"Adentrando-me no poema de Drummond, Mineração do Outro, vejo que há, de fato um mistério indecifrável na experiência do 'peito oferto'. Quando nos 'ofertamos' ao outro, sabemos, desde o início, que ele jamais será decifrado; esse outro que vem animado por um complexo 'mostruário de fomes enredadas'. E... curioso, suas fomes estão 'ávidas de agressão', e ele dorme 'em concha'. E apesar de todos os abraços, de nosso movimento que convida, permanece acesa a 'a teia de problemas', que não é qualquer oferta que consegue solucionar", escreve Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Tivemos um lindo encontro ao final da aula sobre os poemas de Drummond, no Instituto Humanitas da Unisinos (IHU). Isso ocorreu em 09 de abril de 2025. Na primeira aula de cada mês, para coroar o dia, um grupo pequeno se encontra para abordar alguma questão refletida. Nesse dia, estavam 7 pessoas: eu, Paula, Alexia, Ana Maria, Mercia, Amauride e Vânia. Esse é um grupo que vem acompanhando os cursos que dou no IHU desde o primeiro semestre de 2021, depois da pandemia. Os encontros são de muita intimidade e de riqueza inaudita.
Na aula do dia, que era a terceira do curso, iniciado em 12 de março de 2025, tinha como livro de referência “O brejo das almas” (1934). Esse livro de Drummond, ao contrário de outros, não teve assim grande projeção, nem foi objeto de muitos estudos teórico. Isto talvez se deva ao fato dele ter saído entre dois livros de muito peso: “Alguma poesia” (1930) e “Sentimento do mundo” (1940). Alguns o consideram o “primo pobre” de Drummond, uma vez que se situou entre dois grandes marcos, mas isso não é absolutamente verdade. O livro é de beleza singular e traz em seu bojo reflexões que são fundamentais.
No encontro com o pequeno grupo, a reflexão não ficou presa ao livro Brejo das almas, mas partiu, sim, de uma indagação presente num dos poemas do livro:
“O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá
Não se mate”
No debate, Alexia, lembrou uma passagem maravilhosa do livro de Nizami (sec XII), da tradição sufi, que aborda a dolorosa história de Layla & Majnum, que viveram uma experiência de amor falida, em razão de muitos impedimentos. Os dois passaram a vida separados. Quando, depois de muito tempo, ocorre a oportunidade do encontro entre ambos, há uma interdição que vem do mundo interior de Layla. No momento propício, que podia suscitar o enlace, ocorre algo inesperado. Majnun, que aguarda Layla sob uma palmeira, ardendo de amor e desejo, espera o sinal positivo do velho, que ficou de indicar para Layla o momento oportuno. Por sua vez, Layla não deu conta de avançar rumo ao amado querido. Ela ficou paralisada, e seu corpo inteiro tremia, como se ela estivesse profundamente enferma. Ao tentar conduzi-la com o braço em direção ao amado, ela recuou, com cortesia, e disse:
“Nobre senhor, nem tão longe, mas nem tão perto. Agora sou igual a uma vela ardente; um passo mais perto do fogo e eu serei consumida completamente. A proximidade traz o desastre, pois os amantes só estão seguros separados” .
Um texto que escrevi, ao preparar a aula, serviu de ponto de arranque para a reflexão. Ele se inicia com um poema de Drummond, Mineração do Outro, publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo, em julho de 1959, e apareceu no livro “Lição de coisas” (1962).
Mineração do Outro
“Os cabelos ocultam a verdade.
Como saber, como gerir um corpo
alheio?
Os dias consumidos em sua lavra
significam o mesmo que estar morto.
Não o decifras, não, ao peito oferto,
mostruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.
Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.
Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e, dor agora, é vício.
O corpo em si, mistério: o nu, cortina
de outro corpo, jamais apreendido,
assim como a palavra esconde outra
voz, prima e vera, ausente de sentido.
Amor é compromisso
com algo mais terrível do que amor?
— pergunta o amante curvo à noite cega,
e nada lhe responde, ante a magia:
arder a salamandra em chama fria” .
Sem dúvida, estamos diante de um poema complexo e de riqueza singular. Um grau de dificuldade que nos faz lembrar outro poema enigmático de Drummond, chamado Áporo, que foi desvendado por Davi Arrigucci Jr no livro Coração Partido. Para Arrigucci, esse poema de Drummond é um dos que mais se destaca em sua obra, tratando o tema do amor. Ele revela “um momento a uma só vez ímpar e irradiante, pela alta complexidade, pela firmeza com que enfrenta o difícil, pela luz que lança nos demais que tratam do mesmo tema” .
O poema de Drummond é um instrumento fértil e seguro para a compreensão do enigma do outro, ajudando-nos a mergulhar no oceano inatingível da alteridade. A poeta e romancista, Lia Luft, expressou com clareza esse traço em reflexão no livro, Mar de dentro. Na sua visão, que concordo, há um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”. A poesia de Drummond toca em pontos de sintonia com Lia Luft:
“Os cabelos ocultam a verdade.
Como saber, como gerir um corpo
alheio?”
“Não o decifras, não, ao peito oferto,
mostruário de fomes enredadas,
ávidas de agressão, dormindo em concha.”
“e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando”
“O corpo em si, mistério: o nu, cortina
de outro corpo, jamais apreendido”
Temos aqui vários indícios de uma “incomunicabilidade” com o universo daquele que está diante de nós. O outro é sempre “alheio”, estranho, estrangeiro. Lembrei-me aqui de uma reflexão profunda de Alain Montandon no “Livro da Hospitalidade”. Ele aborda o tema da “hospitalidade”. Sublinha que o hóspede é sempre um estranho. A complexa relação com o outro que nos visita começa já no início: “naquela soleira, naquela porta à qual se bate e que vai se abrir para um rosto desconhecido”. Diz o filósofo que o “território do outro” vem sempre resguardado por uma “sensibilidade escrupulosa”. Sem dúvida: devemos “bater devagar”, com cuidado e fineza na porta do outro. A hospitalidade jamais quebra a distância, que permanece acesa.
O trabalho do amor é complexo, sutil, delicado, desafiador. Ele pressupõe uma disponibilidade de avançar no universo do desconhecido. Há, como lembra Arrigucci, o empenho de “escavar”. Escavar de forma semelhante ao inseto no poema “Áporo” (1945), que “cava, sem alarme, perfurando a terra”, mas que se defronta com um “país bloqueado”, ou com o “enlace da noite”.
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Adentrando-me no poema de Drummond, Mineração do Outro, vejo que há, de fato um mistério indecifrável na experiência do "peito oferto". Quando nos "ofertamos" ao outro, sabemos, desde o início, que ele jamais será decifrado; esse outro que vem animado por um complexo "mostruário de fomes enredadas". E... curioso, suas fomes estão "ávidas de agressão", e ele dorme "em concha". E apesar de todos os abraços, de nosso movimento que convida, permanece acesa a "a teia de problemas", que não é qualquer oferta que consegue solucionar.
Em sua lúcida reflexão, Arrigucci relaciona o trabalho do amor ao empenho de escavar, visando uma decifração possível. Ele vê no poema de Drummond, o anseio por penetrar “através de barreiras da terra, do corpo e da própria linguagem até o limite do indizível, quando, reproduzindo a situação dramática do amante diante da noite, seu discurso se converte em imagem” . Como aponta Arrigucci, na visão de Drummond o amor não é algo cordato, mas contrariado. O poeta quer, antes de tudo, inquirir a qualquer custo para debruçar-se no enigma. E ele recorre à imagem que também está no poema Áporo, que fala em cavar e perfurar a terra, visando desvendar o labirinto:
“O amor é então aqui mineral; é físico, mas também metafísico, pois corresponde ao desejo de ir além da matéria em que penetra, na busca vã da alteridade em que mais se fragmenta e aniquila do que se reúne ao que já de antemão era perdido” .
Daí o recurso à bela imagem da mineração do outro, que invoca o “movimento inquiridor e sofrido a caminho do objeto fugidio que o atrai e impede de passar, mantendo-o cativo do mágico fascínio que se enreda e perde o próprio pensamento”
Nesse itinerário em direção ao outro, ocorre também um trabalho do mundo interior. Não há dúvida. Somos trabalhados em nossa interioridade nessa difícil viagem rumo ao mistério do outro. Daí a imagem feliz da "mineração". Meditar sobre o amor, como mostra Arrigucci, é também meditar sobre "a história da relação humana dos seres que o vivem". É árduo o trabalho de ir além do que está aí, presente na matéria:
"O esforço de minerar até o derradeiro obstáculo que se antepõe a quem ama e quer saber pode chegar a diversas consequências: a inacessível transcendência da mineração por mais que se aprofunde; o dilaceramento patético que vivem os amantes; a inevitabilidade terrível que acompanha seu percurso com o risco do trágico; o caráter incognoscível extremo daquilo mesmo que nos atrai com o fascínio do inexplicável" .
Toda essa reflexão é de uma profundidade singular, que merece de nossa parte um meditar demorado. Não há como responder a isso, mas fazer como aconselha Rilke em suas “Cartas a um jovem poeta”. Há que ruminar, primeiro, as perguntas, em profundidade, de forma que elas possam viver em nós. E talvez, quem sabe, mais distante, conseguiremos encontrar uma resposta plausível. Trata-se de algo que envolve um caminho da vida interior, que requer paciência.
Rilke diz ainda que o amor é, radicalmente, "solidão". E ele tem razão. Diz ele que o amor não é antes de tudo o entregar-se, o confundir-se com outra pessoa. Isso não é possível. O amor é, melhor, uma ocasião bonita para o amadurecimento pessoal. Os amantes, como todos em geral, estão inseridos num mundo que é limitado, frágil, vulnerável. Trata-se, como diz Rilke na segunda elegia de Duíno, de um universo de contingência:
"E aqueles que são belos, oh, quem os deteria? A aparência transita sem descanso em seu rosto e se dissipa. Tal o orvalho da manhã e o calor do alimento, o que é nosso flutua e desaparece" .
Rilke desvela, com pasma lucidez os traços da temporalidade “que corrói todos os esforços humanos de realização e plenitude ontológicas”. Nada escapa à dinâmica do tempo, nem os impulsos do coração, os estases e a beleza. A verdade mais dura é a de que "nós passamos", e as árvores permanecem.
Pobres amantes, diz Rilke. São marcados por uma sede insaciável, são movidos pelo movimento irrefreado do gozo, que, também é contingente. Nessa busca do ápice do prazer, lembra Rilke, chega um momento em que um dos dois diz: basta! Os amantes não dão conta de um gozo abissal, e retornam à realidade cotidiana. É impossível estar diante do mundo aberto e transparente. Não há como se "dissolver" no mundo do outro. Os místicos mesmo tentaram isso, sem sucesso. Mesmo os mais ousados, como os sufis, perceberam a impossibilidade do passo unitivo. Quando o amante pousa seu lábio no outro, buscando o vinho mais límpido, acaba retornando, sem sucesso, pois não é possível reter uma "duração pura". Nenhum amplexo é capaz de oferecer eternidade.