente à perda de status e oportunidades. A crise não é apenas econômica, mas simbólica: é a sensação de que o mundo está mudando rápido demais, e não necessariamente a favor dele.
O ultraliberalismo e o empobrecimento da classe média
A financeirização da economia americana, impulsionada por políticas ultraliberais, aprofundou a concentração de renda e empobreceu a classe média. A promessa de prosperidade foi substituída por empregos precários, insegurança habitacional e endividamento crônico. Esse processo não apenas deteriora as condições materiais de vida, como também mina a confiança nas instituições democráticas. O cidadão comum, sem acesso a oportunidades reais, vê sua frustração crescer — e busca culpados.
As pautas humanistas como bode expiatório
Em vez de direcionar sua indignação à elite financeira que concentra riqueza e poder, parte da população volta-se contra as minorias beneficiadas por políticas compensatórias. Direitos LGBTQIA+, igualdade de gênero, justiça climática — conquistas civilizatórias passam a ser vistas como privilégios indevidos. Essa inversão de causalidade é perigosa: o que deveria ser entendido como reparação histórica é tratado como ameaça à ordem social. A pauta progressista vira alvo, não por seus méritos, mas por sua instrumentalização política.
O Partido dos Bilionários
A ideia de que os Estados Unidos são governados por um único partido — o Partido dos Bilionários — dividido entre Democratas e Republicanos, ajuda a entender a lógica por trás da polarização. Ambos os lados servem aos interesses do capital, mas com estratégias distintas:
- Os Democratas apostam em ONGs, influenciadores e redes sociais para promover pautas progressistas e manter a aparência de inclusão sem questionamentos ao modelo econômico.
- Os Republicanos recorrem à desinformação, à ultra-direita, à NRA e a grupos conservadores para canalizar o ressentimento social.
A eleição de Barack Obama marcou o início da politização das redes sociais. Desde então, ambos os partidos passaram a disputar corações e mentes no ambiente digital, com algoritmos e narrativas cuidadosamente construídas.
As “Primaveras” e a geopolítica da desestabilização
A influência política das redes sociais não se limitou ao território americano. Movimentos como as “Primaveras Árabes” e iniciativas como Viva Rio e Vem Pra Rua no Brasil foram impulsionados por interesses geopolíticos disfarçados de ativismo democrático.
Em um caso, a retórica da ampliação de direitos foi usada como ferramenta de desestabilização de regimes e governos. A democracia, nesse contexto, torna-se um instrumento de poder, não um fim em si mesma.
Em outro, os direitos passaram a ser utilizados como álibi para o investimento político da direita na política do ressentimento.
O paradoxo da democracia contemporânea
Vivemos um paradoxo: enquanto a democracia é celebrada como valor universal, ela é corroída por dentro por interesses econômicos que moldam o debate público.
A vertente “progressista” do Partido dos Bilionários estimula pautas identitárias sem enfrentar as causas estruturais da desigualdade. Já a vertente conservadora manipula o ressentimento popular para atacar essas mesmas pautas. O resultado é uma sociedade polarizada, onde o verdadeiro inimigo — a concentração de renda e poder — permanece intocado.
Por outro lado, os próprios setores progressistas se dividem, responsabilizando a cultura “woke” pelo aumento da direita.
O grau de ignorância institucionalizada é tão grande que, hoje em dia, ministros do Supremo, verdadeiros baluartes da democracia, são os mesmos que investiram no desmonte de pautas sociais, sem a menor consciência sobre seus efeitos na radicalização do país.
Conclusão
A crise da democracia não se resolve com mais polarização, nem com a superficialidade das análises econômicas. É preciso reconectar o debate político às causas reais da degradação social: a financeirização da economia, a precarização do trabalho, a captura das instituições pelo capital. Ao mesmo tempo, é necessário defender os avanços civilizatórios sem cair na armadilha da instrumentalização. O desafio é reconstruir um pacto social com uma justiça econômica e justiça social — sem que uma seja usada para sabotar a outra.
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