24 Janeiro 2025
“Hoje, a esquerda perdeu esse princípio da esperança, majoritariamente, no mundo. A esquerda hoje ganha as eleições para consertar o estrago que a direita e a extrema direita fazem para consertar o capitalismo. A esquerda desaprendeu a ter ações práticas anticapitalistas, e isso afeta também os sindicatos”. A fala feita pelo sociólogo e pesquisador do mundo do trabalho, Ricardo Antunes, sintetiza a crise pela qual passa a esquerda de forma global. Em tempos em que o capitalismo apresenta uma de suas eras mais perversas, com o advento do Século XXI, prevalece o ideário neoliberal, a ideologia que promove o individualismo e a destruição de direitos sociais e da natureza.
A entrevista é de André Lobão, publicada por Revista Fórum, 22-01-2025.
O fim da União Soviética, em 1991, e o surgimento da internet para as massas potencializaram ao extremo a ideologia liberal, propiciando uma crise nas estruturas do mundo do trabalho, partidos políticos de esquerda e nos sindicatos. O que se vê hoje é uma realidade de ascensão de ideologias que absurdamente ressurgiram para eliminar os direitos civis e trabalhistas, como acontece agora com a extrema direita, na nova ascensão de Trump ao poder nos EUA.
Neste contexto, o capitalismo vive uma tão propalada crise administrada para que as burguesias possam continuar a garantir seus ganhos, em um mundo gerido nas Tecnologias da Informação. A foto dos “senhores do apocalipse digital”, Elon Musk (X), Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Sam Altman (Open AI) e Shou Zi Chew (TikTok), os donos e chefões das big techs, mostra bem a nova ordem que assume às rédeas do imperialismo que gere um capitalismo destrutivo.
Ricardo Antunes é professor titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo pesquisador da Sociologia do Trabalho. Ele tem 13 obras publicadas sobre a relação Capital x Trabalho e Sindicalismo.
Nesta entrevista fizemos uma “provocação” a Ricardo Antunes, buscando a partir de suas reflexões entender essa realidade de um presente já incerto, em que direitos e natureza são literalmente “queimados” para garantir ganhos cada vez maiores das elites globais.
As novas tecnologias da informação potencializam o neoliberalismo, podemos estar vivendo uma nova etapa e que isso está sendo determinante para a formação de uma cultura que não considere mais os direitos sociais e trabalhistas?
Sim, a resposta é direta. As novas tecnologias de informação, o mundo dos algoritmos, a inteligência artificial, tudo isso hoje é plasmado, tecido, comandado e estruturado pelo capitalismo na sua fase destrutiva. Portanto, mais do que potencializar o neoliberalismo, as novas tecnologias potencializam o sentido destrutivo e agressivo do capitalismo.
Eu vou dar um exemplo que todo mundo entende, a inteligência artificial, se fosse voltada, por exemplo, para saúde, para os hospitais, visando o auxílio no combate às doenças, às pesquisas, e não para eliminar médicos, médicas, cientistas da saúde e biólogos etc. Deveriam sim servir para auxiliar no aprofundamento das pesquisas sobre a saúde humana, assim seriam vitais.
Uma coisa é a tecnologia, uma invenção que nasceu com a humanidade nos primórdios da vida humana, em que a população sempre procurou criar instrumentos e formas para facilitar o seu trabalho, de modo a humanizar a nossa vida. Isto é, uma tecnologia com sentido social, genuinamente humana. Outra coisa é a tecnologia para substituir o trabalho humano, destruir o trabalho humano, expulsar o trabalho humano para acrescentar, incrementar, o trabalho morto com mais máquinas, com mais equipamentos para o enriquecimento privado de grandes grupos, que hoje detêm as big techs. Isto é, um processo destrutivo que significa uma nova etapa do capitalismo destrutivo, do sistema de reprodução sóciometabólico do capital, que tem embutido em si a ideia de que não existem mais direitos sociais.
O trabalho nas chamadas plataformas digitais cresce aumentando ainda mais a exploração sobre o trabalhador?
Basta olhar o trabalho “uberizado”, o trabalho nas plataformas que se expandem no mundo inteiro, do Brasil à China, da Índia à Inglaterra, dos Estados Unidos à África do Sul, entre outros países. Basta ver estas empresas, das grandes plataformas digitais, em que o trabalhador é violentamente explorado, em que ele não tem nenhum direito.
Aliás, é importante que se saiba que o trabalho humano que municia, que dá informações à inteligência artificial, se expande de modo ampliado pelo mundo, em condições na qual os trabalhadores e as trabalhadoras recebem às vezes centavos de dólar por hora. Ou seja, um trabalho sem nenhum direito, brutalmente pautado na exploração, na expropriação e na espoliação da classe trabalhadora.
Por tudo isto, essa lógica que comanda a Tecnologia da Informação, do nosso tempo, é a da destruição. Último exemplo, não é algo descabido, até porque já existe, são as técnicas da inteligência artificial que hoje são capazes de criar instrumentos de guerra. São capazes de criar um exército e, no limite, podem até vir a destruir a humanidade. É disso que estamos tratando.
Vale acrescentar que as Tecnologias da Informação, hoje, têm sido um instrumento decisivo para a expansão do neofascismo e do neonazismo, que convivem muito bem com valores do neoliberalismo. Porque esses valores, na verdade, são valores que nascem da fase mais destrutiva do sistema do capital, em que a destruição da natureza chegou ao limite, em que a destruição do trabalho humano é ilimitada, e a destruição da igualdade e luta pelos direitos de gênero, raça, etnia e geração estão sendo jogados no lixo, porque o que vale é a reprodução do sistema destrutivo do capital. E vale dizer ainda que, dentro desse sistema de destruição, nós não tratamos de outro fenômeno grave, que é o risco até mesmo iminente de uma guerra mundial que não teria vencedores e nem perdedores.
Podemos dizer que vivemos um tempo parecido, nas suas devidas proporções, com a 2ª Revolução Industrial, do século XIX?
Eu penso que é preciso fazer uma distinção importante. A segunda revolução industrial se deu no contexto do capitalismo, ainda na sua fase de expansão. É aquilo que se poderia chamar de modernidade burguesa, fundada na exploração e na expansão das fronteiras abertas que levaram o capitalismo a se tornar um fenômeno mundial, levando-o da Europa às Américas, África e Ásia, expandindo e ampliando o mercado de trabalho. Essa força de trabalho foi criada para expandir o mundo industrial daquele tempo.
O que nós estamos vendo hoje é outra coisa, o capitalismo chegou ao limite da sua destruição, ele não tem como se expandir mais, sem destruir. A destruição da natureza é um exemplo disso, e nós estamos vendo essa dimensão na forma mais trágica. Nos últimos dias, por exemplo, o Brasil sofreu chuvas torrenciais, completamente explicáveis pelas queimadas, pelo aquecimento global e por tantas outras tragédias que marcam a destruição da natureza. Isso para não citar o desastre ambiental de imensas proporções que acabamos de ver em Los Angeles, no estado da Califórnia (EUA), destruindo todo seu entorno.
Hoje, o capitalismo se firma nas seguintes ações: no expansionismo, na lógica do incontrolável e no fator de destruição, sem qualquer limite. Ele chegou no limite do espaço do Capital. Atualmente, o mundo em sua totalidade espacial, é dominado pela fase mais destrutiva do capital, adentrando na era da acumulação, da acumulação espacial, no sentido literal. Elon Musk e assemelhados não fazem outra coisa senão adentrar e estudar, maquinar, preparar e implementar formas de expansão capitalista no espaço, esparramando satélites, criando já o turismo intergaláctico, chegando em um limite inimaginável. Depois de terem destruído a natureza terrestre, agora estão iniciando uma era de destruição do espaço sideral.
É mais grave e mais brutal, de tal modo que a fase atual do capitalismo só pode se expandir destruindo a humanidade e a natureza e, obviamente, para poder superar essa tragédia, incentiva guerras, confrontos bélicos brutais entre interpaíses, de modo a manter um sistema criando vias de escape para a sua acumulação em épocas de recessão.
Você acredita que a esquerda e o movimento sindical não estão sabendo lidar com essa realidade?
Quando o capitalismo deu um grande salto para a indústria, entre os anos de 1850 e 1870, houve a passagem do Século XIX para o Século XX, saindo das indústrias de pequeno e médio porte, de indústrias ainda bastante limitadas na sua expansão. Lembre-se que, no Século XVIII, a grande força motriz da revolução industrial foi a indústria têxtil inglesa.
Quando adentramos no Século XX, a indústria, aquela que se expandiu no século anterior, se tornou dominante, assim nasce a chamada indústria. Em meados do Século XIX, Karl Marx mostrou isso nos seus capítulos mais magistrais, presentes, especialmente, no volume I de “O Capital”, no capítulo 13 “Maquinaria e Grande Indústria”. Pois bem, esse texto do Marx é de 1867. Quando entramos no Século XX, temos como marco a expansão da companhia de automóveis Ford. É o nascimento do Taylorismo e do Fordismo, sendo neste momento que o mundo se tornou moldado pela fábrica.
Gramsci tem um texto excepcional, “Americanismo e Fordismo”, em que ele denomina o fordismo como sendo a expressão microcósmica de uma fábrica, que vai moldar e modelar a sociedade, de tal modo que o mundo fordista transcende a fábrica, ele nasce na fábrica com uma sociedade cujo ideário, ideologia dominante, passa a ser de base taylorista e fordista.
Mas hoje o que nós estamos vendo é uma mudança muito profunda, porque o capitalismo não vive mais uma fase de expansão, tendo todo o espaço para que isto ocorra, mas ele só pode se expandir, só pode se valorizar, destruindo ilimitadamente.
O Mészáros chamou isso de lei de tendência decrescente do valor de uso das mercadorias. Hoje você compra um micro-ondas sabendo que ele vai durar muito menos tempo do que o mesmo equipamento que você quebrou depois de tê-lo usado por 10 anos, pois esse é o tempo de vida útil desse eletrodoméstico. Você compra um automóvel, que, diferentemente do automóvel do século passado, que durava 10, 20 anos, hoje tem uma vida útil reduzidíssima. Assim como o telefone celular que apaga depois de um certo tempo de vida, porque “ele tem que morrer” para ser descartado para que o telefone celular novo, o Apple, o Samsung, entre outros, sejam produzidos. Isso só pode ser feito com mais exploração mineral, lítio, minérios, com mais exploração humana do trabalho, com mais concorrência entre as grandes empresas e com mais domínio espacial. Temos atualmente um sistema de satélites, onde você tem que organizar, digamos assim, todas as informações, seja no mundo terrestre, nos armazéns da Google, seja no mundo espacial que vai enfeixando e sendo dominado pelo sistema do capital.
Essa realidade, e contexto, fez com que o movimento sindical se encontrasse numa dimensão, em uma crise profunda. Houve uma crise na passagem do Século XIX para o Século XX, em que o sindicalismo era inicialmente composto por trabalhadores cujo sindicato era formado com uma base de operários que atuavam em manufaturas e pequenas e médias empresas. O sindicalismo do século XX adentrou no sindicalismo da grande indústria, como mencionei anteriormente, na era industrial taylorista e fordista. Demorou anos para que o sindicato pudesse criar o que nós chamamos de “sindicato massa”, o sindicato da classe operária.
O ABC Paulista, por exemplo, no final dos anos 1970, tinha na sua unidade de São Bernardo fábricas imensas, a Ford, General Motors, Scania e tantas outras. Essas fábricas reduziram brutalmente o seu tamanho, e algumas, como a Ford, desapareceram.
A Ford foi a primeira fábrica automotiva fundada no Brasil, perdurando por mais de um século, e hoje ela não existe mais, não produz mais automóveis aqui. Então, esse é um exemplo de como é que o sindicato sai de uma empresa concentrada, baseada no operário massa, para um mundo onde a explosão proletária que se expande hoje não é concentrada no proletariado da indústria de transformação. O proletariado que se expande hoje, que cresce em escala global, é o proletariado de serviços da era digital.
O trabalho em empresas de plataformas digitais, concentrado nos armazéns da Amazon, nos motoristas, entregadores e trabalhadores em geral da Uber, os trabalhadores de todos os tipos, de todas as atividades da Amazon Mechanical Turk, os trabalhadores que se expandem, limpam, arrumam os imóveis alugados, fazendo a gestão na entrega de chaves da Airbnb. São empresas globais que passaram a dominar o mundo do capital, através do processo de industrialização dos serviços.
Vivemos a era da indústria de serviços e qual o perfil desse trabalhador?
Eu nunca falei em sociedade pós-industrial, esse é mais um erro eurocêntrico, sempre falei em expansão da indústria de serviços. O que mais se expande hoje é a indústria de serviços, as plataformas digitais, o que é o Amazon, senão uma monumental indústria de logística e de venda de mercadorias de todas as procedências. A Amazon iniciou-se, nos anos 1990, vendeu livros, e hoje ela vende tudo.
O Mercado Livre, de origem latino-americana, não para sua expansão, vendendo tudo. Cada uma dessas grandes empresas tem unidades de armazém, que são a indústria de armazém (logística). Elas têm um sistema de transporte de entregas que é capilar, nacional e mundial. Encontramos frequentemente nas esquinas carros, peruas, furgonetas que são ou prestam serviço para o Mercado Livre que entregam produtos por toda parte.
Mas quais são as condições de trabalho desse novo proletariado, eles têm direitos? Essa massa de entregadores, por exemplo, sustenta o Uber, iFood, Glovo, Deliveroo, entre outras, citando empresas que atuam em outros países, se expandindo na América Latina, nos Estados Unidos etc.
Esse novo proletariado de serviços, ele não tem a concentração da fábrica, como é que os sindicatos representam isto? Como é que os sindicatos articulam uma classe trabalhadora onde predomina não mais o trabalho com direitos, mas um trabalho sem direitos, como é que o sindicato tem articulado a representação crucial entre classe trabalhadora, gênero, LGBTs, raça, etnias indígenas e imigrantes? Então, hoje, você tem que articular uma classe trabalhadora muito mais heterogênea do que no passado, heterogênea no que diz respeito a sua qualificação, mas também a seu gênero, sua dimensão racial, na sua dimensão étnica e na sua dimensão geracional, e isso é muito mais difícil.
A esquerda anticapitalista tinha o princípio da esperança no Século XX, o princípio da esperança no mundo não era o fascismo ou nazismo. O fascismo italiano e o nazismo hitleriano eram aberrações indigentes para controlar o processo revolucionário, uma vez que o princípio da esperança da humanidade estava na classe trabalhadora e os seus projetos de mudanças radicais anticapitalistas.
Hoje, a esquerda perdeu esse princípio da esperança, majoritariamente, no mundo. A esquerda hoje ganha as eleições para consertar o estrago que a direita e a extrema direita fazem para consertar o capitalismo. A esquerda desaprendeu a ter ações práticas anticapitalistas, e isto afeta também os sindicatos.
O homem capitalista burguês pode perder o controle desse processo, tamanho é o desenvolvimento da IA, a revolução e a revolta das máquinas, como nos filmes de ficção científica?
Pode. Nós tivemos outro dia, em agosto/24, noticiado na imprensa, que aconteceu pela primeira vez uma greve de robôs comandados por Inteligência Artificial (IA) na China. Imagine se as grandes potências imperialistas começam a municiar seus exércitos e comandá-los por IA, isso pode nos levar a um mundo sem limites. Podemos ter um cenário de ficção ao modo de Blade Runner? Claro que podemos, mas penso que esta possibilidade só pode ser decisivamente confrontada a partir das lutas sociais da classe trabalhadora no sentido amplo, com a classe operária industrial que se expande na Índia, China e África do Sul, junto com o proletariado de serviços que se expande no mundo inteiro, também com os trabalhadores da agroindústria que se expande em várias partes.
Eu criei uma denominação, em dois livros meus: “Adeus ao Trabalho?” e “Os Sentidos do Trabalho”, de “classe-que-vive-do-trabalho”. Com isso, eu quis dizer que a classe trabalhadora é aquela que vive da venda de sua força de trabalho, baseado na definição de Marx e Engels, até aí não tem nenhuma novidade. Mas eu quis, daí o hífen, dizer que a classe trabalhadora é cada vez mais complexa, heterogênea e fragmentada, o que demanda um esforço muito profundo de recuperação das questões vitais do nosso tempo.
A esquerda sabia qual era a questão vital, por exemplo, na época da Comuna de Paris, em 1871, cujo lema era “Estamos aqui pela Humanidade”. Na Revolução Russa, em 1917, o lema não era sobre os sovietes, mas sim “Pão, Paz e Terra”. É claro que os sovietes foram vitais, mas o lema, o mote “Pão”, porque a população tinha fome; “Paz” porque os filhos dos operários morriam nas linhas de frente da 1ª Guerra Mundial; e “Terra”, porque a Rússia tinha terras, mas não provia alimentação. Então, esse tripé “Pão, Paz e Terra” colocou a população russa, a classe trabalhadora em movimento.
Quais são as questões cruciais do nosso tempo, que nos colocam em movimento contra o risco de uma 3ª Guerra Mundial, em que tudo é imprevisível, seja para um desenvolvimento maquínico controlável, claro, no plano da abstração, mas é muito importante também lembrar que o capitalismo desde suas primeiras revoluções, inglesa e francesa, aprende cada vez mais administrar as crises.
Quanto mais destrutivo é o capitalismo, mais ele se torna perverso para administrar e preservar os interesses da grande burguesia internacional, mundializada e financeirizada que domina o mundo.
Nós temos que enfrentar essa grande burguesia e o ponto de partida é que devemos ser radicalmente ecossocialistas, precisamos defender a preservação imediata da natureza, e isso só pode ser feito combatendo o capitalismo. E temos que recuperar o trabalho, o que Marx chamava de 'Trabalho Associado”, uma forma de trabalho social e coletivo, autônomo e autodeterminado, temos que eliminar o trabalho assalariado. Precisamos lutar pela igualdade substantiva entre gêneros, raças, etnias e gerações. São esses desafios que nos obrigam a reinventar um novo modo de vida que o capitalismo está completamente impossibilitado de fazer.