Vínculo empregatício entre trabalhadores de plataformas e empresas é básico para avanço na proteção da categoria. Entrevista especial com Felipe Moda

Embora a medida seja polêmica inclusive entre entregadores e motoristas de App, pesquisador insiste que outros direitos só poderão ser assegurados a partir desse reconhecimento

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | 26 Mai 2023

Agora em maio, uma nova paralisação de profissionais que atuam por aplicativos voltou a chamar atenção para as péssimas condições de trabalho da categoria e o quão pouco temos avançado nesse tema. Embora esteja em outro contexto político, o sociólogo e pesquisador Felipe Moda observa que as ações do governo precisam ir além da incorporação dessas pessoas no sistema de seguridade social. “É um importante avanço para a categoria, porém uma proposta muito recuada para um governo de esquerda, haja visto que qualquer trabalhador que tenha uma MEI registrada já pode ser incorporado nesses programas. Logo, avança muito pouco na conquista de direitos para a categoria”, observa.

É por isso que, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, afirma: “ainda que seja um tema polêmico no interior das categorias profissionais, a regulamentação desses trabalhos deveriam ter como patamar inicial o reconhecimento do vínculo empregatício na relação, pois os requisitos básicos para que este vínculo seja reconhecido (pessoalidade; subordinação; onerosidade e habitualidade) já foram demonstradas por inúmeras pesquisas”.

Para ele, esse é primeiro passo para, a partir de então, buscar outros avanços nesse que é um debate muito recente. “Ainda não existe em nenhum país um modelo ideal de regulamentação desses trabalhos”, indica. E conclui: “a proposta mais avançada até o momento está nas diretrizes para os trabalhos por plataformas escrita pela Comissão da União Europeia, a qual recomendou aos países membros o reconhecimento da totalidade das atividades subordinada por meio de plataformas digitais como relações de emprego”.

Ao longo da entrevista, Felipe ainda detalha e analisa as propostas que poderiam melhorar a vida de quem depende dos Apps para se sustentar e reflete porque muitos trabalhadores resistem a esse enquadramento e formalização de vínculo empregatício. Por isso, diz que não é possível apenas uma solução, mas sim um conjunto delas. Novamente, nesse contexto em que ainda há grande pressão das empresas que estão no bojo das Big Techs, observa que o papel do Estado é central em pautar esse debate e transformar as discussões em ações efetivas para a categoria. “O enfrentamento ao poder das grandes plataformas por parte de um governo de esquerda (ou que pelo menos busque frear a superexploração do trabalho) passa por priorizar o diálogo com os trabalhadores”, avalia.

Felipe Bruner Moda  (Foto: Arquivo pessoal)

Felipe Bruner Moda possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Também é mestre em Ciências Sociais pela USP e doutorando em Ciências Sociais pela mesma instituição. É membro de Grupo de Pesquisa Classes Sociais e Trabalho – GPCT e suas pesquisas são na área da sociologia do trabalho, focando nos temas: trabalho por aplicativo; plataformização do trabalho; informalidade; empreendedorismo.

Confira a entrevista.

IHU – O que a paralisação de trabalhadores por aplicativo de transporte realizada agora em maio tem de distinta das paralisações anteriores? O que mudou nesse cenário?

Felipe Moda – O mais interessante de captar nas mobilizações dos trabalhadores por aplicativos, sejam eles motoristas ou entregadores, são os traços de continuidade existentes, pois eles revelam os problemas mais candentes das categorias e suas formas de articulação para ação coletiva. Em um primeiro momento, nas chegadas dos trabalhos por aplicativo no país tivemos uma onda de manifestações e embates pela permissão para o funcionamento dessas empresas nas cidades. Após a implementação dos serviços, a luta dos trabalhadores sempre gira em torno dos mesmos eixos: melhores rendimentos; maior segurança para exercerem suas atividades e críticas ao despotismos algorítmico que gerencia seus processos de trabalho, que faz com que muitos entregadores e motoristas sejam bloqueados injustamente nas plataformas, por exemplo.

Além disso, as formas organizativas, em sua maioria, também se repetem: temos associações, embriões sindicais e “influenciadores”/youtubers das categorias que se articulam com uma camada mais ampla de trabalhadores, geralmente em pontos de encontro presenciais e, principalmente, em grupos de aplicativo de troca de mensagem. Por meio destes espaços organizam as manifestações, que ora são mais robustas, como as paralisações, ou por vezes são ações mais pontuais que visam subverter/manipular as regras impostas pelas empresas.

As dificuldades encontradas para organizar tais ações também se reproduzem, como a alta taxa de rotatividade de trabalhadores vinculados às plataformas, o mapeamento da adesão dos trabalhadores aos protestos, as práticas anti-sindicais promovidas pelas empresas, que oferecem bônus ou maiores tarifas para quem trabalhar nos dias dos protestos. Além do medo que muitos têm de serem bloqueados arbitrariamente pelas empresas por se manifestarem.

Diferenças

A diferença existente em um protesto realizado agora em 2023 é o fato de que o debate sobre a regulamentação das empresas de trabalhos plataformizados estar na ordem do dia, sendo inclusive um tema de preocupação do atual governo. Vale pontuar que em janeiro os entregadores marcaram um dia de paralisação, o qual não ocorreu pois eles abriram um canal de diálogo com o governo federal para debater as suas pautas. Assim, os protestos dos trabalhadores acontecem em um novo cenário na política nacional, em uma conjuntura aparentemente mais favorável para que suas reivindicações sejam atendidas.

IHU – Quais as principais pautas e reivindicações de trabalhadores por aplicativo hoje? O que essas demandas revelam?

Felipe Moda – Como dito, as pautas dos motoristas e entregadores por aplicativo nos últimos anos são bastante parecidas, como podemos ilustrar pela carta assinada pelas lideranças da recente mobilização que ocorreu em São Paulo. Esta carta era baseada em quatro eixos reivindicatórios:

1) a valorização dos ganhos (aumento da tarifa mínima para R$ 10,00 por corrida e de R$ 2,00 por km rodado);

2) aumento da segurança (verificação mais rigoroso dos passageiros para evitar contas fakes; diminuir o tempo que os motoristas são obrigados a esperar os passageiros antes de iniciar viagem; melhorias nos mecanismos de segurança feito pelas plataformas em cada corrida);

3) maior transparência dos dados de posse das plataformas (em especial sobre os números de casos de violência e assédios) e

4) melhorias nos atendimentos aos trabalhadores pelas plataformas, com canais mais eficientes e que funcionem 24 horas.

Salário por peça/tarefa

Segundo os motoristas, as empresas não aumentam o valor repassado para eles desde 2016 e a alta inflação no período fez com que seus ganhos fossem bastante afetados, obrigando-os a aumentarem suas jornadas de trabalho para pagarem suas contas. Isso acontece porque o valor pago para cada trabalhador é baseado em um modelo de salário por peça/tarefa, com os trabalhadores recebendo um valor variável, determinado de forma unilateral pelas empresas, a cada corrida, sendo que o percentual retido pelas empresas por corrida é decidido pelas próprias empresas. Importante pontuar que a reivindicação deles não busca que o serviço fique mais caro aos consumidores, mas que o percentual retido pelas empresas por corrida diminua.

Assim, analisando rapidamente o conjunto de pautas da atual paralisação, nota-se que o maior enfrentamento dos trabalhadores é diretamente contra as empresas, não incorporando reivindicações que dizem respeito à regulamentação deste trabalho. E são pautas extremamente justas, pois como já demonstrado por algumas pesquisas, como a Fairwork [abaixo], que pontua as plataformas em diferentes países segundo os critérios de trabalho justo da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Essa pesquisa revela que o Brasil é um dos locais com piores condições de trabalho para esses profissionais.

A pesquisa indicou, ainda, que as principais plataformas em operação no país não garantem o pagamento do salário-mínimo por hora e não tomam medidas visando a aumentar a segurança no trabalho.

IHU – Como interpreta essa resistência das empresas em atender as reivindicações dos trabalhadores, especialmente em ações que parecem simples, como melhorar os canais de comunicação e abertura para negociações?

Felipe Moda – A chave para compreender essa questão está na própria maneira pela qual as empresas recrutam os trabalhadores. No modelo dos trabalhos plataformizados, não existe um número de vagas disponíveis, que regula a quantidade de trabalhadores “contratados” – uso o termo entre aspas já que formalmente os trabalhadores não contratados – por cada empresa. Assim, torna-se uma decisão do trabalhador aderir a este trabalho, sendo que, para isso, basta ele baixar um aplicativo em seu celular, preencher os dados cadastrais e enviar fotos de alguns documentos (geralmente um documento de identificação, a carteira de habilitação e os antecedentes criminais) para a empresa que, após uma análise, libera o cadastro do trabalhador em sua plataforma.

A facilidade em se tornar motorista ou entregador, somada à grande quantidade de pessoas em situações de desemprego ou em empregos com baixos salários no Brasil, faz com que estes trabalhos sejam vistos como um grande atrativo para garantir renda. Com isso, as empresas do setor têm um enorme contingente de trabalhadores disponíveis para executarem os seus serviços, criando uma situação de “descartabilidade” destes profissionais. Somente a Uber, por exemplo, afirma que existem 1 milhão de motoristas/entregadores brasileiros cadastrados em sua plataforma. A expressividade deste número faz com que as empresas não sejam obrigadas a atender possíveis reclamações sobre como seus trabalhos são organizados, pois existem sempre diversos outros trabalhadores que necessitam de trabalho e que são obrigados a aceitarem as atuais condições impostas.

Por isso, o apoio dos usuários do serviço e dos entes públicos à luta dos trabalhadores é central para que as reivindicações sejam atendidas, já que também são atores diretamente envolvidos no processo e com um poder de barganha maior contra as plataformas.

IHU – Qual sua avaliação sobre as intenções já manifestadas pelo governo Lula III no tocante a regular esse trabalho plataformizado?

Felipe Moda – Desde a sua campanha eleitoral, o presidente Lula já indicava que o tema das plataformas digitais teria centralidade em seu governo. Sobre a regulamentação dos trabalhos plataformizados especificamente, Luiz Marinho, Ministro do Trabalho e Emprego, recentemente declarou que este debate foi adiado para o segundo semestre de 2023 devido às grandes diferenças existentes entre os atores envolvidos. De todo modo, Lula e Marinho, em diferentes momentos, indicaram que a prioridade do governo é incluir os trabalhadores plataformizados na seguridade social via INSS, além de já terem expressado que possuem duas preocupações centrais sobre esses trabalhadores: as longas jornadas de trabalho e as baixas remunerações. São temas que ainda não foram apresentadas propostas concretas de como deverão ser tratados.

A incorporação dos trabalhadores plataformizados na seguridade social é um importante avanço para a categoria, porém uma proposta muito recuada para um governo de esquerda, haja visto que qualquer trabalhador que tenha uma Micros-empresa Individual – MEI registrada já pode ser incorporado nesses programas. Logo, avança muito pouco na conquista de direitos para a categoria.

Ainda que seja um tema polêmico no interior das categorias profissionais, a regulamentação desses trabalhos deveriam ter como patamar inicial o reconhecimento do vínculo empregatício na relação, pois os requisitos básicos para que este vínculo seja reconhecido (pessoalidade; subordinação; onerosidade e habitualidade) já foram demonstradas por inúmeras pesquisas. Este patamar inicial é que irá garantir que tais trabalhadores tenham acesso a todos os direitos que já são assegurados a outras categorias profissionais, cabendo aos debates sobre a regulamentação formular como adequá-los às características presentes no trabalho plataformizado. Um dos exemplos dessas adaptações é a flexibilidade de horários e a possibilidade de recusar tarefas.

IHU – Que outras experiências pelo mundo, em termos de regularização desses trabalhos, podem inspirar a realidade brasileira?

Felipe Moda – Ainda não existe em nenhum país um modelo ideal de regulamentação desses trabalhos, pois existem inúmeras questões que ainda carecem de maiores formulações mesmo entre aqueles que defendem a existência de vínculo empregatício na relação. Devemos focar primeiramente nos entregadores e motoristas ou regular todos os tipos de plataformas? Cada categoria profissional deve ter uma legislação específica? Cotidianamente surgem novas plataformas de trabalho com características específicas e outras categorias profissionais são arrastadas para o processo de plataformização, complexificando os desafios em respondermos tais questões.

De todo modo, é importante exemplificar algumas ações que já foram implementadas em outros países ou estão em debate. Na Espanha tivemos a aprovação da “Ley Rider”, que passou a reconhecer o vínculo de emprego entre os entregadores e as empresas e determinar que as corporações divulguem as regras e instruções algorítmicas que se baseiam para organizar os processos de trabalho.

Já no Reino Unido, a Suprema Corte reconheceu os motoristas da Uber como parte da categoria de “workers”, uma figura jurídica intermediária entre o empregado (employee) e o trabalhador autônomo, garantindo assim alguns direitos, como aposentadoria, férias e salário mínimo. Em nosso continente, a proposta mais avançada existente até o momento foi feita recentemente pelo governo colombiano, que incluiu em seu projeto de Reforma Trabalhista a inclusão de diversos direitos trabalhistas aos entregadores por aplicativo, até mesmo o direito de greve.

União Europeia

Considero que a proposta mais avançada até o momento está nas diretrizes para os trabalhos porplataformas escrita pela Comissão da União Europeia, a qual recomendou aos países membros o reconhecimento da totalidade das atividades subordinada por meio de plataformas digitais como relações de emprego. Assim, acaba indo para além dos debates focados apenas nos entregadores e motoristas.

IHU – Em que medida essa esquerda, o PT em especial, que nasce no contexto da fábrica, do operário e do sindicato, tem conseguido compreender essa nova lógica de trabalho e suas relações?

Felipe Moda – De maneira um pouco tardia. Os empregos plataformizados existem no país há mais ou menos 10 anos e o tema passa a ser debatido agora nos principais partidos da esquerda brasileira, não só no PT. Isso passou a ocorrer em especial no período da pandemia de Covid-19, quando as condições de trabalho dos entregadores e motoristas por aplicativo ganharam maior espaço nos meios de comunicação e passou a existir um maior movimento dos partidos de esquerda, geralmente por meio de suas fundações ou centrais sindicais, em tentar compreender o que são esses trabalhos.

Porém, avalio que ainda existe uma discrepância na esquerda entre a tentativa de compreensão das consequências da plataformização do trabalho e a construção de práticas políticas concretas para combater esta modalidade de trabalho. As principais lideranças dos partidos conseguem entender a gravidade da situação atual e que esse processo de precarização do trabalho deve atingir parcela significativa da classe trabalhadora no próximo período, mas colocar como centralidade a formulação de propostas que dialoguem com os interesses desses trabalhadores é ainda uma realidade distante. Isso quando não reproduzem respostas bastante distantes das atualmente formuladas pelos principais atingidos pelos processos de plataformização.

Avalio que essa dificuldade da esquerda em compreender a nova lógica de trabalho e formular respostas a ele é compreensível. Primeiro porque, como dito na resposta anterior, mesmo entre especialistas no assunto existem dificuldades na formulação de projetos que respondam à totalidade dos trabalhos plataformizados, não existindo respostas prontas. Além disso, vivemos um momento histórico de avanço do capital sobre o trabalho, com o capital constantemente se renovando para aumentar as taxas de exploração e com a esquerda na maioria das vezes correndo atrás do problema, não sendo o lado propositivo da relação.

IHU – Em que medida o debate sobre o PL das Fake News pode ser relacionado com o debate sobre a regulamentação dos trabalhos por plataformas? Que alerta o debate acerca das Fake News ascende para se pensar nas futuras discussões com as empresas de trabalho por plataforma?

Felipe Moda – As disputas em torno do PL de Fake News é uma primeira batalha do novo Governo Federal contra as empresas proprietárias de plataformas, ainda que não diretamente as de trabalho. E a dificuldade em aprovar o projeto demonstra tanto o poder de lobby das grandes Big Techs, existindo em todas elas setores especializados em relações governamentais para agir em disputas legislativas, quanto à capacidade delas em disputarem a opinião da população diretamente pelos seus serviços, como o Google e o Telegram fizeram.

Acredito que as dificuldades encontradas para combater as Fake News irão aparecer também nos debates sobre a regulamentação dos trabalhos plataformizados. As principais empresas do setor já se articulam em torno da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia – Amobitec para pressionar deputados e governantes para garantirem seus interesses. Os escândalos revelados no ano passado com o vazamento de documentos secretos da Uber (os chamados #UberFiles) também ligam um sinal de alerta para como as plataformas irão agir neste debate.

Nesses documentos foram reveladas ações como as o ex-CEO da empresa que incentivava motoristas a irem em locais de confronto com taxistas para liberar o uso do aplicativo nas cidades; gastos milionários para lobby com políticos; o pagamento de pesquisas acadêmicas para demonstrar os lados positivos da empresa e a existência de mecanismos construídos pelo setor de tecnologia da corporação para limpar seus sistemas de dados quando os escritórios eram fiscalizados por autoridades locais.

Por fim, importante citarmos que em diversos países que o poder das plataformas foi afetado, tivemos uma ameaça de paralisação da prestação de serviço ou uma retirada de fato das empresas do país, o que faz com que muitos trabalhadores e usuários não apoiem esses processos.

IHU – Por que ainda é tão difícil mobilizar e articular os trabalhadores de aplicativo em torno de uma proposta unificadora de proteção social? Por que muitos resistem a entrada em regimes como o da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT?

Felipe Moda – Creio que inúmeros fatores interferem nessa dificuldade, alguns mais contemporâneos e outros que remetem às estruturas históricas do nosso mercado de trabalho. Começando por um contemporâneo, ocorreu – e segue ocorrendo – nas últimas décadas uma forte campanha contra os direitos trabalhistas, que envolveu setores extremamente importantes na formação de opinião pública, como a mídia, líderes empresariais e governantes, ou seja, em sua maioria representantes do capital.

Corriqueiramente a grande mídia insere em sua programação mensagens como: “A CLT é coisa do passado e não leva em conta as novas relações de trabalho”, “os direitos trabalhistas geram desemprego e diminuem os salários”, “o empreendedorismo é a melhor saída para fugir da miséria”, entre outras. Evidentemente isso tem um forte impacto na opinião dos trabalhadores, em especial daqueles que já vivenciavam situações de informalidade, de desemprego ou de baixos salários, influenciando para que parte deles assuma esse discurso de que a CLT irá interferir para pior nas suas condições de trabalho e tirar sua liberdade.

Um traço histórico ressignificado no presente

Soma-se a esta deslegitimação contemporânea dos direitos trabalhistas as características históricas e estruturais do nosso mercado de trabalho. Ao analisarmos as relações de trabalho no Brasil duas características se destacam: a superexploração da força de trabalho e as altas taxas de informalidade.

Sobre a primeira característica, queremos destacar que o trabalho industrial assalariado no Brasil foi implementado a partir de um modelo fordista com as características de ser realizado com uma forte intensidade dos ritmos de trabalho, por longas jornadas e pelo pagamento de baixos salários, salários estes que tiveram redução nominal constantemente. Tal modelo fez com que muitos autores destacassem em seus estudos sobre o trabalho no Brasil, desde a década de 1960, uma busca dos trabalhadores em garantirem a sua reprodução social de maneira autônoma, não se subordinando ao despotismo produção fabril-manufatureira, o que aparece em muitos discursos dos trabalhadores plataformizados ao afirmarem que preferem este tipo de emprego porque “não tem nenhum patrão enchendo o saco na orelha”.

Sobre o segundo aspecto citado, as altas taxas de informalidade, sua origem remonta ao período do fim da escravização da população negra, momento em que ocorreu uma política civil-estatal de contratação de imigrantes europeus para serviam como força de trabalho, com salários extremamente baixos, nas lavouras, em detrimento aos ex-escravos, frustrando a possibilidade da maior parte desta população em ser inserida no mercado de trabalho assalariado. Isso perdurou historicamente e da aprovação da CLT até os dias atuais temos que parte considerável, e em muitos histórico foi a maioria, da classe trabalhadora sobreviveu em empregos desassistidos dos direitos trabalhistas, fazendo com que para muitos trabalhadores eles sejam identificados como privilégios de uma parcela da população ou um sonho muito distante.

Minando a solidariedade social

Frente a isso, acredito que as dificuldades que temos em construir um consenso nos trabalhadores plataformizados em torno de propostas de entrada na CLT são reflexos de dificuldades que temos em toda nossa sociedade, com esses trabalhadores reproduzindo muito desses discursos. De todo modo, avalio que a reprodução dessa visão nesta modalidade de trabalho é mais potencializada pelo próprio modelo de organização do trabalho imposto pelas empresas, que busca minar todas as formas de solidariedade social e vinculam os ganhos aos esforços individuais, contribuindo para que propostas coletivistas tenham mais dificuldades em serem aceitas.

É bastante compreensível a valorização de características do trabalho autônomo por esses trabalhadores, já que boa parte da população, inclusive eu, prefere trabalhar em horários flexíveis do que ficar sentado em frente a um computador 8h por dia, sem parar. Mas no caso desses trabalhadores, a valorização do trabalho com horários flexíveis encontra uma contradição: as longas jornadas diárias que, muitas vezes, duram mais de 12h – todos os dias da semana. Ou seja, temos um trabalho com horários flexíveis que, na verdade, é realizado quase que o dia todo.

Ainda assim, a possibilidade de poder “faltar” um dia de trabalho por escolha própria, de ficar em casa descansando ou resolvendo problemas pessoais, é um aspecto reforçado pelos trabalhadores como positivo em sua condição – e que deve ser considerado quando pensamos em projetos para regular essas atividades.

IHU – Em artigo recente, o senhor aponta que já há uma proposta de PL para regulação desse trabalho no Senado e na Câmara Federal. No que consiste esse PL? Qual o papel dos trabalhadores na composição desse projeto?

Felipe Moda – Desde a pandemia de Covid-19 dezenas de projetos de lei que visam regular os trabalhos por aplicativo foram apresentados nas casas legislativas federais, com os mais diferentes teores. O que ganhou mais destaque naquele momento foi o PL 3748/2020, da deputada Tabata Amaral, que versava sobre a criação do “trabalho sob demanda”, isto é, uma nova figura jurídica para enquadrar os trabalhadores por aplicativo e que apresentava uma série de falhas de compreensão sobre como estes trabalhos são organizados tendo por base o gerenciamento algorítmico.

Atualmente, no bojo da disputa presidencial de 2022, novos projetos passaram a ser debatidos e escritos sobre o tema. Recentemente o portal The Intercept divulgou um anteprojeto formulado pelo iFood que visa a classificar os entregadores e motoristas como “Prestadores de Serviços Independentes”. Neste projeto, a empresa busca garantir que a relação com os trabalhadores seja enquadrada como comercial (ao invés de trabalhista), além da inclusão destes trabalhadores no INSS, jogando uma pá de cal no debate sobre a existência ou não de vínculo empregatício na relação. Os interesses da iFood neste debate já foram expressos em inúmeras entrevistas de seus gestores e podem ser encontrados até no site da empresa.

Papel dos trabalhadores e a manipulação de dados

O papel dos trabalhadores na formulação desse projeto é bastante polêmico. Como já dito, não existe um consenso entre os motoristas e entregadores sobre a sua inclusão no regime da CLT, porém parte significativa das categorias defendem que seria necessário aumentar o número de direitos trabalhistas a eles.

Partido desse pressuposto, o iFood já realizou um fórum com entregadores e pesquisas qualitativas que buscaram comprovar que os entregadores defendem o seu projeto, porém tais iniciativas foram bastante manipuladas por parte da empresa. A mais recente delas foi uma pesquisa, realizada em conjunto com o Datafolha, que mais uma vez afirmou que os trabalhadores por aplicativo não querem CLT. Só que a questão sobre este tema foi formulada de maneira bastante direcionada, colocando como consequências à adesão à carteira de trabalho assinada inúmeras questões que não devem necessariamente ocorrer (obrigatoriedade de jornada de trabalho, impedimentos para recusar serviços etc.).

Além disso, os respondentes do questionário recebiam um vale-combustível da empresa, algo totalmente contrário ao código de ética em pesquisas no Brasil.

Assim, é necessário criarmos um amplo espaço de discussão com esses trabalhadores sobre o que valorizam e desvalorizam em seu trabalho, buscando formular propostas em que seja garantido direitos e, ao mesmo tempo, mantido os aspectos que consideram positivos em suas atividades, sem que as armadilhas impostas pelas empresas afetem esse processo de debate.

IHU – Como podemos diminuir o poder das plataformas sobre as forças de trabalho? Em que medida podemos associar esses movimentos de busca pela diminuição do poder das plataformas e aumento do poder dos trabalhadores a uma espécie de refundação da lógica sindical?

Felipe Moda – O enfrentamento ao poder das grandes plataformas por parte de um governo de esquerda (ou que pelo menos busque frear a superexploração do trabalho) passa por priorizar o diálogo com os trabalhadores, bem como com as suas entidades representativas, buscando compreender o que levou esses trabalhadores a aderirem a estes empregos e o que valorizam na relação em que estão imersos. As análises de entrevistas que faço com trabalhadores plataformizados indicam que muitos deles se cadastraram nas empresas principalmente por três motivos:

Assim, para mim, diminuir o poder das plataformas passa por três caminhos concomitantes.

1) O primeiro deles é o de combate ao desemprego, a valorização salarial nas demais profissões e a ampliação dos direitos trabalhistas. Com tais medidas, os empregos plataformizados passam de ser a “única das” para “uma das” opções de trabalho para uma parcela da classe trabalhadora.

2) O segundo caminho passa pela criação de iniciativas que busquem garantir os direitos previstos na CLT a estes trabalhadores, ao mesmo tempo em que sejam mantidos os pontos por eles valorizados. Para tanto, é necessário atacar o centro do gerenciamento algorítmico que organiza os trabalhos plataformizados, retirando a remuneração vinculada a produtividade e promovendo um salário baseado na hora trabalhada (independente do trabalhador ser ativado pelo aplicativo), ao mesmo tempo em que se pensem formas de garantir jornadas de trabalho flexíveis, a manutenção dos direitos trabalhistas e a liberdade sindical.

3) Um terceiro caminho passa pela garantia de financiamento estatal para iniciativas pautadas pelo cooperativismo ou a constituição de plataformas públicas, que possam gerar empregos que rivalizem com as Big Techs que dominam os setores.

Lógicas sindicais

Sobre a lógica sindical, acredito que não devemos cravar que passamos por uma crise estrutural dos sindicatos, que eles são estruturas do passado ou coisas do tipo. É evidente que é necessário repensar as práticas e a própria estrutura sindical para que essas ferramentas consigam dialogar com essas novas características de trabalho, pautados pela informalidade e com longas jornadas. Um caminho para isso é apreender como esses próprios trabalhadores estão fazendo para organizarem as suas ações coletivas, como dialogam em seus pontos de encontro presenciais e as dinâmicas existentes nos grupos de mensagem digitais.

Evidentemente, não podemos cair no fetichismos dos grupos de troca de mensagem, eles são bastante insuficientes para organizar discussões e ações, porém buscar formas de construir canais de diálogo se pautando pelo que já vem sendo feito pelos trabalhadores é um importante passo para uma lógica sindical mais inserida na vida cotidiana dos trabalhadores plataformizados.

IHU – O cooperativismo, ou o associativismo, pode ser uma saída para os trabalhadores de plataforma? Por quê?

Felipe Moda – O debate sobre o papel das cooperativas para a construção de sociedades igualitárias tem uma longa trajetória na esquerda, que remonta às disputas entre Rosa Luxemburgo e Bernstein sobre os caminhos do SPD alemão no início do século XX. Em décadas recentes, teóricos brasileiros também deram uma importante contribuição a esse debate a partir das teorias e das iniciativas, em torno da “economia solidária”.

Digo isso pois parece que parte do grande entusiasmo existente em alguns setores sobre o “cooperativismo de plataforma” ignora debates anteriores, reproduzindo uma espécie de determinismo tecnológico ao acreditar que a solução para os problemas sociais serão realizadas apenas a partir da construção de novos aparatos tecnológicos. Ou seja, não acredito que o cooperativismo seja por si só uma alternativa ao trabalho plataformizado, é necessário analisarmos as conjunturas nos quais as plataformas cooperativas são criadas para vermos suas potencialidades e limites.

Frente a isso, acredito que o desenvolvimento de cooperativas pelos trabalhadores pode representar benefícios importantes, em especial se conseguirem garantir condições de vida superiores aos empregos subordinados às grandes corporações. O cooperativismo pode também ser um importante espaço de educação política, pois, se de fato for implementado um colegiado democrático e que envolva os trabalhadores nos processos decisórios, ele rompe com uma divisão fundamental à produção capitalista: a concepção e a execução do trabalho.

Poder financeiro

Porém, temos que ter ciência que as empresas cooperativas rivalizam com empresas financiadas com montanhas de capitais de risco. O poder financeiro das grandes empresas plataformizadas é muito superior ao de qualquer cooperativa e as Big Techs podem a qualquer momento atuar para quebrar essas outras iniciativas, o que pode ser feito através de promoções aos clientes, por exemplo. Para evitar isso, o papel do Estado é central, pois o poder público tem capacidade de dar o aporte financeiro necessário para a manutenção dessas cooperativas.

Portanto, é fundamental sabermos onde queremos chegar com o cooperativismo de plataforma. Se o intuito for a construção de uma rede de trabalhadores e empresas que buscam garantir melhores condições de trabalho e fortalecer as iniciativas de auto-organização dos trabalhadores, acredito que esse processo pode ser bastante positivo, apesar das inúmeras pressões econômicas que irão existir. Além disso, as propostas de cooperativas devem ser formuladas como políticas públicas, o que auxiliaria para que essas iniciativas sobrevivam.

IHU – No que esse debate sobre as formas de proteção a trabalhadores por aplicativo se associa e no que se dissocia dos debates em torno da revisão da reforma trabalhista?

Felipe Moda – A Reforma Trabalhista brasileira de 2017 foi realizada no contexto em que diversos outros países no mundo também estavam alterando as suas legislações trabalhistas. No geral, essas reformas buscaram formas de flexibilizar os contratos de trabalho, diminuir os gastos do capital com os “tempos mortos” das jornadas e enfraquecer o poder dos sindicatos, privilegiando as negociações individuais dos trabalhadores com os empregados em relação a acordos coletivos. Nesse sentido, a Reforma Trabalhista é parte de um amplo processo de mundial de precarização do trabalho e pode ser enquadrada como uma ação do Estado para garantir que o capital avançasse sobre o trabalho, aumentando a superexploração dos trabalhadores.

Dito isso, é possível encontrarmos diversos artigos “uberizantes” na Reforma Trabalhista, em especial na criação de novas figuras contratuais. Uma das novas modalidades de formalização da força de trabalho possibilitadas pela Reforma Trabalhista foi o trabalho intermitente, sendo este o “contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses”.

Ainda que o trabalho intermitente guarde diferenças em relação aos trabalhos plataformizados, ambos seguem a mesma lógica de remuneração, na qual apenas as horas efetivamente trabalhadas são remuneradas, demonstrando como a relação existente entre os trabalhos plataformizados e as mudanças na legislação trabalhista.

Luta contra a reforma e a plataformização

Assim, a luta contra a plataformização do trabalho passa, por um lado, também pela luta pela revogação da Reforma Trabalhista, ainda mais se considerarmos que boa parte das promessas desta lei não se efetivaram. Os seus defensores a vincularam com uma falaciosa promessa de expansão do emprego e de formalização do trabalho. Dois anos após a aprovação desta contrarreforma, temos que estas características do mercado de trabalho brasileiro não foram modificadas, já que o índice de desemprego que era de 12,2% da População Economicamente Ativa (PEA) em 2017 chegou, no quarto trimestre de 2021, a 11,13% e mesmo com a contrarreforma permitindo a formalização de uma maior gama de precários contratos de trabalho, a taxa de de informalidade no mercado de trabalho chegou a 40% no mesmo ano, um dos maiores percentuais atingido nos últimos cinco anos.

Por outro lado, como já dito, alguns dos elementos precarizantes presentes nos trabalhos plataformizados são anteriores à aprovação desta lei, e até mesmo anterior ao surgimento das plataformas de trabalho. A informalidade, a despadronização da jornada de trabalho, os rendimentos vinculados a produtividade, entre outros, são características estruturais do nosso mercado de trabalho, fazendo com que as antigas leis trabalhistas existentes pré-reforma de 2017 não abarcasse a totalidade dos assalariados brasileiros.

Por isso, a luta pela revogação da Reforma Trabalhista deve ser acompanhada de formulações que visem incorporar uma camada maior de trabalhadores aos direitos historicamente conquistados, adequando as legislações às novas características do mercado de trabalho sem que isso signifique uma diminuição dos direitos.

IHU – Como podemos compreender e projetar, no longo percurso, os efeitos da plataformização sobre o mundo do trabalho como um todo?

Felipe Moda – Essa é uma pergunta difícil, pois o desenvolvimento das plataformas de trabalho não existe de maneira pré-determinada, mas será construída a partir da luta de classes. O capital buscará aprofundar os processos de flexibilização e desvalorização da força de trabalho, enquanto os trabalhadores devem responder a alguns desses ataques com mobilizações e é neste embate que irá ser forjado os efeitos da plataformização no trabalho. Um exemplo concreto de como este futuro está em aberto reside no atual debate sobre a regulação do trabalho por plataformas no Brasil, no qual não sabemos se serão aprovadas leis que irão barrar o poder das plataformas ou que aprofundem o atual cenário.

De todo modo, alguns dos efeitos já se apresentam como tendência. Acredito que o primeiro deles diz respeito a compreensão da plataformização como um processo transversal ao mercado de trabalho, que irá afetar a grande maioria das profissões existentes. Ou seja, a plataformização já não é algo restrito aos entregadores e motoristas, mas atinge psicólogos, arquitetos, diaristas, manicures, programadores, advogados etc. As mais distintas profissões já possuem o seu “aplicativo” e essa é uma tendência que deve se aprofundar no médio/longo prazo, com cada vez mais trabalhadores se vinculando às diferentes plataformas de trabalho como forma de garantirem a sua reprodução social.

Um segundo efeito importante de ser pontuado diz respeito a uma teorização geral sobre a relação entre automação e trabalho. Diversos pesquisadores, inclusive identificados com o campo da esquerda, concebem que o desenvolvimento da automação tornaria o trabalho vivo algo residual nos processos de trabalho, diminuindo assim a subjugação dos trabalhadores aos domínios do capital. Com isso, caminharíamos para uma sociedade com maior tempo livre e com empregos que permitiriam maior autonomia aos trabalhadores nas tomadas de decisão.

Defendo uma concepção de certo modo oposta a essa. Pode até ser verdade que a automação, em alguns casos, promova trabalhos melhores ou até mesmo uma diminuição do tempo de trabalho, porém isso acontece apenas para uma pequeníssima parcela da classe trabalhadora. No geral, a automação é experimentada pelos trabalhadores como aumento das taxas de desemprego e pela criação de postos de trabalho mais precarizados, que remuneram com valores mais baixos os trabalhadores.

Assim, acredito que não caminhamos para uma sociedade em que os robôs irão substituir os trabalhadores ou do “fim” do trabalho, mas sim para uma sociedade que generalize os trabalhos precários.

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