20 Março 2025
"Eles nos traíram, por isso não há mais a mobilização que havia antes. Porque os rapazes não sabem mais pelo que estão lutando, se para defender as fronteiras da Ucrânia ou para garantir que Putin consiga o que quer de qualquer maneira", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 18-03-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entre as pernas e a vida, Yevgeny Shlepanov escolheu a vida. Quando foi transferido para o hospital em Zaporizhia após sua unidade ter sido atingida por um drone, Yevgeny foi abordado por um cirurgião que lhe disse: “Suas pernas estão em mau estado, podemos cortar as duas e garantir que você viverá, ou esperar e ver se podemos salvar pelo menos uma delas, mas não garanto que você conseguirá sobreviver”. Assim, Yevgeny, que havia esperado nove horas antes de ser transferido para um hospital, optou por não arriscar e concordou com a dupla amputação.
Era o outono de 2023 e a unidade de assalto de Yevgeny estava baseada na região de Zaporizhia. Em uma manhã, receberam ordens para avançar em direção às posições russas. Enquanto avançavam, ele ouviu o som de um drone acima deles, voando de um lado para o outro.
Yevgeny deu ordens para que todos se jogassem no chão, esperaram alguns minutos até que o céu ficasse silencioso e em seguida deu a ordem para continuar. Depois de dez passos, Yevgeny olhou para cima e o drone estava lá novamente. Essa foi a última imagem da qual ele se lembra.
“Tudo em meus olhos ficou preto”, e a próxima imagem, depois que ele abriu os olhos de novo, foram suas pernas despedaçadas. Ele gritou 300, o código militar para anunciar que alguém estava ferido, e esperou por seus rapazes, que apertaram o torniquete em torno das duas coxas. A partir daí, começou o verdadeiro calvário, pois pode levar horas para evacuar os feridos graves da linha de frente enquanto as batalhas avançam e, durante os combates mais intensos, pode ser impossível evacuar os soldados feridos e prestar-lhes os cuidados necessários em tempo hábil.
E é nesse momento que se decide entre a vida e a morte. Entre a amputação e a possibilidade de salvar os membros.
Pois, embora os torniquetes ajudem a sobreviver a ferimentos graves, eles geralmente levam à amputação porque o tecido dos membros já está necrosado, pois foi privado da circulação sanguínea por horas. Yevgeny nunca perdeu a consciência durante todo o percurso: “Enquanto os rapazes me levavam embora, eu olhava para as minhas pernas: elas estavam ali, não importava o quanto estivessem destroçadas, mas estavam ali”, ele estava consciente mesmo quando soube que estavam comprometidas demais e decidiu que ambas deveriam ser cortadas.
Quando acordou, chorou muito, depois ligou para sua mãe, que ainda não sabia nada sobre o acidente. E depois para sua esposa.
Agora que já se passou mais de um ano, ele não perdeu a esperança na vida. Ele está em um centro de reabilitação em Dnipro, um dos centros de próteses mais avançados da Ucrânia. O diretor, Shtanko Alexey Igorevich, mostra os prédios que ampliarão as instalações nas próximas semanas. Duas alas para mais 50 vagas no primeiro andar e alguns quartos no térreo para as esposas e mães dos soldados. O trabalho do Dnipro Protez nos últimos dois anos e meio se multiplicou.
Os corredores estão lotados de jovens soldados com amputações múltiplas, estão lotadas as oficinas dos fabricantes de próteses, estão lotados os guichês de recepção. De acordo com o Ministério da Saúde da Ucrânia, pelo menos 50 mil pessoas perderam membros em três anos de guerra, entre soldados e civis. Os números estão se aproximando daqueles da Primeira Guerra Mundial (os historiadores estimam que cerca de 65.000 alemães e 40.000 britânicos sofreram amputações entre 1914 e 1918).
A maioria das pessoas que cruzam as portas do centro perdeu membros devido a minas terrestres, das quais até dois milhões ainda poderiam estar no solo ao longo de toda a linha do front. Mesmo que a guerra terminasse amanhã, o número de amputações continuaria a aumentar, porque as instituições ucranianas estimam que 40% do território poderia estar minado. Isso significa que, mesmo que um acordo para o fim das hostilidades seja assinado amanhã, o país está se preparando para normalizar a presença de dezenas de milhares de inválidos.
Os responsáveis pelo Dnipro Protez perceberam antes dos outros que os veteranos agora incapacitados deveriam ser reintegrados à sociedade, fazendo de sua experiência um ponto forte, e é por isso que, depois de terem sido pacientes, muitos deles começaram a trabalhar na estrutura. Serve para que os soldados não se sintam excluídos da sociedade e para que os recém-chegados do front sem pernas e braços sintam confiança.
Um dos protéticos é Oleksander Fedun. Ele perdeu as duas pernas quando sua unidade se perdeu em um campo minado em Zaporizhia.
Quando a guerra começou, Oleksander e seus amigos, todos muito jovens, entraram para as listas de voluntários. Ele também estava baseado em Zaporizhia quando um dia, às cinco horas da manhã, recebeu ordens para se deslocar com sua unidade em direção às posições russas.
Em seguida, a unidade perdeu o contato com a inteligência e, com isso, também as coordenadas exatas para a movimentação. O grupo seguiu às cegas até chegar a um campo minado e o veículo blindado saltou sobre uma mina antitanque.
Oleksander foi arrastado a pé por quatro quilômetros por seus companheiros até conseguirem colocá-lo em um veículo para levá-lo ao hospital mais próximo. Até mesmo para ele, naquele momento, haviam se passado horas demais.
Oleksander levou meses para aceitar o fato de que não tinha mais pernas. Desde o início da guerra, sabia que estaria arriscando a vida ao combater, mas, talvez para se proteger do medo, nunca quis pensar na possibilidade de ficar incapacitado. “Estou com 26 anos e hoje, quando penso no preço que paguei, fico com raiva, não tenho mais confiança. Onde estão hoje as filas daqueles que devem ir combater? Onde estão hoje os nossos aliados?”
Oleksander acha que, após os primeiros seis meses de guerra, os ucranianos foram enganados: “Eles nos traíram, por isso não há mais a mobilização que havia antes. Porque os rapazes não sabem mais pelo que estão lutando, se para defender as fronteiras da Ucrânia ou para garantir que Putin consiga o que quer de qualquer maneira”.
Hoje, Oleksander passa seus dias no centro, preferindo ficar em uma cadeira de rodas a usar as próteses nas pernas, com as quais ainda não está familiarizado. Com os recém-chegados, ele é sempre sorridente. No entanto, enquanto trabalha na oficina, seu olhar se turva. Entre os soldados que passaram pelo centro e receberam próteses, muitos tiveram que voltar ao combate apesar das amputações e com as próteses, devido à falta de homens.
Ontem, no corredor, estava Andrey, um jovem recém-chegado. Ele também não tem as duas pernas. Ele é natural de Mariupol e seus pais ainda estão lá desde a ocupação. Andrey não tem contato com sua família desde então. Ele não sabe se eles estão vivos ou mortos, eles não sabem que ele não tem mais pernas porque também lutou para que eles pudessem permanecer livres.