03 Mai 2025
“A Guerra da Água abriu um novo período nas lutas populares na América Latina”, escreve Raúl Zibechi, jornalista e analista político uruguaio, em artigo publicado por La Jornada, 02-05-2025. A tradução é do Cepat.
Foi um dos maiores divisores de água da nossa história recente. Com epicentro em Cochabamba, Bolívia, a Guerra da Água abriu um novo período nas lutas populares na América Latina. Não só conseguiu deslegitimar o neoliberalismo, mas ao colocar no centro a horizontalidade e a obediência dos líderes à base, também marcou profundamente o ciclo de lutas que começou em 2000 e culminou na queda dos governos privatistas.
A Guerra da Água uniu camponeses irrigadores, bairros de Cochabamba que tinham criado sistemas de água próprios e os sindicatos mais importantes da cidade, uma aliança quase irrepetível, mas capaz de demonstrar todo o seu poder na efetivação de grandes mobilizações que neutralizaram a repressão e forçaram o governo a suspender a privatização do serviço de água potável, que tinha sido conferido à multinacional Bechtel, com o apoio do Banco Mundial.
Na zona sul da cidade, os migrantes da região andina que já haviam construído suas casas, aberto suas ruas e começado a efetivar serviços, começaram a se organizar em sistemas de água. Por meio de apoios comunitários, construíram suas fontes de água subterrânea (perfuração de poços), seus tanques de armazenamento e suas redes de distribuição. Realizaram tudo com espírito de solidariedade, sem fins lucrativos e tomando resoluções que foram registradas em atas.
Os membros da comunidade se encarregaram de administrar os sistemas de água e se responsabilizaram pela parte técnica, capacitando-se ou pedindo a ajuda de especialistas. A rotatividade foi uma prática constante, já que a população da zona sul provém de regiões campesinas e mineiros realocados, ambos setores imersos em tradições e práticas comunitárias. Enquanto os mineiros contribuíram com sua cultura sindical de longa data e combativa, os camponeses contribuíram com a sua cosmovisão andina solidária.
O primeiro sistema urbano de água potável nasceu em 1990. Pude conhecer Fabián Condori, um de seus fundadores, graças a Óscar Olivera, que naqueles anos dirigia o sindicato dos operários de fábrica e, a partir daí, teve um papel de destaque na insurreição camponesa, operária e popular. “Cada família contribuía com um boliviano por mês para explosivos, ferramentas e aluguel de escritórios. Cada família tinha que cavar seis metros por mês a uma profundidade de meio metro, tudo em solo rochoso, um trabalho muito árduo e lento que demandou três anos de esforços”, explicou o senhor Fabián.
Durante os três anos exigidos pelo trabalho, realizaram 105 assembleias, uma a cada 10 dias. “O problema é que as pessoas não descansavam, vinham de seu trabalho para atuar. Cada família tinha que contribuir com 35 jornadas de oito horas. Qualquer membro da família podia trabalhar, mas majoritariamente foram as senhoras que trabalharam. Todos ficavam com bolhas e muito cansados. Picareta, pá, carrinho de mão, remover a terra, compactar - era muito, muito trabalho. Percebi que a mulher é mais trabalhadora”, lembrou Fabián, quando tinha quase 80 anos.
A outra vertente, os irrigadores, são agricultores que têm suas próprias fontes de água, como rios, lagos e poços, que administravam desde antes da chegada dos espanhóis. Tiveram que se organizar em escala regional para superar a fragmentação. Durante quatro anos, entre 1994 e 1998, as associações locais de irrigadores travaram a “guerra dos poços” em defesa de suas fontes, o que resultou no fortalecimento das associações e no aumento da coordenação regional.
Quando a empresa de privatização se aproximava de tudo o que tinham construído ao longo de décadas, camponeses e bairros urbanos formaram a Coordenadoria em Defesa da Água e da Vida, uma convergência de duas culturas organizacionais e de luta muito semelhantes, ancoradas na autonomia de cada coletivo local e na coordenação para a luta com baixíssimos níveis de burocratização ou, se preferir, onde a democracia direta desempenhava um papel importante.
A Coordenadoria dirigiu os bloqueios, as concentrações e o conjunto de lutas que, em abril de 2000, conseguiram uma vitória contundente, mostrando ao mundo que, “sim, é possível”, quando há organização e determinação coletivas. Naquele ano, ocorreu o levante das comunidades aimarás do Altiplano boliviano e, no ano seguinte, a insurreição do povo argentino, em 19 e 20 de dezembro de 2001, uma verdadeira onda de vitórias vindas de baixo.
Os guerreiros da água logo perceberam que não estavam diante da alternativa tradicional privado-estatal, sempre limitada e confusa. Propuseram a propriedade “comunitária” para gerir o serviço de água, para não depender do Estado, mas da população organizada. Não é pública, embora segundo a legislação e certa esquerda, seria “privada”, assim como tudo que o que não é estatal nessa visão de mundo.
Sobretudo, mostraram que é possível lutar sem caudilhos e partidos, e que o povo organizado é capaz de grandes triunfos por si só.