13 Setembro 2024
"Enquanto colegas do Norte propõem o melhoramento desses produtos e não abrem mão da ideia de que eles têm um lugar quase natural na vida humana, Monteiro – e muitos de nós – não tem dúvidas em reiterar que devemos evitar ultraprocessados".
O artigo é publicado por Joio e o Trigo, 11-09-2024.
Em prefácio à obra Gente ultraprocessada, professor da USP Carlos Monteiro elenca as razões que levaram uma instituição pública do Sul global a formular, em desafio ao imaginário eurocêntrico, conceitos inéditos sobre a comida industrial.
Uma teoria formulada no Sul global. Em uma universidade pública. Com um olhar que desafia diretamente o imaginário do Norte. E que coloca as corporações de alimentos no centro do enorme problema das doenças crônicas. Pensando por essa perspectiva, a Classificação NOVA tinha tudo para dar errado. Para ser ignorada e cair no esquecimento. Mas o que ocorreu foi o contrário.
Também por essa perspectiva, chega a ser curioso pensar que uma das melhores crônicas de toda essa história tenha sido oferecida por um médico do Norte. Especialista em doenças infecciosas, e não crônicas. E que duvidou da teoria brasileira.
Era um dia qualquer de 2023 quando, no X de Elon Musk, finado Twitter, foi publicado um tuíte empolgado de Carlos Monteiro, professor emérito da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ele recomendava enfaticamente a leitura de Ultra processed people, livro que, agora, chega ao Brasil com o nome de Gente ultraprocessada.
Todo mundo que conhece o autor da Classificação NOVA sabe que o sarrafo é alto. Então, se ele estava empolgado com o livro, era melhor levar a sério. Começamos uma conversa – ele, eu e a igualmente empolgada Paula Johns, diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde – para saber se valia a pena trazer o livro para o português. E, sim, valia.
Mais de um ano depois, o prefácio de Carlos Monteiro à edição brasileira mantém o tom otimista em relação ao livro.
“Nas páginas de Gente ultraprocessada, van Tulleken descreve com primor a história dos alimentos ultraprocessados, a lógica de sua produção e os impactos que esses produtos têm em nossa saúde. Para isso, expôs, muito corajosamente, seu próprio organismo aos ultraprocessados, fez uma exaustiva revisão da literatura e conversou com grandes especialistas no tema. O resultado é uma narrativa completa e fascinante.”
É isso. Eu não poderia resumir melhor. Chris van Tulleken é, além de médico, uma pessoa com uma bela capacidade de comunicação. Ele decidiu entender como a teoria cunhada pelo Nupens, o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, então coordenado por Carlos Monteiro, havia se provado acertada – a saber: existe um grupo de produtos alimentícios, os ultraprocessados, que tem a maior parcela de responsabilidade pela explosão dos índices de câncer, diabetes e doenças cardiovasculares associados à alimentação.
Em nosso trabalho, contamos algumas vezes essa história, então, tentarei ser breve – se quiser se aprofundar, vale escutar a série “A máquina de criar problemas”, que lançamos em nosso podcast, Prato Cheio, no segundo semestre de 2023, e ler Gente ultraprocessada.
Como narra van Tulleken, “comecei a examinar os artigos de Monteiro publicados anteriormente. É uma jornada pela história da nutrição e da obesidade. Ele nasceu em 1948 em uma família que ficava em uma posição muito particular na hierarquia social brasileira, no limite máximo da pobreza e no limite mínimo da riqueza. Monteiro conseguia enxergar nas duas direções. Talvez seu interesse por justiça social tenha vindo da ideia de que seria muito fácil cair na pobreza desesperadora tão visível ao seu redor, talvez uma questão de sorte mais do que qualquer outra coisa”.
Esse é um aspecto importante e pouco explorado das explicações sobre o nascedouro da NOVA: alguém que não questione o mundo, que considere normais as transformações profundas pelas quais passamos em termos de alimentação humana, dificilmente terá – teria – a capacidade de formular uma teoria que olhou para um aspecto inédito.
É aqui que a gente começa a entender por que a NOVA surgiu no Sul. E no Brasil. Nós tínhamos um padrão alimentar tradicional bastante preservado, ligado à nossa cultura alimentar, então, quando os ultraprocessados começaram a se espalhar por aqui, era relativamente fácil notar a presença de um elemento estranho – o que em nada diminui a sagacidade do grupo de Monteiro. Continua o autor de Gente ultraprocessada:
“Ainda que seus artigos sejam cheios de equações complexas, o conteúdo parece rotineiro. Não passa a impressão de ser como curar câncer ou sequenciar o genoma – trata-se de examinar faturas de compras, embora utilizando múltiplos modelos de regressão linear para fazê-lo. Mesmo com a minha formação científica, passando os olhos superficialmente pelo trabalho de Monteiro, senti que ele era obscurecido pela mesma questão que obstrui tantas ideias importantes — ser complicado e tedioso. Mas quando eu recuava da seção de métodos científicos de qualquer um de seus artigos e olhava para o conjunto da obra, podia ver que ele documentava meticulosamente algo extraordinário: a transformação nutricional do Brasil, de um país em que a obesidade era de interesse meramente acadêmico para um país em que ela é, sem dúvida, o problema de saúde público dominante.”
Há muitas razões para a ocorrência da NOVA. E certamente diferentes pessoas escolheriam dar ênfase a diferentes aspectos. A questão é que Carlos Monteiro e o Nupens olhavam para esse Brasil em transição, da desnutrição à obesidade e às doenças crônicas, e questionavam os dados em busca de respostas. Mas os dados não eram lá muito generosos: olhando a Pesquisa de Orçamentos Familiares, do IBGE, notava-se até uma redução no consumo de sal e açúcar.
“Num esforço para resolver esse aparente paradoxo, Monteiro decidiu que, em vez de se concentrar em nutrientes únicos ou itens alimentares, ele olharia para o padrão dietético geral. Ele e sua equipe abordariam a tarefa de traçar um limite em torno de “comida ruim” de uma maneira diferente. Em vez de começarem pelo início, no nível microscópico, começariam pelo fim. Eles haviam identificado que alimentos estavam causando os problemas, e então trabalharam no sentido inverso para ver o que todos eles tinham em comum.”
Eureka. No prefácio à edição brasileira, Monteiro chama atenção para o fato de que a teoria nasceu numa escola de saúde pública, e não de medicina.
“Trata-se de um detalhe importante. No campo da saúde pública, pesquisas são, por natureza, transdisciplinares. Focam em identificar os fatores ambientais (físicos, socioeconômicos, culturais) que determinam a incidência das doenças na população – sobretudo aquelas que apresentam alta frequência ou que evoluem de forma epidêmica. A partir da identificação desses fatores, são propostas medidas e políticas públicas necessárias para modificar o ambiente e prevenir as doenças.”
Mas não em qualquer faculdade de saúde pública, e sim numa instituição pública e gratuita de ensino:
“É um traço dominante dos grupos de pesquisadores brasileiros que atuam na área da saúde pública: sua filiação a instituições públicas e o apoio exclusivo que recebem de fontes também públicas de financiamento à pesquisa. Essas condições, raras em universidades americanas e inglesas, permitiram que o Nupens/USP produzisse conhecimento sem conflito de interesses. E essas são condições indispensáveis para se fazer ciência com independência em áreas nas quais o avanço científico pode ir na direção contrária aos interesses econômicos do setor privado”.
No ano passado, durante uma conversa conosco, Carlos Monteiro disse que chegou a pensar qual seria sua contribuição a essa altura, se havia tantos pesquisadores em tantos lugares fazendo novos trabalhos em torno dos ultraprocessados. A resposta veio do mesmo jeito: ele segue a ser um pesquisador brasileiro em uma instituição pública. Por isso, na hora de pensar o que fazer com os ultraprocessados, enquanto colegas do Norte propõem o melhoramento desses produtos e não abrem mão da ideia de que eles têm um lugar quase natural na vida humana, Monteiro – e muitos de nós – não tem dúvidas em reiterar que devemos evitar ultraprocessados. Mas essa já é uma outra história.
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Como a teoria dos ultraprocessados floresceu no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU