11 Janeiro 2025
Infelizmente, em nossa sociedade capitalista neoliberal, os Moradores das Ocupações são tratados como se fossem lixo degradável. O lixo reciclável é muito melhor tratado. Meditemos!
O artigo é de Marcos Sassatelli, frade dominicano doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção/SP), professor aposentado de Filosofia da UFG.
Todo ano, no dia de 16 de fevereiro, não podemos deixar de fazer a memória do despejo diabólico dos Moradores — cerca 14 mil pessoas (4 mil famílias) — da Ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia, para que tamanha iniquidade humana nunca mais aconteça.
À época, o governador Marconi Perillo tinha prometido publicamente, numa entrevista coletiva, na qual eu estava presente, que não iria mandar retirar as famílias da Ocupação “Sonho Real” e que estava decidida a desapropriação da área. Inclusive, tratava-se de uma área com todas as condições legais para que acontecesse a desapropriação.
Apesar de ter publicamente empenhado sua palavra (os moradores fizeram até festa), Marconi Perillo, pressionado pelos donos das grandes imobiliárias de Goiânia, os que realmente mandam na capital, foi covarde, não manteve a palavra dada e voltou atrás. Por ser bastante valorizada, a área da Ocupação “Sonho Real” tinha se tornado objeto de especulação imobiliária dos adoradores do deus dinheiro.
De 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h (reparem o horário!), a Polícia Militar começou a ação violenta da chamada reintegração de posse. Cínica e maldosamente, recebeu o nome de "Operação Inquietação". Foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral (ou melhor: de “efeito imoral”!), gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação e provocou traumas psicológicos nas crianças. Que perversidade! Que crueldade! Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa como essa.
Depois da Operação Inquietação, em 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar realizou uma verdadeira operação militar de guerra, que também, cínica e maldosamente, foi chamada Operação Triunfo. Em 1 hora e 45 minutos, cerca de 14 mil pessoas (4 mil famílias) foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A operação militar produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número de mortos e feridos seja bem maior).
Já disse e reafirmo: nessas operações militares criminosas e imorais, mesmo que hipocritamente legalizadas, todos os direitos humanos fundamentais foram gravemente violados: o direito à vida, o direito à moradia, o direito ao trabalho, o direito à saúde, o direito à alimentação e à água, os direitos das crianças e dos adolescentes, os direitos das mulheres, os direitos dos idosos e os direitos das pessoas com necessidades especiais.
Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia (onde aconteceu também o velório de Pedro e Vagner num clima de muita indignação e sofrimento) cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra.
Nesse período, diversas pessoas, sobretudo crianças e idosos, morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do poder público do Estado de Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Foi o maior despejo (14 mil pessoas), o mais iníquo, o mais perverso e o mais cruel de toda a história de Goiânia, de Goiás e do Brasil cometido pelo poder público.
Em 16 de fevereiro deste ano de 2025, a Operação Triunfo — apesar de muitos esforços no sentido de exigir a “federalização do caso” e a justiça — completa 20 anos de impunidade. Que vergonha para a justiça de Goiânia, de Goiás e do Brasil! Quem pode acreditar nessa Justiça!
Os responsáveis por tamanha iniquidade, praticada contra os pobres, aguardem a justiça de Deus! Ela pode tardar, mas nunca falha!
“Vivemos - diz o Papa Francisco - em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários..., mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que as Ocupações pobres são marginalizadas ou, pior, quer-se erradicá-las! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando barracos, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje” (Discurso de Francisco aos Movimentos Populares, outubro de 2014). Os direitos à terra, ao teto (moradia) e ao trabalho (os três T), diz ainda o Papa Francisco, são direitos sagrados de todos e de todas.
Infelizmente, em nossa sociedade capitalista neoliberal, os moradores das ocupações são tratados como se fossem lixo degradável. O lixo reciclável é muito melhor tratado. Meditemos!
Como já disse outras vezes, mas nunca é demais repeti-lo: todo despejo é injusto e, se tiver liminar de juiz, é mais injusto ainda, porque torna-se uma injustiça legalizada e instituída.
Os adoradores do deus dinheiro lembrem que, do ponto de vista humano e ético, todo terreno urbano “largado” para futura especulação imobiliária e todo terreno ou latifúndio rural improdutivo e sem função social são de quem precisa deles para morar e/ou trabalhar.
Só existem três casos nos quais os moradores das ocupações podem ser removidos (digo, removidos, não despejados) com toda dignidade e respeito. Primeiro, se a área ocupada representa perigo de vida para os moradores. O poder público é obrigado a remover os moradores imediatamente, mesmo que precise pagar o aluguel social para as famílias. Segundo, se a área ocupada for de utilidade pública, mas, nesse caso, somente depois que outras moradias dignas estiverem prontas para serem ocupadas pelas famílias a serem removidas. Terceiro, se a área ocupada for de preservação ambiental, mas nas mesmas condições do segundo caso.
Por fim, que a memória dos principais fatos, ocorridos antes, durante e depois do despejo dos moradores da Ocupação “Sonho Real”, fortaleça o nosso compromisso com a construção de uma nova sociedade: a sociedade do “bem-viver” e do “bem-conviver”, que é um “Mundo Novo” e, à luz da Fé, o Reino de Deus acontecendo na história do ser humano e da Irmã Mãe Terra Nossa Casa Comum. O “sonho real” está vivo! Ele continua! É o nosso sonho!
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Ocupação “Sonho Real”: um despejo diabólico. Artigo de Marcos Sassatelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU