23 Outubro 2024
Os antropólogos começaram a despertar sua atenção para o mundo das árvores, em sintonia com o grande mestre Dogen, para o qual a incapacidade de perceber o movimento das árvores denunciava a nossa dificuldade de perceber os nossos próprios movimentos. Eduardo Kohn dedicou o seu trabalho a captar o mundo das florestas, e vislumbrar uma antropologia para além dos humanos.
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, 22-10-2024.
Impactado com o final da leitura do livro Han Kang, A vegetariana. Após sua leitura, busco refletir com calma, nessa manhã chuvosa de sábado – 19/10/2024, sobre esse impressionante movimento na literatura de nosso tempo em torno da questão animal e vegetal. Vejo com cada vez mais clareza, que esse movimento traduz algo de um alerta para nós humanos. É só passar os olhos em algumas obras para captar essa convocação, que identifico como um grito contra a dinâmica desse homem-humano e a convocação para uma nova reverência.
Começamos com Guimarães Rosa:
“O diabo não há! E o que eu digo, se for... Existe é homem humano”.
Sim, um complexo e violento homem humano.
Como diz Adriana Lisboa, o que vemos ao nosso lado são os “homens perfilados, abençoados pelo diabo”.
E esse homem-humano, se diverte em maltratar os outros, e também os outros animais, que sonham:
“Quando o porco morrer
o seu espírito
subirá aos melhores galhos
onde douram excelentes maçãs
jogará bola
com meninos e cachorros
ouvirá a cantiga na voz da mãe que o
alimentou” (Adriana Lisboa)
Assim também, a cachorra Baleia, sonhou com um mundo diferente, “cheio de preás, gordos, enormes”.
Quando lemos sobre os animais na literatura, observamos como eles são dotados de pureza, de alegria e gratuidade. O animal é espontâneo e tem diante de si o Aberto, como recorda Rilke. Diante de si tem simplesmente “Deus e quando se move é para a eternidade”. O animal é como a água da fonte romana, que se derrama “sem nostalgia”, inserido no tempo com a grandeza dos puros. Não sem razão Clarice manifestou mais de uma vez a vontade de ser bicho. Estaria, assim, num horizonte diverso, bem menos complicado...
Na ida para o interior, Tereza e Tomas – personagens da Insustentável leveza do ser – encontraram um mundo diferente, marcado por simplicidade e alegria. Ao lado deles estava a cachorrinha Karenin, de pureza única. Não sem razão, Tereza refletia sobre a “falência da humanidade” e via em Karenin os traços da verdadeira bondade. Ela sinaliza que “o cão jamais foi expulso do paraíso”, e que seu modo de amar é todo envolvido por gratuidade, sem necessidade de reciprocidade. Ele ama como ama. Ele simplesmente está aí, com seu amor, sem visar nenhuma reivindicação.
Vemos igualmente em Flush de Virginia Woolf, um cão marcado por alegria e gratuidade. É encantador acompanhá-lo na festa que faz na Itália, tomado pelas cores de todos os odores. O amor para ele era sobretudo cheiro, e cheiro tomado pela mais alta dose de diversidade, bem diferente dos humanos, mesmo dos poetas, que só conseguem captar o cheiro da rosa ou do estrume. Flush é capaz de conhecer aquilo que os homens nunca conseguirão: “o amor puro, o amor simples, o amor inteiro; o amor que não deixa nenhum rastro de preocupações”.
O poeta brasileiro, Leonardo Froes, deixou o Rio e foi para o meio do mato, em Petrópolis, e ali vem redescobrindo novas teias de relação, uma beleza singular que jamais encontrara antes. Ali pode fazer jorrar uma poesia livre de injunções e colada no mundo real da natureza:
“Quando eu me largo, porque achei
no animal que observo atentamente
um objeto mais interessante de estudo
do que eu e minhas mazelas ou
imoderadas alegrias;
e largando de lado, no processo,
todo e qualquer vestígio de quem sou...”
Naquela neblina nas redondezas de Petrópolis, Froes se vê envolvido e aconchegado: os “braços da neblina, com seus longos fiapos” o contornam, e ele pode então sentir seus toques de carícia, que se solidificam em seus ombros. Como ele diz: “Ela é o real que me estreita em seus domínios e o real que liberta”.
Um semelhante sentimento de integração vem expresso por outro poeta que admiro, Renato Rezende. Em certo poema, ele fala de seu anseio por nadar nu, num lago que habita o seu interior. Trata-se de um lago que está em águas “para além da mente”. Nas águas douradas e azuis desse lago, ele se torna puro e um. E recorda:
“Me lembro de uma vez estar ao lado de um lago e sentir desejo de ser ele. Me lembro de sentir-me excluído da natureza”. ”
Essa dura convicção, faz povoar no poeta o “anseio pelas verdadeiras águas”.
Também Octavio Paz, no Arco e a Lira, nos lembra da possibilidade de uma integração real com a natureza, para além do espanto inicial. Isto pode ocorrer se favorecermos a prolongação da contemplação e a ruptura da barreira do pânico diante do que era visto antes como separado e exterior. E Paz expressa o que o novo olhar possibilita:
“O ritmo do mar se adapta ao compasso do nosso sangue; o silêncio das pedras é o nosso próprio silêncio; andar nas areias é caminhar pela extensão da nossa consciência, ilimitada como elas; os sons do bosque nos aludem. Todos nós fazemos parte de tudo. O ser emerge do nada. Um mesmo ritmo nos move, um mesmo silêncio nos rodeia”.
Como diz Ailton Krenak, o “sagrado pode ser tudo aquilo que botamos os olhos”. Carregamos conosco toda a beleza do mundo natural, onde quer que estejamos. E nos lembra:
A natureza “existe em cada uma das células do meu corpo. Ela existe em cada um dos pequenos, no ar que eu respiro, naquelas plantinhas que estão ali no quintal, na chuva que cai, nos raios de sol que atravessam todos esses concretos e cimentos e passam por esse buraquinho da janela aqui”.
A verdadeira ecologia, como diz Kopenawa na Queda do céu, não é algo exterior a nós, e não é também o que os “brancos” escrevem a respeito. “Na floresta – diz Kopenawa – a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol. É tudo que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo que ainda não tem cerca”.
A poesia, desperta por esse chamado, convoca-nos a um novo jeito de ser, como lembra Adriana Lisboa:
“Escuta o vento falar do vento o vento debater com o vento o destino do vento”.
Adriana fala ainda em devolver a poesia aos répteis:
“Se houver tempo
Devolve a poesia aos répteis
Deixa que ela se estenda ao sol
E enfie os pulmões sob as costelas
Rústica. algo quebradiça (...).
devolve o humano ao
seu um tanto quanto
ave réptil anfíbio”.
Esse chamado, que é ancestral, foi percebido com muita clareza por Clarice Lispector. O chamado do neutro. Atender a tal chamado exige “juntar sílabas desconexas”. Sem dúvida, o tornar-se humano foi a dura herança da expulsão do paraíso. Mas ainda é possível ouvir o chamado, como ocorreu no romance de Clarice:
“Como se uma mulher tranquila tivesse simplesmente sido chamada e tranquilamente largasse o bordado na cadeira, se erguesse, e sem uma palavra – abandonando sua vida, renegando bordado, amor e alma já feita – sem uma palavra essa mulher se pusesse calmamente de quatro, começasse a engatinhar e a se arrastar com olhos brilhantes e tranquilos: é que a vida anterior a reclamara, e ela fora”.
Os antropólogos começaram a despertar sua atenção para o mundo das árvores, em sintonia com o grande mestre Dogen, para o qual a incapacidade de perceber o movimento das árvores denunciava a nossa dificuldade de perceber os nossos próprios movimentos. Eduardo Kohn dedicou o seu trabalho a captar o mundo das florestas, e vislumbrar uma antropologia para além dos humanos.
No Brasil, o grande poeta, Manuel de Barros, já estava imbuído desse sentimento de integração profunda, e diz no Livro das ignorânças:
“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde, no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca,
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
Sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores”.
Tudo isso ocorreu com a personagem Yeonghye, no livro A vegetariana, depois que foi envolvida por um sonho. Mudou radicalmente de vida, contrariando profundamente aos que estavam “na sala de jantar”. Forjou toda uma luta para atravessar as fronteira do humano (doentio). Foi tomada pela loucura de se tornar uma árvore e se alimentar como ela apenas pelos raios de sol, como na fotossíntese. Rompeu com todos os esquemas, foi internada como louca. Ela fugiu do hospício e foi para a floresta, ficar junto às árvores, porque escutou um chamado... Como diz a narradora do livro:
“Estava quase entrando na terra ... derretida pela chuva... Completamente derretida”. Para ela, era o único modo para nascer de novo, e de cabeça para baixo.
Yeonghye deixou-se tomar pela viva percepção de que era parte da floresta:
“Brotaram de fato caules pretos e fortes de seu corpo e raízes brancas de suas mãos, agarradas ao solo escuro? Será que suas pernas se esticariam rumo ao céu e os braços, ao núcleo da Terra? Teria aguentado ter a cintura puxada pelos dois polos extremos? Quando a luz descesse do céu e a atravessasse e a água emanada da terra a molhasse, nasceria mesmo uma flor de seu pubis? Flores nasceriam de sua pele? Será que aconteciam todas essas coisas com sua alma quando ela punha o corpo de cabeça para baixo?”
Tudo... tudo isso passou-me pela cabeça depois que terminei, pasmo, a leitura desse livro da prêmio nobel de literatura, Han Kang. Temos aí um belo convite para a reflexão.
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“Fui para lá porque escutei um chamado”. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU