22 Agosto 2025
"O prédio só cresce e cresce, e nós continuamos subindo cada vez mais alto: com mais conhecimentos, mais confiança, mais motivação. No entanto, em algum ponto ao longo do caminho — e não apenas por culpa da arrogância — perdemos nossa capacidade fundamental de comunicação. Cada um de nós está preso em seu próprio feed distinto, em sua própria língua distinta, com fatos e conclusões diferentes, que só se tornam cada vez mais sólidas. Quando paramos de olhar para as paredes da torre e nos olhamos nos olhos, no entanto, vemos algo completamente estranho", escreve Etgar Keret, escritor israelense, em artigo publicado por La Reppublica, 21-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quase todos os sábados, minha esposa e eu participamos de uma vigília silenciosa noturna em Tel Aviv, na qual cada participante segura uma fotografia de uma criança de Gaza morta nos recentes ataques das Forças de Defesa de Israel (IDF). São muitas. Ficamos lá por uma hora. Alguns transeuntes param para olhar as fotos e ler os nomes das crianças. Outros lançam insultos e seguem em frente. Curiosamente, ao contrário de muitos protestos antigovernamentais dos quais participo — nos quais me sinto bastante inútil — nessas vigílias sinto que tenho alguma utilidade. Não é muito, mas eu possibilito que uma criança morta encontre o olhar de uma pessoa que nem sabia que aquela criança existia.
Num dos últimos sábados, a vigília foi mais intensa do que o normal. O Hamas tinha acabado de divulgar um vídeo monstruoso no qual se vê o refém israelense Evyatar David, reduzido a um esqueleto, cavando sua própria cova sob as ordens de seus captores. Ao passarem ao nosso lado, algumas pessoas pararam. Um homem de shorts de praia me encarou e perguntou se eu tinha visto o vídeo. "Aquele refém é seu irmão. É sua foto que você deveria estar segurando na mão... a sua!" Uma mulher também parou e nos xingou: "É tudo propaganda do Hamas! Vocês ainda não entenderam? Todas essas crianças são produto da IA, não existem!"
Teria sido fácil para mim argumentar, achar um meio-termo conciliatório para as alegações dessas pessoas. Mas como a vigília é silenciosa, fui obrigado a olhá-las e permanecer em silêncio. Nunca fui muito bom em ficar quieto. De certa forma, sou como um comentário contínuo sobre uma tomada de um cineasta, com uma resposta ou explicação para tudo. No passado, eu tinha a impressão de ser o único a fazer isso, mas agora que as redes sociais estão em todo lugar, parece que o mundo inteiro se tornou como eu. O homem de shorts de praia tentou obter uma resposta verbal minha e, quando falhou, rapidamente se recalibrou e percebeu que podia continuar falando sem ser perturbado. Sua tentativa de fomentar uma discussão se transformou em uma mistura peculiar de monólogo interior e posts de Facebook. Ele falou de perdas, de inimigos, e desse nosso país, do inferno em que se tornou, dos reféns, do fato de ele ser reservista e do sobrinho servir em Gaza.
O que ele disse me levou a crer que tínhamos algo em comum: ambos achamos que o governo é um verdadeiro desastre, ambos perdemos alguém e algo de nós mesmos nos últimos 22 meses. Só que eu estava segurando a foto de uma criança palestina morta por soldados israelenses e, na visão dele, esse é um gesto que não possui uma possível explicação ou significado. Nem sequer tem nome. De repente, a cena pareceu menos uma disputa política e mais uma Torre de Babel moderna, quando Deus fez cada pessoa falar línguas diferentes para impedir as tentativas de construir para o alto até o infinito. Um freio à arrogância humana. É uma história em que todos vivemos em um prédio, tentando alcançar as nuvens. O prédio só cresce e cresce, e nós continuamos subindo cada vez mais alto: com mais conhecimentos, mais confiança, mais motivação. No entanto, em algum ponto ao longo do caminho — e não apenas por culpa da arrogância — perdemos nossa capacidade fundamental de comunicação. Cada um de nós está preso em seu próprio feed distinto, em sua própria língua distinta, com fatos e conclusões diferentes, que só se tornam cada vez mais sólidas. Quando paramos de olhar para as paredes da torre e nos olhamos nos olhos, no entanto, vemos algo completamente estranho.
No final da história bíblica, o povo abandona o plano de construir a torre. Muitas histórias na Bíblia terminam mal, e também a nossa parece caminhar na mesma direção. Isto é, a menos de conseguir — eu, o sujeito de shorts de praia e todos os outros — encontrar uma linguagem comum.
Uma linguagem que tenha um nome para cada coisa, até mesmo para uma pessoa que segura na mão a fotografia de uma criança morta.