30 Abril 2025
A realização da COP30 em Belém, no coração da Amazônia brasileira, trará o hidrogênio verde dentro do escopo de estratégias centrais para redefinir as bases da transição energética no Sul Global.
O artigo é de Luiz Beltrão e Luiz Felipe Lacerda.
Luiz Beltrão é leigo inaciano, biólogo, consultor legislativo de meio ambiente do Senado Federal.
Luiz Felipe Lacerda é Secretário Executivo do Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (OLMA), Coordenador da Cátedra Laudato Si’ Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
O hidrogênio verde vem sendo promovido globalmente como uma panaceia energética, capaz de solucionar os grandes desafios da transição ecológica e da descarbonização da economia. Seu apelo está na promessa de oferecer uma alternativa energética limpa e com ampla aplicabilidade em setores como transporte, indústria.
Será mesmo o grande impulsionador da transição energética ou mais um estimulador das injustiças socioambientais?
O tema adquire especial relevância com a proximidade da Conferência das Partes das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), a ser realizada em Belém, no Pará, em 2025. O evento deverá colocar o Brasil no centro das discussões sobre soluções energéticas sustentáveis, e o hidrogênio verde aparece entre os eixos centrais da agenda oficial do governo.
O crescimento da demanda por energia elétrica no Brasil reforça a urgência da discussão. Em 2023, o consumo médio de eletricidade no país teve um aumento de 3,7% em relação ao ano anterior. Esse crescimento está associado à retomada econômica, à expansão industrial e à intensificação do uso de aparelhos elétricos. Projeções para a década indicam que o consumo seguirá em ascensão, impulsionado pela eletrificação de setores como transportes, construção civil e agroindústria.
Contudo, como a história já demonstrou — por exemplo, com a Revolução Verde do século XX —, soluções tecnológicas apresentadas como neutras e universalmente benéficas podem acarretar consequências socioambientais profundas quando desconsideram a complexidade dos contextos em que são aplicadas.
Diante desse cenário, o Brasil tem buscado estruturar políticas voltadas à promoção do hidrogênio verde, com destaque para o Programa Nacional do Hidrogênio – PNH2, instituído pelo Conselho Nacional de Política Energética, por meio da Resolução nº 6, de 23 de junho de 2022, atualizada pela Resolução nº 4 de 20 de março de 2023, do Ministério de Minas e Energia. Essa iniciativa visa desenvolver o mercado nacional, criar marcos regulatórios e fomentar investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. O plano atua em seis eixos estruturantes: fortalecimento das bases científicas e tecnológicas, capacitação de recursos humanos, planejamento energético, arcabouço legal e regulatório, inserção competitiva e infraestrutura. Importante destacar que nenhum desses eixos trata, de forma explícita, das dimensões socioambientais e territoriais dos projetos, o que pode ser indicativo de lacunas críticas em sua formulação.
O hidrogênio é um vetor energético de alta densidade que pode ser utilizado para gerar calor, eletricidade, como insumo na indústria de fertilizantes, refino de petróleo, siderurgia e na produção de amônia, bem como no transporte de longa distância (especialmente trens, caminhões e navios). Diferente de fontes primárias como petróleo ou gás natural, a energia do hidrogênio precisa ser produzida, e é o modo de sua geração que define seu impacto climático:
Hidrogênio cinza: produzido por reforma a vapor do gás natural, representa hoje a maior parte da produção global. É altamente emissor de gases de efeito estufa, já que não há captura do CO₂ gerado. Hidrogênio azul: utiliza o mesmo processo do cinza, mas com tecnologias de captura e armazenamento de carbono (CCS). Reduz as emissões diretas, mas ainda depende de fontes fósseis e enfrenta desafios quanto à viabilidade econômica e à eficácia da estocagem permanente de carbono. Hidrogênio verde: resulta da eletrólise da água com energia proveniente exclusivamente de fontes renováveis (eólica, solar, hídrica). É a única rota com potencial de zerar as emissões de carbono.
Embora o hidrogênio verde seja considerado promissor, seu processo envolve desafios não triviais como o uso, em alguns casos, de metais escassos ou nobres como catalisadores, entre eles platina, irídio, níquel. Assim, há impactos significativos relacionados à mineração, frequentemente em regiões com baixa regulação ambiental e conflitos fundiários, deslocamento forçado de comunidades, pressão sobre aquíferos e impactos radicais em ecossistemas locais.
Portanto, não basta reconhecer o hidrogênio verde como solução tecnológica; é necessário situá-lo dentro de um contexto de Justiça Socioambiental. De acordo com o Marco de Promoção para a Justiça Socioambiental da Província dos Jesuítas do Brasil, a justiça socioambiental pode ser compreendida como todas as ações que têm como objetivo colaborar para a superação das injustiças presentes em nossa herança histórica e reproduzidas pelo atual modelo de desenvolvimento extrativista e financeiro, gerador de desigualdades sociais e de agressões ambientais inomináveis. Nesta Justiça, dentro da perspectiva da Ecologia Integral apoiada na Teologia da Reconciliação, que foi apresentada pelo Papa Francisco, existe uma sinalização implícita do conceito de (in)justiça envolvendo o nosso convívio na Casa Comum. Trata-se basicamente da urgência em construir relações justas nas relações que o ser humano empreende: com Deus; as interpessoais, de geração, de gênero, étnico-raciais, religiosas, culturais, sociais, políticas, econômicas e, também, com os dons da Natureza.
No contexto da transição energética, essa noção assume relevância crítica ao alertar para os riscos de que as externalidades socioambientais dos novos modelos de produção energética recaiam sobre populações vulnerabilizadas, uma vez mais mercantilizando a natureza, colocando-se a serviço de interesses corporativos. A ausência de um eixo socioambiental no PNH2 já revela uma lacuna programática significativa.
Comunidades tradicionais já têm expressado preocupação com projetos que se instalam sem consulta prévia, livre e informada, conforme estabelecido na Convenção 169 da OIT. O caso do Complexo do Pecém (CE), onde se planeja um dos maiores polos de hidrogênio verde da América Latina, é paradigmático. Organizações como o Instituto Terramar alertam para a ausência de transparência nos processos de licenciamento, além da não consideração dos efeitos colaterais cumulativos para a região.
Assim, torna-se urgente incorporar aos programas públicos de fomento ao hidrogênio verde princípios da justiça socioambiental, em especial de justiças distributivas e procedimentais. Isso implica assegurar mecanismos de consulta, a repartição equitativa dos benefícios, a salvaguarda dos direitos territoriais, a preservação dos ecossistemas e a criação de indicadores eficientes de monitoramento da sustentabilidade energética.
A análise das emissões do hidrogênio verde não pode se restringir ao seu uso final ou às emissões diretas do processo de eletrólise. É necessário considerar as chamadas “emissões de escopo 3”, que compreendem os impactos indiretos da cadeia produtiva, como a fabricação e transporte dos eletrolisadores, a produção dos painéis solares ou turbinas eólicas utilizados na geração de eletricidade, o uso de combustíveis fósseis no transporte dos insumos, e o descarte de materiais contaminantes. Mesmo com uso de energia renovável, o balanço ambiental do hidrogênio pode ser desfavorável caso sua cadeia de fornecimento esteja baseada em estruturas intensivas em carbono.
Outro aspecto central é a pegada hídrica. A eletrólise consome aproximadamente 9 litros de água purificada por quilograma de hidrogênio. Quando considerados projetos de grande escala, a pressão sobre aquíferos e reservas hídricas regionais pode ser significativa. Para que o hidrogênio verde cumpra de fato uma função de transição ecológica justa e sustentável, é necessário adotar metodologias rigorosas de Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), integrar critérios hídricos com os territoriais nas licenças ambientais e garantir mecanismos transparentes de monitoramento público das emissões totais, diretas e indiretas, de carbono.
A crescente visibilidade do hidrogênio verde na agenda climática internacional o torna também suscetível a ser instrumentalizado como ferramenta de greenwashing. Isto é, como estratégia comunicacional para empresas ou governos construírem uma falsa imagem de responsabilidade socioambiental. Ao priorizar interesses de investidores estrangeiros, projetos de hidrogênio verde correm o risco de sacrificar exigências ambientais e sociais locais. A ausência de um marco regulatório taxonômico robusto sobre o uso da terminologia “verde”, a falta de métricas vinculantes e a ausência de auditoria pública são fatores que facilitam a proliferação do greenwashing no setor.
O Brasil tem um diferencial estratégico por possuir matriz elétrica majoritariamente renovável e potencial extraordinário para geração solar e eólica. Porém, para que esse potencial se traduza em liderança ética e sustentável no cenário internacional, é imperativo que o país corrija os déficits de regulação socioambiental, promova a justiça distributiva dos projetos e adote critérios rigorosos de transparência e participação social. Principalmente: que o governo atenda antes os interesses do seu povo que os das corporações.
A realização da COP30 em Belém, no coração da Amazônia brasileira, trará o hidrogênio verde dentro do escopo de estratégias centrais para redefinir as bases da transição energética no Sul Global. Se adequadamente regulado, promete ser um vetor de regeneração ecológica e justiça social, mas, se tratado de forma tecnocrática e excludente, corre o risco de ampliar desigualdades, repetir ciclos de exploração e comprometer a credibilidade ambiental do país. Apenas um debate comprometido com os princípios da justiça socioambiental, nos termos aqui definidos, poderá assegurar que o hidrogênio verde seja, de fato, uma solução sustentável para o futuro climático do planeta e de justiça socioambiental para o Brasil.
Infelizmente, nossas recentes experiências com pautas similares, como o Programa de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REED) e a regularização do Mercado de Carbono não são positivas e trazem para a pauta do hidrogênio verde uma atmosfera cercada de desconfianças sobre sua real capacidade em promover uma transição energética justa.