A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI

O ciclo de estudos promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU investiga as forças que hoje reescrevem a ordem mundial

Arte: Lauren Palma/IHU

Por: Gabriela Linn Rocha | 20 Agosto 2025

Assim como a gramática define as normas invisíveis de uma língua, também o poder é exercido mundialmente de acordo com um sistema de regras, códigos e estruturas. Porém, a “gramática do poder global” é mais dinâmica, se reordenando constantemente e cada vez mais rápido. O sistema internacional não é configurado através de eventos isolados, mas sim por uma série de atores, discursos e acordos que se inter-relacionam.  

O ciclo de estudos A Gramática do Poder Global, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, analisou três aspectos importantes que têm provocado transformações no mundo contemporâneo: a desocidentalização, que aponta para a perda de centralidade do Ocidente; o tecnoautoritarismo, que revela o uso da tecnologia como instrumento de controle e disputa geopolítica; e o multilateralismo, tensionado por novas alianças e rivalidades do nosso século.

A primeira grande mudança dessa nova gramática é o deslocamento do centro do poder mundial. O Ocidente, principalmente os Estados Unidos e a Europa, que durante séculos ditaram as regras da política, da economia e da cultura globais, veem agora sua influência sendo gradualmente corroída. O pesquisador alemão Fabian Scheidler explica, porém, que não se trata apenas de perda de domínio, e sim de uma civilização inteira que começa a colapsar. Para ele, o Ocidente é o berço e o principal operador da chamada megamáquina”, um sistema que combina capitalismo, militarismo e mitos ideológicos que visa acumular riqueza e poder ilimitados. Depois de séculos de expansão, a megamáquina começa a colidir com os limites do desenvolvimento infinito: a natureza já não comporta os elevados níveis de poluição e exploração de recursos; a desigualdade, a pobreza extrema e o consequente fortalecimento de governos autoritários aumentam rapidamente em diversas sociedades; e o fim da hegemonia ocidental gera uma multipolaridade instável, propensa a conflitos que são intensificados pelas novas tecnologias. Fabian afirma que basta deslocar o olhar da narrativa dominante – dos “vencedores da história” – para ver os altos custos do modelo ocidental. Ainda assim, o estudioso recusa uma perspectiva “apocalíptica” e propõe alternativas baseadas em movimentos sociais, convergência política, economia ecológica e novas formas de coletividade. Segundo ele, a crise pode servir de oportunidade.

Essas mudanças no tabuleiro do poder mundial vêm sendo aproveitadas pelo Sul Global, que enxerga nelas a chance de ocupar mais espaço na política internacional. Nas últimas décadas, esse grupo de países deixou de ser apenas receptor das regras definidas pelas potências centrais e passou a atuar mais ativamente na arena de poder, questionando a ordem vigente e propondo alternativas. Nações até então consideradas periféricas ampliaram sua capacidade de influência firmando alianças entre si, como o BRICS e o Mercosul, e agora desafiam as instituições tradicionais ao reivindicar seu espaço na tomada de decisões. Esse movimento não se limita à esfera econômica: envolve também a construção de narrativas próprias que questionam o universalismo ocidental e propõem arranjos de poder mais plurais. Ao ocupar essa posição, o Sul Global reconfigura o contexto geopolítico e inaugura um capítulo no qual múltiplos países disputam a definição da gramática mundial.

A pesquisadora alemã Alexandra Sitenko, em sua conferência para o IHU, explica que, apesar da dimensão positiva, esse bloco de países é unido mais por interesses econômicos e comerciais do que por valores comuns, e também enfrenta diversas dificuldades internas, como a fragmentação política, a sub-representação na arena internacional e a ainda grande dependência das principais potências. Ao referir-se à América Latina, Alexandra diz que a região deve se engajar mais para promover seus próprios interesses e atender suas próprias necessidades. Trata-se de um desafio, pois, para isso, é preciso focar em integração regional, construir uma voz mais unificada e estabelecer mais alianças com outras potências médias do Sul Global. Além disso, a pesquisadora destaca o importante papel diplomático da América Latina, que deve ser preservado e desenvolvido para contribuir com um caráter pacífico de competição geopolítica.

Tantas alterações em uma ordem antiga e tão fortemente instituída não seria, naturalmente, aceita de forma passiva. Diante desse cenário instável, o fenômeno do trumpismo parece lutar pelo restabelecimento da estrutura até então dominante. Porém, o professor italiano Manlio Graziano explica ao IHU que Donald Trump é, na verdade, produto de uma crise que já iniciou há muito tempo. A queda dos Estados Unidos como potência absoluta vem sendo decretada por uma série de eventos que questionam seu poder, como por exemplo, a derrota do Vietnã, os atentados de 11 de setembro e a crise financeira de 2008. A sensação de declínio gerou ressentimento na sociedade estadunidense e o desejo de reverter o status quo foi personificado na figura de Trump. Com suas políticas de fechamento, protecionismo e antiglobalismo, o presidente se posiciona como um antipolítico” que desafia o multilateralismo.

Manlio aponta o paradoxo: na tentativa de recuperar a autoridade e reequilibrar o país, Trump ataca as próprias fundações que conferiram aos EUA sua grandeza – como instituições democráticas, universidades e alianças internacionais – e acelera o declínio que ele busca evitar. Durante sua participação no ciclo de estudos, o também pesquisador italiano Mattia Diletti complementa essa perspectiva ao afirmar que o país, até então o maior símbolo da democracia, enfrenta agora uma crise democrática sem precedentes. Ele argumenta ainda que o trumpismo não se limita à imagem de Trump, mas representa uma ideologia que visa estabelecer uma ordem centralizada e autoritária. Além de ideológico, trata-se de um movimento que visa reorganizar a economia estadunidense, unindo desde grandes empresários até trabalhadores precarizados em torno de um mesmo programa que promete não só benefícios materiais, mas também reforço da identidade nacional. Alimentado pela grande nostalgia de uma época supostamente mais próspera, o trumpismo se difunde por meio de redes sociais próprias que permitem que o movimento se mantenha ativo e influente.

Além da difusão de ideais e ideais, as tecnologias emergentes vêm assumindo novas funções: são importantes instrumentos de poder e controle. Governos autoritários conseguem hoje criar sistemas de vigilância muito mais eficientes e invasivos para monitorar a população, censurar ou propagar determinados conteúdos, deter dados privados e prever possíveis ameaças ao regime. O tecnoautoritarismo representa uma nova linguagem” na qual o poder político é reforçado pela capacidade tecnológica. O especialista francês Claude Serfati palestrou sobre a perigosa aliança entre a inteligência artificial e a indústria militar, e explicou que a primeira é um ativo crucial em rivalidades econômicas e geopolíticas. A incorporação da IA elevou o potencial destrutivo do aparato bélico e reconfigurou o campo estratégico, assentando os algoritmos no centro da disputa de poder. A tecnologia é hoje mais importante que as armas tradicionais e é capaz de excluir até mesmo os próprios dirigentes militares do campo de batalha, podendo guiar-nos a situações incontroláveis, avisa Claude. O estudioso menciona ainda as Big Techs como agentes decisivos na integração entre inteligência artificial, forças militares e os Estados, um sistema híbrido de poder. Empresas como Google, Microsoft, Amazon e Meta fornecem infraestruturas tecnológicas indispensáveis para uso militar, e essa colaboração se traduz em contratos bilionários e acordos que borram as fronteiras entre interesses corporativos e estatais, permitindo que empresas influenciem na segurança internacional. A mistura entre o privado e o militar reforça a lógica do tecnoautoritarismo e submete a infraestrutura digital global a finalidades de domínio e guerra.

As cinco conferências que compuseram o ciclo de estudos A Gramática do Poder Global demonstram que a linguagem do poder no século XXI está sendo reescrita através de deslocamentos geopolíticos, múltiplas crises e do uso estratégico da tecnologia. As antigas regras ainda operam, mas já convivem com novas construções que desafiam hierarquias, redesenham alianças e ampliam as disputas na arena internacional. Compreender essa gramática em constante mudança é condição para formular respostas políticas e propor alternativas em um mundo em transição. 

O ciclo de estudos A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI, promovido pelo IHU, e todas as suas palestras podem ser acessados na página do evento e no YouTube.

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