06 Março 2025
"Porque Sem chão não é um filme de guerra usual. O que sobressai do esforço notável que significou sua produção é, sobretudo, a amizade que pode aproximar um jovem jornalista e cineasta israelense descontente com os rumos ferozes do sio-nazismo de seu país", escreve Francisco Foot Hardman, em comentário publicado por A Terra é Redonda, 02-03-2025.
Francisco Foot Hardman é professor titular em Literatura e Outras Produções Culturais da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Minha China Tropical: crônicas de viagem (Unesp).
Porque uma coisa é certa: se você não tem mais o chão, agarre-se à vida. Esta é a maior lição de humanidade que nos passam as imagens desse filme quase impossível. Este é um filme de resistência, fazer cinema ali no cenário de um antigo conjunto de aldeias palestinas (Masafer Yatta), encravada no coração da Cisjordânia, só mesmo se agarrando à vida numa terra calcinada, invadida pelos tanques e soldados de Israel diuturnamente a serviço do sio-nazismo, por colonos judeus robotizados e violentos como os antigos e piores algozes do holocausto.
E, na dor maior da expulsão, das casas pobres e currais de ovelhas arrasados por retroescavadeiras a serviço do Mal, do extermínio de humanos e animais indistinguíveis, da derrubada de uma escola primária erguida como marco civilizatório de um povo que jamais fenece, restam, ainda, sinais de vida mais luminosos do que qualquer raio de bomba ou tiro: são aquelas faces belas de suas mulheres inquebrantáveis e os sorrisos de suas crianças sofridas que nos ficam, que teimam em ser registrados como testemunhos de que a Palestina vive e viverá até que a paz justa e seu direito àquela terra, já de há muito reconhecido e declarado, seja por todo o Mundo garantido.
Porque, se os Exterminadores do Presente – os sanguinários Benjamin Netanyahu e Donald Trump – querem matar e expulsar de Gaza até o último palestino, sempre haverá uma aldeia em Masafer Yatta a ressurgir das cinzas e do deserto de pedras e areias salpicadas de sangue, seja na Cisjordânia, seja na Gaza destruída, que relançará as vozes, os corpos, a arte e a língua do povo palestino para além das cavernas onde se escondem, para além das valas comuns onde aqueles assassinos os querem, para dizer a todos nós, aqui, do lado de cá das fronteiras do horror, que sempre haverá vida, memória e luta no renascimento de uma comunidade que nenhuma violência estatal será capaz de apagar do mapa.
Nem que a Google mude cinicamente o nome do mapa. Nem que os truculentos exterminadores do Presente, munidos das armas mais potentes, porém impotentes quanto ao destino da História, queiram continuar seu joguinho de assassinos baratos fantasiados de Xerifes do Mal, de Matraqueadores da Morte, de aluninhos nojentos de Adolf Hitler.
Porque Sem chão não é um filme de guerra usual. O que sobressai do esforço notável que significou sua produção é, sobretudo, a amizade que pode aproximar um jovem jornalista e cineasta israelense descontente com os rumos ferozes do sio-nazismo de seu país (Yuval Abraham) de um jovem ativista palestino morador de Masafer Yatta (Basel Adra), que desde a infância aprendeu, com seu pai e outras pessoas da comunidade, que era preciso resistir à truculência genocida e neocolonialista dos invasores da Cisjordânia.
Aos dois diretores-protagonistas se juntaram, num entrosamento brilhante, a jovem fotógrafa e cineasta israelense Rachel Szor e o fotógrafo-cineasta palestino Hamdan Ballal. Filmado ao longo de quase 5 anos, entre 2019 e 2023, e reportando imagens antigas gravadas por Basel Adra e família, há muito tempo, o filme que nos chegou, filmado e editado a duríssimas penas, é um portento da arte cinematográfica e da resistência histórica de um povo.
Contando com apoio, na produção, da Noruega, além de aportes significativos do Sundance Festival, No Other Land (cuja tradução mais literal é: “Nenhuma outra terra”, mas cujo título de lançamento no Brasil é: Sem Chão) é um dos cinco finalistas do atual Oscar na categoria de documentários de longa-metragem. A julgar pelas operações de boicote à sua distribuição na Europa, bem como em grandes circuitos de exibição nos EUA, parece que terá poucas chances na premiação midiática desse final de semana (*).
Entretanto, as qualidades excepcionais de sua feitura e edição já vêm obtendo uma trilha significativa de sucesso e reconhecimento. Foi destaque na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2024. E já colecionou dezenas de prêmios e menções elogiosas em festivais independentes por todo o mundo, incluindo, também, revistas e jornalistas do ramo. Entre tantas distinções, lembremos a de Melhor Documentário no Festival de Berlim, há cerca de um ano.
No Brasil, esperamos que esse filme seja visto, debatido e lembrado por muita gente. E, em São Paulo, onde vive uma comunidade palestina numerosa, certamente haverá espaço e interesse para a projeção de Sem chão em vários locais, centros e eventos, a começar do novo e muito bem-vindo Centro de Estudos Palestinos (CEPal) da FFLCH-USP. Quando de sua abertura, em outubro de 2024, tivemos a presença, entre tantas vozes aliadas de uma causa que é de toda a humanidade, do ex-ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina, Atef Abu Saif, sobrevivente do massacre de Gaza e autor de um relato contundente, também traduzido e publicado no Brasil, Quero estar acordado quando morrer (Ed. Elefante). Em sua intervenção, enfatizou o seguinte: “A guerra lançada contra a Palestina é uma guerra contra nossa memória, nossa cultura, nossa narrativa dos fatos e acontecimentos. O papel do ministro da Cultura é preservar essa memória e manter tais narrativas. A cultura é a linha de frente principal para defender a causa nacional, no nosso caso.” [1]
As imagens e narrativas de Sem chão fazem-nos pensar, para além do vale de lágrimas e poeira de Masafer Yatta, nas vidas que dali ressurgem, ainda mais fortes, ainda mais belas, ainda mais lúcidas. Porque, se você não assistiu a essa pequena obra-prima de arte e resistência, corra agora e assista. E junte-se a esse povo antigo e perene. Que não nos suplica nenhuma arma. Apenas a solidária compreensão de que sua humanidade é a nossa, e é assim que sua história pode ser contada, vivida e compartilhada por todas as culturas dignas de ainda habitar este planeta.
[1] Reproduzida de entrevista do autor a Karolina Monte em: “ ‘A guerra em Gaza é uma guerra contra a memória palestina’, diz escritor e sobrevivente em Gaza Atef Abu Saif”, Brasil de Fato, 20/10/2024. Disponível aqui.
* O documentário 'No Other Land" (Sem chão, em português) recebeu o Oscar 2025 de Melhor Documentário. O documentário continua em cartaz no Centro de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre.