25 Abril 2024
Pesquisa inédita mostra: Aos países ricos, alimentos “nutritivos”; ao Sul global, os mesmos itens contém altos níveis de adição de açúcares. Em marcas como Mucilon – para introdução alimentar em crianças de seis meses – a sacarose chega a compor 20% do produto.
A reportagem é de Nathália Iwasawa, publicada por O joio e o trigo, 23-04-2024.
Você deve conhecer o Mucilon, produto da Nestlé destinado a crianças. Mas em muitos países, como Índia, Paquistão, África do Sul e Indonésia, você vai encontrá-lo nas prateleiras pelo nome de Cerelac. Essa palavra aparece dezenas de vezes no relatório publicado nesta terça, 16, pela Public Eye, com colaboração da Rede Internacional em Defesa do Direito de Amamentar, a Ibfan.
O documento revela uma perversidade da corporação suíça no que diz respeito à venda de produtos com uma qualidade nutricional inferior nos países do Sul global. Os pesquisadores descobriram, por meio de análises laboratoriais, que o Cerelac (Mucilon) e o Nido (Ninho) contêm teores de açúcar muito acima do recomendado para crianças menores de dois anos. Os produtos são vendidos em países da África, Ásia e América Latina – incluindo o Brasil.
A contradição fica evidente no relatório: na Suíça, país-sede da empresa, os mesmos produtos são vendidos sem qualquer adição de açúcar. Parece que em casa de ferreiro… o espeto é realmente de ferro.
Para que não reste dúvidas: em seu país, a Nestlé vende o cereal sabor biscoito sem adição de açúcar; no Senegal, o Cerelac do mesmo sabor contém 6 gramas de açúcar adicionado por porção.
Nos principais mercados da Nestlé na Europa – Alemanha, França e Reino Unido – todos os leites para crianças de um a três anos também não contêm açúcar adicionado.
As duas marcas – Cerelac e Nido – estão entre as mais vendidas na categoria “comida de bebê” em países em desenvolvimento. A corporação promove um malabarismo retórico ao afirmar que o objetivo dos produtos é ajudar as crianças a “levar uma vida mais saudável”.
Segundo informa o site global da empresa, esses produtos são enriquecidos com vitaminas, minerais e outros micronutrientes “essenciais”, e ajudam no crescimento, no fortalecimento do sistema imunológico e no desenvolvimento cognitivo. O rótulo, porém, esconde o ingrediente crítico que a ciência já provou ter relação com o desenvolvimento de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs).
A promoção dos mesmos produtos com padrões de ingredientes muito diferentes entre o Norte e o Sul global escancara o que os pesquisadores chamaram de um “duplo padrão injustificável”. Para a professora Fabíola Nejar, nutricionista e integrante da Ibfan, esse é um “jogo sujo”.
“É um produto que cria um mercado que nem deveria existir, porque na verdade é uma fase da criança que ela deveria ter contato com alimentos minimamente processados, alimentos in natura e elementos da cultura alimentar daquela família”, diz. Fabíola foi uma das pesquisadoras responsáveis por dar um parecer técnico ao relatório.
Para encontrar provas desse duplo-padrão, foi realizada uma compra dos produtos em mercados-chave da corporação. As amostras foram enviadas para alguns laboratórios da Suíça. Para a surpresa dos pesquisadores, muitas dessas empresas se negaram a fazer a testagem.
“O assunto revelou-se mais complicado do que o esperado”, diz o relatório. Um dos laboratórios alegou que não poderia fazer o teste porque os resultados “poderiam ter um impacto negativo” entre os clientes. Perante estas recusas, os pesquisadores de Public Eye e Ibfan recorreram a um laboratório sediado na Bélgica, o Centro de Especialização Alimentar de Bruxelas. “É uma força que tem a ver com cifrão, que tem a ver com a economia”, analisa Nejar sobre a recusa dos laboratórios suíços.
O levantamento da Public Eye mostrou que o Ninho no Brasil não contém adição de açúcar. O país é o terceiro maior mercado consumidor da marca. Mas o Mucilon, um produto voltado para a introdução alimentar, ou seja, quando a criança já completou seis meses de idade, é vendido no país com adição de açúcar em seis dos oito tipos disponíveis no mercado. Na análise laboratorial os pesquisadores encontraram uma média de 4 gramas por porção de 21 gramas, ou seja, quase 20% do produto.
Os maiores níveis de açúcar (4,2g e 4,3g, respectivamente) foram encontrados no Mucilon Multicereais e no Mucilon Arroz. O açúcar aparece como segundo ingrediente da lista de todos os oito produtos.
A termo de comparação, no maior mercado consumidor do Ninho, a Indonésia, a realidade é outra. O leite da Nestlé para crianças de um a três anos, o Ninho, contém 2 gramas de açúcar adicionado para cada 100g de produto.
O açúcar do Mucilon normalmente vem na forma de sacarose, enquanto o Ninho aparece acrescido de mel. O primeiro produto está presente em mais de 50 países, sendo que a Índia e o Brasil representam cerca de 40% desse mercado. Paquistão, Nigéria e África do Sul são outros países importantes para a marca.
Já o Ninho figura em pelo menos 40 países, sendo que a Indonésia sozinha representa um terço do mercado global.
Talvez o aspecto mais chocante dessa história é que esses açúcares presentes no Mucilon até pouco tempo estavam escondidos dos consumidores no Brasil. Não era obrigatório divulgar o teor de açúcar adicionado nos rótulos nutricionais e a Nestlé não comunicava essa informação de forma voluntária, por óbvio. A legislação previa que os açúcares podiam ser contabilizados na tabela nutricional junto com os carboidratos.
Isso mudou a partir das novas regras de rotulagem nutricional para alimentos e bebidas, que entraram em vigor em outubro de 2023. O novo regulamento, que sofreu inúmeros ataques da indústria, inclusive da própria Nestlé, também se aplicará a alimentos para fins especiais, como o Mucilon.
O açúcar adicionado é um ingrediente que não deve fazer parte da alimentação de crianças menores de dois anos. Essa é uma recomendação a nível global expressa pela Organização Mundial da Saúde, além de governos locais, como é o caso do Guia Alimentar para Crianças Menores de Dois Anos, documento do Ministério da Saúde do Brasil.
Apesar das diretrizes estabelecidas pela OMS, a adição de açúcar aos alimentos para bebês é permitida na maioria dos países, que se baseiam no Codex Alimentarius, um conjunto de normas internacionais desenvolvidas por uma comissão intergovernamental e coordenada conjuntamente pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e pela OMS. O lobby, porém, se faz presente. Numa revisão recente da norma para leites de crescimento, a indústria representava mais de 40% dos participantes.
A Nestlé parece conhecer muito bem essas diretrizes em saúde pública. No site do Ninho Brasil a corporação diz que “é ideal evitar o consumo desses ingredientes [açúcares] na infância, pois o sabor doce pode influenciar a preferência por este tipo de alimento no futuro”.
A Nestlé ocupa o topo de vendas do mercado brasileiro de alimentos destinados a crianças. Em 2022 as vendas para essa categoria de produtos passaram de US$ 600 milhões. Nosso país é um prato cheio para a corporação suíça. Por isso, o relatório encomendou uma pesquisa para avaliar também as estratégias de marketing e lobby aplicadas no contexto brasileiro.
Coordenado por Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) e professora na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, o levantamento encontrou nove estratégias usadas pela Nestlé para construir um discurso de saudabilidade sobre seus produtos, além de fazer uma aproximação cada vez mais sofisticada com a família, principalmente com as mães, colocando-se no lugar de uma grande “aliada” no cuidado com bebês e crianças.
Reprodução: Carta Capital
Para Bortoletto, chama atenção a confusão promovida pelos vídeos de receita com Mucilon. “Tem aquelas receitas que são com produtos com açúcar e tem as receitas que são com produtos sem açúcar. E quando são os produtos com açúcar, tem um pequeno aviso que é para crianças maiores de dois anos, e os outros não. Mas é a mesma história visual e o mesmo tipo de narrativa dentro do mesmo espaço”, alerta a pesquisadora.
Trata-se do site “Receitas Nestlé”, que oferece receitas com vários produtos da corporação, inclusive os destinados às crianças, como o Mucilon. A pesquisa brasileira encontrou 109 receitas, 21 vídeos, 41 artigos e dicas e um livro de receitas relacionados ao produto. As mensagens que reforçam a suposta saudabilidade não ficam de fora. Comunicam que há adição de vitaminas e minerais, como ferro e zinco “que ajudam no desenvolvimento adequado do cérebro”, diz a apresentadora. Em outro momento, ela afirma que “um cookie de frutas com Mucilon é exatamente o que seu filho precisa.” Nesse caso, ela usa o Mucilon Multicereais, que contém 4,2g de açúcar por porção.
“Eu sei que você quer que seu filho cresça da melhor maneira possível, mas sei da correria do seu dia a dia”, diz a apresentadora. O jeito de passar a mensagem “de mãe para mãe” é uma estratégia conhecida. Fabíola Nejar diz que “tudo isso é muito difícil porque você acredita na marca, você tem um produto e você destina para a criança. Só que isso marca as papilas gustativas para exatamente esses alimentos”.
A pesquisadora lembra que a formação do paladar nessa primeira infância é um aspecto muito importante para a nutrição e a saúde pública. Nessa fase da vida em especial é preciso proteger as crianças de alimentos ultraprocessados, que contêm ingredientes críticos, como sódio, gordura e açúcar.
“É dificílimo você ver uma criança pequena sem comer. Porque ela está com as papilas gustativas prontas para aquele produto específico”, diz. E, como mãe, ressalta que “se tem uma coisa que traz culpa é a criança quando ela não come”. As mensagens como as passadas no vídeo de receitas com Mucilon vêm muito a calhar nesse sentido: a Nestlé é uma amiga da mãe em desespero.
Outra estratégia importante da corporação é a mobilização de influenciadoras digitais. A Nestlé tem feito muitas “parcerias” com mulheres mães. Exemplo disso é a publicidade feita com Fabi Santina, responsável pelo perfil Vida de Mãe Podcast. Um dos episódios do podcast, em que fala sobre maternidade, foi patrocinado pelo Mucilon. Participou da conversa Shantal Verdelho, mãe de três filhos e influenciadora digital com mais de um milhão de seguidores no instagram.
A parte mais publicitária do episódio dura cerca de cinco minutos e são feitos inúmeros elogios ao produto. A apresentadora é quem começa: “A gente está aqui falando de introdução alimentar, da primeira refeição, então vamos falar do Meu Primeiro Lanchinho, que está aqui.”
E a convidada logo participa: “No carro, para você dar uma coisa prática, eu sempre levo na bolsa algo assim. Aí ele [meu filho] só pega ali, abre, come. Ele fica super feliz de ver qual que é o lanchinho do dia, e Meu Primeiro Lanchinho cai perfeito.” Já no fim, Fabi conclui que “as mães agradecem. Eu adoro coisas que facilitam a vida da mãe, porque vida de mãe não é fácil”.
As estratégias, muitas vezes, são mais sutis. O relatório da Public Eye destaca que a Nestlé tem contratado influenciadoras para produzirem conteúdo próprio, mostrando o produto no dia a dia como se fosse um uso voluntário, sem deixar explícito que aquela postagem se trata de um conteúdo patrocinado, o que “borra as fronteiras entre marketing e conselhos nutricionais”.
É importante dizer que esse tipo de publicidade fere o Código Internacional de Comercialização de Substitutos do Leite Materno, que proíbe todas as formas de promoção de fórmulas infantis, leites de crescimento para bebês de até três anos e de alimentos para esse público que contêm elevados níveis de açúcar.
A nível global, a pesquisa encontrou mais de 70 publicações nas redes sociais que promoveram indevidamente o Mucilon e o Ninho, alcançando um público de quase 5 milhões de pessoas no Instagram. Todos os produtos promovidos nestes posts são direcionados a crianças menores de dois anos. Os influenciadores que promovem os produtos incluem mães, mas também profissionais de saúde.
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Nestlé, e seu “duplo padrão” de comida saudável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU