09 Setembro 2024
"A palavra de uma só mulher não basta para se contrapor aos argumentos de homem acusado mas se faz necessária a voz de 100 mulheres 'para que a sociedade possa, enfim, condenar um homem conhecido'. A partir do momento em que a palavra da vítima conseguir ser assimilada 'como prova pela opinião pública', aí, sim, os homens estarão mais vulneráveis frente a novas e corajosas falas de outras vítimas", escreve Faustino Teixeira, em comentário postado no Facebook e enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Estou aqui impressionado, desde que o ministro dos direitos humanos foi exonerado. O que vemos circular nas redes e nos meios de comunicação são narrativas profundamente contrastantes. Meu pasmo ainda maior é poder observar a fragilidade presente em argumentos vindos da esquerda progressista, que, na verdade, buscam, salvaguardar o ministro exonerado e criticar a postura assumida pela ministra Anielle Franco.
Num dos artigos, a meu ver, mais sóbrios sobre o que ocorreu, de autoria de Maristela Barrenco Corrêa de Melo, professora da UFF (e ex-aluna de teologia do Instituto Francisco de Petrópolis), questões fundamentais foram colocadas. O texto é, na verdade, uma “carta de amor aos que militam por outros mundos”.
Maristela, como todos nós, faz menção ao tempo de dor que se seguiu às revelações feitas sobre o ministro dos direitos humanos. Sublinha, com razão, que o que ocorreu fez brotar algo que está no submundo de cada um. Ela fala em “campo submerso da vida, invisível, micropolítico, cotidiano, coletivo”. A emergência desse campo submerso, diz ela, veio bagunçar tudo. Também concordo.
E por que veio balançar tudo? Porque as coisas nesse campo não ocorrem normalmente assim... Há sempre muros a proteger os autores de atos semelhantes, nas sociedades e nas igrejas... Em torno de tais questões o que vige é um “pacto de silêncio”, diz a autora:
“Quase ninguém fala dele. Nem as escolas e nem as igrejas. Os manicômios, antigos, foram palco dessa trama. Mas a vida mostra que ele é determinante. Pode vir o ideário que for, os grandes projetos, os discursos ilibados, assim como as promessas, mas é só desequilibrar e abrir as portas dos porões, que predomina a escuridão, e as microrrelações cotidianas são inundadas com as águas que estão a putrefar, escondidas pelos nossos ativismos externos”.
Maristela sublinha que quando acontece um escândalo segue-se, em geral, uma “catarse de livramento”, como num rito de purificação, onde “no fundo, cada um de nós luta diária e silenciosamente contra um tipo de monstro e inferno. São monstros que nos habitam, reitera a autora.
Isso me faz lembrar do Grande Sertão Veredas, e a fala de Riobaldo apontando a grande ambiguidade que habita o ser humano. Não há só bondade no íntimo de cada um, a “vozinha do bem”, mas também o “vapor do mal”. Na visão de Riobaldo, o demo está “misturado em tudo”. Na verdade, “quase todo mais grave criminoso feroz sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus amigos!” (Grande Sertão Veredas).
Para salvaguardar um ideário, “sacrifica-se o humano”, pontua Maristela. Os ideários são também feitos “de carne e osso”, lembremo-nos disso. E a posição da autora é firme em defesa de Anielle, e lembra que a ministra precisará de apoio, pois logo virão acusações diversificadas contra ela, inclusive de que estaria sabotando “o ideário dos direitos humanos, ou o governo Lula”. E arremata: “Claro que um ser humano, no caso, o ministro, não é responsável pela violência do patriarcado. Mas também precisa entender que não há poder e nem doutoramento crítico que nos torne imunes. Não há linha abissal que nos imunize de nossas contradições”.
Para Maristela, as “narrativas ideológicas de esquerda não estão imunes a formas de captura”. Concordo plenamente. E há que saber enfrentar a questão com coragem e honradez, e entender que a tomada de decisão de Lula em favor da exoneração do ministro pode “ser húmus para um novo humano”.
Em linha semelhante de reflexão estão dois textos publicados pela colunista da UOL, Milly Lacombe, com datas de 06 e 07 de setembro de 2024. No texto de 06/07, com o título, “Para a esquerda trata-se de uma crise com inédito potencial de catástrofe”, a colunista assinala que a notícia da exoneração do ministro exerceu sobre a esquerda um impacto semelhante a um tsunami, provocando desolação em muita gente. E pela simples razão de Silvio Almeida ser uma “unanimidade intelectual” e uma potente voz na defesa dos direitos humanos e na luta contra o racismo.
O ocorrido ganha uma dimensão de complexidade em razão de colocar em cena o “fator gênero”. As acusações contra o ministro podem ter partido, diz a colunista, do Ministério da Igualdade Racial, comandado por uma feminista, que também denunciou o caso. Como mostrou Lacombe, o ocorrido é um prato feito para a direita, que se regozija, sobretudo face à demora da ação do governo, diante de algo que já era objeto de conhecimento em âmbito interno.
O mais triste nisso tudo é que a ministra que fez a denúncia, em vez de celebrada, está sendo alvo de violentas críticas e cobranças, tanto dos segmentos da direita como da esquerda. Para Lacombe, isto sinaliza que “o machismo opera livre pelo interior de todas as ideologias”. A questão é séria e não há como desviar os olhos ou fugir “do debate de gênero sem ser capaz de atravessá-lo com as questões de raça”.
Como exemplo de uma narrativa distinta destas duas colocadas, temos o texto de Palas Atena, publicado no portal da Viramundo (07/09/2024), com o título, “Não me levem a mal”. O texto em questão traduz um posicionamento bem tradicional na esquerda, que defende, a todo custo, uma estratégia que garanta a governabilidade. O texto descreve duas estratégias diferentes para lidar com questões polêmicas.
A primeira, de Haddad, que defende uma posição que busca lidar internamente com o problema, evitando sua irradiação externa. É um caminho de calibrar a estratégia, evitando desgastes para a governabilidade; a segunda, que é a posição tomada pela ministra Anielle Franco, coloca a questão de forma aberta na mesa. No texto de Palas Atena, defende-se que a ministra, em razão de seu papel social, não teve um adequado posicionamento, tendo inclusive, segundo o texto, recorrido a uma ONG “para lá de suspeita” (sic!).
No texto assinado por Carol Proner e divulgado nas redes, o posicionamento assumido foi também de resguardar uma postura estratégica. Seus argumentos foram todos no sentido de não pré-julgar ninguém antecipadamente, evitando precipitações ou conclusões apressadas, de forma a garantir a estabilidade política. Trata-se de um texto bem na linha do posicionamento tradicional em curso em segmentos da esquerda.
No segundo texto de Milly Lacombe, “O perigo de acreditar na palavra da vítima”, datado de 07/09/2024, a colunista sublinha que os crimes sexuais escapam muitas vezes do julgamento efetivo em razão de carência de testemunhas ou materialidade. São crimes que acontecem no “subsolo”, “nas sombras. Nos cantos. Debaixo das mesas, numa sala trancada, no banheiro vazio, nas nossas camas enquanto dormimos”.
A autora fala da coragem da ministra em alçar sua voz, mesmo sabendo de todas as possíveis consequências. Sublinha que quando as mulheres tomam semelhante decisão isto ocorre como canal essencial para a ruptura do lugar em que o patriarcado colocou as mulheres.
Os abusadores, lembra a autora, estão todos por perto: “estão por aí. São caras legais, simpáticos, que fazem sucesso e são admirados”. E em seu meio há também os letrados e doutores, dotados de inteligência brilhante mas com o corpo adoecido... Não há como entender, diz Lacombe, como os acusados conseguem muitas vezes sair ilesos, levando na sequência uma vida tranquila.
A palavra de uma só mulher não basta para se contrapor aos argumentos de homem acusado, lembra Lacombe, mas se faz necessária a voz de 100 mulheres “para que a sociedade possa, enfim, condenar um homem conhecido”. Lembra ainda a autora que a partir do momento em que a palavra da vítima conseguir ser assimilada “como prova pela opinião pública”, aí, sim, os homens estarão mais vulneráveis frente a novas e corajosas falas de outras vítimas.
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O choque das narrativas: o caso da exoneração do ministro. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU