13 Agosto 2025
De forma contundente, seu vídeo expõe a contradição entre a hipocrisia que o bolsonarismo exibe em praça pública e sua defesa incondicional das redes desreguladas, que fecham os olhos para a exploração infantil e o discurso de ódio.
O artigo é de Ricardo Queiroz Pinheiro, publicado por Outras Palavras, 12-08-2025.
Ricardo Queiroz Pinheiro é bibliotecário, gestor público e doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Atua em biblioteca pública há 29 anos.
Eis o artigo.
Felca é o Felipe Bressanim Pereira, um influencer digital e caso raro de criador que consegue misturar humor afiado, um certo nonsense, com senso de responsabilidade. Começou na internet fazendo vídeos de sátira e comentários bem-humorados sobre o absurdo cotidiano das redes, acumulou milhões de seguidores e, vez ou outra, usava essa vitrine para cutucar assuntos sérios. Recusou contratos milionários de apostas, doou o que arrecadou em transmissões e construiu uma relação de confiança com seu público.
No último, final de semana, soltou “Adultização”, um vídeo de quase 50 minutos que denunciou influenciadores envolvidos na sexualização de menores. A repercussão foi explosiva: milhões de visualizações, derrubada de perfis, projetos de lei no Congresso e até o súbito interesse do deputado Hugo Motta, líder de partido ligado à base bolsonarista, que correu para se associar ao debate.
Mas Felca fez mais que um vídeo de denúncia. Ele puxou o fio de um novelo que a extrema direita prefere manter escondido e que alimenta sua base: a ligação direta entre o moralismo hipócrita que exibe em praça pública e a defesa incondicional da desregulamentação das redes. Ao expor a exploração sexual de menores, ele não apenas apontou um crime, mas mostrou a estrutura que o sustenta e o acoberta.
O moralismo da extrema direita é performático. Serve para marcar posição, criar inimigos imaginários e mobilizar sua base, mas evapora diante de crimes reais que afetam seus aliados ou ameaçam a arquitetura digital que os mantém no jogo. A “defesa da família” vira marketing. O combate à exploração infantil se dissolve em silêncio, relativização ou ataque a quem denuncia.
A tal “liberdade das redes” que eles defendem não é liberdade de expressão. É uma bandeira para impedir qualquer regulação que interfira no lucro das big techs e na máquina de propaganda política que operam. É um código de autoproteção: se essa engrenagem parar, param também as campanhas subterrâneas, a manipulação algorítmica e a guerra cultural que move sua base.
O lobby pela desregulamentação é estratégico e bilionário. As big techs lucram com conteúdos que geram indignação, medo e ódio, independentemente de serem falsos, ilegais ou imorais. A extrema direita, por sua vez, depende dessa lógica para se manter relevante e competitiva — tanto nas eleições quanto na disputa simbólica de todos os dias. Crimes como a exploração infantil, a incitação à violência e o discurso de ódio prosperam nesse ambiente porque o lucro vem antes da lei.
É por isso que o vídeo de Felca incomodou tanto. Ele não se limitou a narrar casos. Usou com inteligência seu alcance para desmontar o teatro moral, evidenciar o crime e, de quebra, expor a simbiose entre extremismo político e plataforma digital. Ao fazer isso, tocou nos dois nervos mais sensíveis dessa aliança: o discurso hipócrita e a estrutura que o financia.
A reação de figuras como o cabuloso Rodrigo Constantino, chamando Felca de “agente do caos”, é reveladora. Quando a farsa se vê encurralada por fatos irrefutáveis, resta desqualificar o mensageiro e transformar a denúncia em “conspiração” contra a liberdade. É a última trincheira de um projeto que não sobrevive se for obrigado a jogar limpo.
Felca precisa do apoio de todo mundo que luta contra esses criminosos.
Link para o vídeo. Aviso: o vídeo incomoda, é pesado, mas absolutamente necessário para o combate do que denuncia.
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