21 Março 2025
O Papa Francisco, que recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade do ex-presidente Joe Biden alguns dias antes do fim de seu governo em janeiro, enviou o prêmio para a Catedral de Buenos Aires, onde foi recebido oficialmente com uma missa especial em 13 de março e agora será exibido em um museu.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 19-03-2025.
Ainda que as razões de Biden para homenagear o papa tenham sido de cunho humanitário — ele mencionou em conversa anterior com Francisco sua gratidão pelo trabalho do pontífice para aliviar o sofrimento global, em defesa dos direitos humanos e da liberdade religiosa —, a política pode ter tido um papel relevante para ambos em relação à medalha, em um momento em que seus países são governados por Donald Trump e Javier Milei.
A mais importante distinção concedida a civis pelo governo federal dos EUA, a Medalha da Liberdade havia sido concedida a um pontífice apenas uma vez, quando o ex-presidente George W. Bush a deu ao Papa João Paulo II em 2004.
Em 20 de dezembro, Biden e Francisco conversaram por telefone sobre uma série de assuntos, especialmente direitos humanos. O papa demonstrou suas preocupações sobre prisioneiros que estavam no corredor da morte em instalações penais federais nos EUA. Biden havia decidido comutar as sentenças de 37 presos de pena de morte para prisão perpétua, algo que foi anunciado em 23 de dezembro.
Os dois líderes deveriam ter se encontrado no Vaticano em 10 de janeiro, mas os incêndios na Califórnia levaram Biden a cancelar a visita. No dia seguinte, ele disse a Francisco durante uma conversa telefônica que lhe daria a distinção. Ele a entregou ao núncio apostólico nos EUA, dom Christoph Pierre.
Em uma declaração sobre a homenagem, a Casa Branca citou o cuidado do Papa com as crianças, seu convite para lutar pela paz e proteger o planeta, e seus esforços inter-religiosos. A cerimônia de recebimento da medalha em Buenos Aires ocorreu no dia que marcou o 12º aniversário da eleição pontifícia do Cardeal Jorge Mario Bergoglio.
Coincidentemente, isso aconteceu apenas um dia depois de um protesto massivo de aposentados contra o ajuste insuficiente de suas pensões pelo governo de Milei ter sido recebido com feroz repressão pela polícia, com mais de cem pessoas detidas e dezenas de manifestantes feridos. Até mesmo um padre, o Pe. Francisco Olvera, foi agredido e ameaçado por agentes.
Se Biden e Trump apresentam visões de mundo irreconciliáveis e tiveram inúmeras ocasiões para demonstrá-lo, Francisco e Milei podem estar ainda mais distantes quando se trata de ideias sociais e políticas. Enquanto o pontífice sempre defendeu políticas de bem-estar para os pobres, a plataforma do líder ultralibertário é totalmente baseada na ideia de reduzir o tamanho e os gastos do Estado. Milei não apenas criticou, mas também insultou Francisco em várias ocasiões por suas divergências ao longo dos últimos anos.
A entrega do prêmio de Biden ao papa e a exibição dele na Argentina são gestos simbólicos dessas discrepâncias, segundo analistas. “O momento da decisão do presidente Biden de conceder a medalha ao Papa Francisco em janeiro de 2025, após perder a eleição para Donald Trump, inegavelmente carrega um significado político”, disse Andrew Chesnut, professor de estudos religiosos na Virginia Commonwealth University, ao Crux.
Em sua opinião, “ao conceder a medalha nos últimos dias de seu governo, Biden estava sinalizando resistência à mudança política para a direita, reafirmando o alinhamento de sua administração com a visão moral progressista de Francisco por sociedades mais justas e equitativas”.
“Ao contrário da mesma medalha concedida por George W. Bush a João Paulo II em 2004 – enraizada em valores conservadores compartilhados –, o reconhecimento de Biden ao pontífice argentino destaca seu compromisso mútuo com a ação climática, justiça social e sociedades mais inclusivas e equitativas, todas áreas em que o papa entra em conflito com a agenda de Trump”, continuou ele.
Segundo Carlos Custer, líder sindical argentino que foi embaixador do país sul-americano na Santa Sé entre 2003 e 2008, o pontífice tem se preocupado com a ascensão de uma “direita neoliberal que assumiu tons fascistas em alguns países, grupos que atacam os direitos sociais e a ideia de convivência”.
“As políticas de Trump não têm nada a ver com as ideias de Francisco. Apesar de algumas diferenças entre o papa e Biden – especialmente quando se trata de guerra –, acho que eles têm mais coisas em comum”, disse Custer ao Crux. “O fato de Biden ter dado aquela medalha ao papa significa que muitos nos EUA pensam como ele”.
Enviar a medalha para a Catedral de Buenos Aires também é um gesto político de Francisco, considerando que Milei e Trump têm uma relação próxima e compartilham muitas ideias políticas.
“É claro que isso pode ser visto como uma forma da Igreja mostrar sua inconformidade com as decisões de Milei”, disse Fortunato Mallimaci, especialista em religião e professor da Universidade de Buenos Aires, ao Crux.
Mas a sociedade precisa ver isso para fazer disso um gesto político, ele acrescentou. Neste ponto, os argentinos estão se concentrando muito mais em suas batalhas políticas e suas dificuldades financeiras.
“Alguém na oposição pode selecionar esse fato e explorá-lo politicamente. Mas isso ainda não foi feito”, disse Mallimaci.