22 Mai 2025
Nos Estados Unidos, um adolescente de 18 anos processa onze fabricantes de ultraprocessados por danos físicos, emocionais e financeiros; reivindicação pode inspirar novas ações judiciais e reflete a falta de regulação da indústria.
A reportagem é de Flávia Schiochet, publicada por O Joio e O Trigo, 20-05-2025.
Um adolescente protagoniza um feito inédito no mundo. Bryce Martinez, 18 anos, entrou com uma ação judicial contra onze indústrias de ultraprocessados nos Estados Unidos em dezembro de 2024. Batizada de “Martinez versus Kraft Heinz Company, Inc. et al.”, a queixa implica também as indústrias Mondelez, Post Holdings, Coca-Cola, PepsiCo, General Mills, Nestlé, Kellanova, WK Kellogg, Mars e ConAgra.
Caso a corte da Pensilvânia aceite a queixa, as gigantes podem se sentar no banco dos réus. Em abril, as empresas citadas haviam pedido arquivamento do processo, mas, até o fechamento desta reportagem, em maio, não havia resposta da corte. A audiência está marcada para o dia 1º de agosto, quando o tribunal ouvirá ambas as partes.
É a primeira vez que uma ação judicial é movida contra indústrias de ultraprocessados por causarem danos à saúde. “Alguém precisa inaugurar esse debate no escopo individual para falar de responsabilização dessas empresas”, analisa Igor Britto, diretor executivo do Instituto de Defesa de Consumidores (Idec). Uma decisão favorável a Martinez pode encorajar uma série de ações semelhantes nos EUA.
O caso surgiu “de forma aleatória”, segundo o advogado de defesa de Martinez, Rene Rocha, que se deparou com a expressão “ultraprocessados” ao ler as notícias e ver um infográfico sobre o consumo desses produtos na Europa. “Percebi rapidamente que havia um nível incrível de evidências científicas de qualidade. Ficou claro que esse era um problema para a nossa sociedade. Um problema que não deveríamos ter. E que havia muitas vítimas inocentes que mereciam justiça”.
Seguiram-se dois anos de estudo do assunto a partir de artigos científicos e da revisão histórica da ação contra as indústrias do fumo, nos anos 1980 – década em que a Philip Morris e a Altria Group, duas gigantes do tabaco, compraram a Kraft Heinz e a Post Holdings; e em que o grupo RJ Reynolds Industries, também do setor de cigarros, comprou a Mondelez e a Nabisco. O conhecimento de como desenvolver um produto viciante e promovê-lo com um marketing agressivo foi uma das heranças que a indústria do cigarro legou à dos ultraprocessados.
Bryce Martinez e sua família entraram em contato quando o escritório já havia definido que atuaria nessa linha. Rocha não detalhou como foi a abordagem da família, mas deu a entender que o caso de Martinez era bastante representativo da questão detectada por seu escritório. “Não ajuizamos a ação se não acreditarmos que obteremos grandes vitórias, com decisões e veredictos favoráveis. Obviamente, o juiz e o júri decidirão isso em última instância. Mas acreditamos que temos bases sólidas, tanto jurídicas quanto factuais, para ajuizar essas ações”. Diferentemente do Brasil, nos EUA, a produção de provas, peritos, laudos médicos e científicos e demais custas processuais geralmente são bancados pelo escritório de advocacia, e não pela vítima. A tendência é que os escritórios não “apostem” em ações que não sejam favoráveis para seus clientes.
A queixa alega que Martinez consumiu refrigerantes, cookies, salgadinhos e demais produtos ultraprocessados desde a infância e que, por isso, ele tem diabetes tipo 2 e doença hepática gordurosa não-alcoólica desde os 16 anos. Estas duas doenças crônicas não transmissíveis se tornaram mais frequentes em crianças dos EUA a partir da década de 1980, segundo artigo científico de 2015. A relação feita é que a popularização dos ultraprocessados e a falta de regulação fizeram com que a população tornasse esses produtos parte da sua alimentação básica.
A ação cita um valor mínimo de indenização de US$ 50 mil (aproximadamente R$ 287 mil) por danos físicos, emocionais e financeiros, sem contar os honorários e as custas do processo, mais juros sobre os valores gastos desde o momento em que os danos teriam começado e qualquer outra reparação que o tribunal considere justa. Alega ainda que as empresas agem de forma intencionalmente enganosa, e por isso deveriam ser penalizadas.
“Esse rapaz pode ter várias pequenas vitórias dentro do processo. Mesmo que ele não ganhe a indenização, pode haver reconhecimento judicial de que esses produtos são perigosos”, analisa Britto, do Idec, apontando que um posicionamento do juiz sobre a conduta das indústrias e a má qualidade nutricional dos produtos pode impactar futuros julgamentos e encaminhar mudanças na sua regulação nos EUA.
Ironicamente, os ultraprocessados, termo cunhado pela ciência brasileira e ignorado pelo Dietary Guidelines for Americans (Guia Alimentar para a População Americana, em tradução livre), estão na base da argumentação da ação civil de Martinez. A Food and Drug Administration (FDA) – agência estadunidense que regula alimentos, medicamentos, cosméticos e tabaco – também não apresenta regulação para os ultraprocessados. Para sermos justos, nem no Brasil essa normatização saiu, mesmo após dez anos da publicação do Guia Alimentar para a População Brasileira, que traz uma recomendação expressa de evitar ultraprocessados.
Na avaliação de Rocha, advogado de Martinez, a visibilidade que o Judiciário pode dar ao assunto tem capacidade de influenciar uma regulação mais firme. “Quando as indústrias começarem a sentir no próprio bolso, é aí que as mudanças acontecerão. Por exemplo, a maior parte das ações governamentais para lidar com os danos causados pela indústria do cigarro surgiu de litígios”, compara, fazendo referência às indústrias de fumo que possuíam várias empresas de ultraprocessados na década de 1980. Rocha acredita que até o final de 2025 surgirão leis e regulamentações nos EUA sobre ultraprocessados.
O estágio de queixa de uma ação judicial não requer apresentação de provas. Fontes ouvidas pelo Joio dizem que, se a ação for acatada pela corte, a dificuldade está em provar que foram os ultraprocessados a causa das doenças de Martinez.
“O desafio de qualquer pessoa que entrar com uma ação desta, em qualquer parte do mundo, é que os processos judiciais de reparação de dano exigem uma relação mais imediata de que essa pessoa consumiu aqueles produtos. Precisa de notas fiscais e imagens da pessoa consumindo durante anos”, detalha Britto, do Idec.
Questionado sobre o desafio de reunir provas contundentes que registrem o consumo ao longo dos anos, Rocha foi sucinto: “Tenho certeza de que os advogados de defesa vão encontrar maneiras de nos desafiar, mas nós vamos ganhar”.
Para garantir que a atividade de um setor ocorra de forma justa, o Estado atua em duas frentes principais: a regulação, que define as normas e os limites a serem observados pela indústria; e a responsabilização civil, aplicada quando essas normas são violadas. É como se o setor fosse “contido” por essas duas pontas, uma vez que a primeira estabelece as regras do jogo e a segunda, a penalização pelo descumprimento.
Não há uma legislação ou norma que dê conta de todos os aspectos dos ultraprocessados no Brasil. A regra de ouro do Guia Alimentar para a População Brasileira – “Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados” – é a recomendação do Estado mais expressa, mas não tem força de lei.
“É muito importante ter políticas públicas para prevenir o consumo desses produtos. Restringir publicidade, aplicar tributação onerosa, incluir alertas sanitários, discutir a altura em que esses produtos ficam nas gôndolas dos supermercados”, enumera Adriana Carvalho, diretora jurídica da ACT Promoção da Saúde.
“A facilidade de acesso a esses produtos e a normalização do consumo, como crianças ganharem doces ser considerado algo bom, a gente consegue mudar com política pública. Hoje em dia, se alguém acender um cigarro em ambiente fechado, pega mal”, diz, referenciando a mudança de comportamento que houve no Brasil após a publicação da lei que proíbe fumar em locais fechados, em 2011. Esta foi uma das regulações do Estado que fizeram a percepção social mudar.
Algumas resoluções, como a rotulagem com as lupas que apontam para o excesso de nutrientes, a restrição de publicidade voltada ao público infantil e a limitação da oferta de ultraprocessados nas escolas públicas, são formas de “conter” o setor. Mas não são o suficiente para desestimular o consumo desses produtos. A tributação de ultraprocessados pelo Imposto Seletivo, por exemplo, teria contribuído para desincentivar.
Uma ação judicial como a do adolescente estadunidense seria mais difícil de ser ajuizada no Brasil. Isso porque os sistemas de direito dos dois países são diferentes. Enquanto nos EUA é o Direito consuetudinário, baseado nos costumes, no Brasil é o Direito civil, baseado nos códigos.
“Nos EUA, a jurisprudência tem uma força muito grande. A decisão de um juiz é equiparável à lei, e às vezes pode estar acima dela. No direito civil, não. Nossos tribunais aplicam o que está previsto na legislação”, compara Britto, do Idec. Aqui, as decisões anteriores de casos similares até podem ser consideradas pelos magistrados, mas a força da lei é maior.
Sem um arcabouço legal que restrinja as atividades da indústria de ultraprocessados, fica difícil montar um caso jurídico para os tribunais brasileiros.
Tanto que, quando essas corporações são penalizadas, a decisão não é dos tribunais. Um exemplo foi a autuação da Nestlé pelo Procon de São Paulo, em abril, por infringir o Código de Defesa do Consumidor. O órgão multou a companhia por propaganda enganosa: a embalagem de dois produtos alegava conter ingredientes que não estavam na composição. A empresa pode ser multada em R$ 13 milhões, uma parcela muito pequena da receita líquida da empresa no Brasil: em 2022, foi R$ 22,9 bilhões. A Nestlé disse que vai apresentar sua defesa e que os itens não estão mais nas prateleiras.