17 Fevereiro 2014
"Como pode a Comissão dizer que não existe 'comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais', se foram justamente os “órgãos públicos estatais” que praticaram o crime?", escreve Fr. Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP).
Eis o artigo.
Nove anos se passaram. 16 de fevereiro de 2005 é uma data que não pode ser esquecida. O “Sonho Real” não morreu; ele está vivo. O “Sonho Real” é a Utopia do “Bem-Viver”, é o Reino de Deus acontecendo.
Nestes dias, numa atitude de profunda meditação, assisti - mais uma vez - ao documentário: “Sonho Real: uma História de Luta por Moradia” (de uma hora de duração). A indignação, vivida na epoca, irrompeu novamente dentro de mim com toda força e confirmou-me no compromisso intransigente com a defesa dos Direitos Humanos e a luta pela Justiça e Paz, que é, ao mesmo tempo, um desafio e uma conquista.
“Fazendo a memória”, ou seja, tornando presente o que aconteceu na Ocupação “Sonho Real” do Parque Oeste Industrial, em Goiânia, quero fortalecer a esperança dos/as que acreditam que um dia tamanha barbárie nunca mais irá acontecer. Precisamos apressar esse dia. Que a união dos pequenos e de todos os que lutam por um mundo novo “apresse o dia por nós esperado: de irmãos/ãs libertados/as de toda injustiça, de todo pecado” (Campanha da Fraternidade 1987 - Refrão do Canto de Comunhão).
Relembremos, mais uma vez, os principais fatos do despejo da Ocupação “Sonho Real”. Apesar de o governador Marconi Perillo ter prometido publicamente que não iria mandar retirar as famílias da Ocupação, de 6 a 15 de fevereiro de 2005, de 0 às 6h, a Polícia Militar do Estado de Goiás começou a ação de reintegração de posse, realizando a chamada "Operação Inquietação", que foram dez dias de tortura física e psicológica coletiva. Cercou a área com viaturas, impediu a entrada e a saída de pessoas e cortou o fornecimento de energia elétrica. Com as sirenes ligadas, com o barulho de disparos de armas de fogo, com a explosão de bombas de efeito moral, gás de pimenta e lacrimogêneo, a Polícia Militar promoveu o terror entre os Moradores da Ocupação e provocou traumas psicológicos nas crianças. Que maldade! Nenhuma lei permite uma Operação noturna criminosa como essa.
No dia 16 de fevereiro de 2005, a Polícia Militar do Estado de Goiás realizou uma verdadeira Operação Militar de Guerra, cinicamente chamada "Operação Triunfo". Em uma hora e quarenta e cinco minutos, cerca de 14.mil pessoas foram despejadas de suas moradias de maneira violenta, truculenta e sem nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana. A Operação Militar produziu duas vítimas fatais (Pedro e Vagner), 16 feridos à bala, tornando-se um desses paraplégico (Marcelo Henrique) e 800 pessoas detidas (suspeita-se com razão que o número dos mortos e feridos seja bem maior). Esses crimes - apesar de muitas promessas - continuam até hoje impunes.
Nessa Operação Militar criminosa, ilegal e imoral, todos os Direitos Humanos fundamentais foram gravemente violados: o Direito à Vida, o Direito à Moradia, o Direito ao Trabalho, o Direito à Saúde, o Direito à Alimentação e à Água, os Direitos da Criança e do Adolescente, os Direitos da Mulher, os Direitos dos Idosos e os Direitos das Pessoas com Necessidades Especiais.
Depois do despejo forçado e violento, e depois de passar uma noite acampadas na Catedral de Goiânia - onde aconteceu também o velório de Vagner e Pedro num clima de muita indignação e sofrimento - cerca de mil famílias (aproximadamente 2.500 pessoas), que não tinham para onde ir, ficaram alojadas nos Ginásios de Esportes dos Bairros Novo Horizonte e Capuava (por mais de três meses) e, em seguida, no Acampamento do Grajaú (por mais de três anos) como verdadeiros refugiados de guerra. Nesse período, diversas pessoas - sobretudo crianças e idosos - morreram em consequência das condições subumanas de vida, vítimas do descaso do Poder Público do Estado de Goiás e da Prefeitura de Goiânia. Foi uma iniquidade humana gritante, cometida pelo Poder Público e hipocritamente legalizada, que - até hoje - clama por justiça diante de Deus.
No dia 24 de fevereiro/05 - oito dias depois da Operação “Triunfo” - a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República criou uma Comissão Especial com o objetivo de apurar as violações aos Direitos Humanos na Operação de reintegração de posse, realizada por Policiais Militares no Parque Oeste Industrial em Goiânia, Estado de Goiás, no dia 16 de fevereiro do mesmo ano (Cf. Resolução N. 1, DOU - Seção 2, 24/02/05).
A Comissão analisou os três requisitos que a Emenda Constitucional, N. 45, considera necessários para a “federalização” (Incidente de Deslocamento de Competência para a Justiça Federal - IDC) dos crimes contra os Direitos Humanos: primeiro: que haja grave violação dos Direitos Humanos; segundo: que o fato praticado seja passível de sujeitar a União à responsabilidade internacional, por obrigações anteriormente assumidas em tratados e em plena vigência no país; terceiro e último: que exista algum comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais, ocasionando a necessidade de ruptura no pacto federativo para se restaurar a normalidade institucional e assegurar a proteção dos Direitos Humanos.
A Comissão reconheceu a existência do primeiro e do segundo requisitos, mas não reconheceu a existência do terceiro. Portanto, no dia 10 de abril/06, o relator da Comissão, Procurador da República Cláudio Drewes José de Siqueira - apoiado em seu parecer pelos demais membros da Comissão - concluiu: “Sugiro o não deslocamento da competência para Justiça Federal do caso Parque Oeste Industrial, no que se refere à apuração e ao julgamento dos crimes ocorridos na desocupação, por não restarem preenchidos todos os requisitos constitucionalmente exigidos, recomendando, no entanto, pela continuidade da observação pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana dos trabalhos da Justiça Estadual” (Cf. Relatório da Comissão Especial).
O parecer da Comissão foi (e continua sendo) uma grande decepção para todos e todas, que lutam pelos Direitos Humanos e pela Justiça e Paz. Como pode a Comissão dizer que não existe “comprometimento institucional viciado, que afete a estrutura e as relações independentes dos órgãos públicos estatais” (terceiro requisito), se foram justamente os “órgãos públicos estatais” que praticaram o crime?
Independentemente da constitucionalidade ou não da liminar de reintegração de posse da Juíza Substituta Dra. Grace Corrêa Pereira, a maneira como a liminar foi cumprida (as cínicas Operações “Inquietação” e “Triunfo”) foi claramente inconstitucional, antiética e criminosa. Não é possível que os membros da Comissão Especial não tenham enxergado isso. Até um cego enxergaria. Vale o ditado: não existe pior cego de quem não quer enxergar.
Diante de fatos tão evidentes, o não reconhecimento por parte da Comissão Especial do terceiro requisito - exigido pela Emenda Constitucional, N. 45, para a “federalização” das investigações - dá a impressão de um conluio entre o Estado e a Comissão e levanta suspeitas (dúvidas e interrogações) a respeito da lisura do procedimento investigativo da mesma.
Se foi a Justiça Estadual que autorizou essas Operações criminosas (a liminar poderia ter sido cumprida de outro jeito e depois de preparar um lugar digno para os moradores), é evidente que ela não tem as mínimas condições para investigar e julgar a si mesma e o Governo do Estado de Goiás. É uma questão de lógica.
No caso do despejo da Ocupação “Sonho Real”, trata-se, antes de tudo, de investigar e julgar as próprias Operações “Inquietação” e “Triunfo” como Operações criminosas, enquanto tais. Mesmo não considerando os abusos ou os excessos cometidos por alguns Militares (que também devem ser investigados e julgados), essas Operações são um crime planejado e legalmente autorizado pela Justiça (melhor seria dizer, Injustiça) Estadual. O despejo de 14 mil pessoas em uma hora e 45 minutos (sem saber para onde levar essas pessoas) é uma violência e uma iniquidade humana premeditada, claramente inconstitucional e antiética. O Poder Público, Estadual e Municipal, foi total e covardemente subserviente aos interesses financeiros expeculativos dos “coroneis urbanos” (leia: os donos das grandes imobiliárias).
Portanto, nesse caso, o criminoso é o Estado de Goiás, com a conivência do Judiciário e da Prefeitura de Goiânia. Quem deve responder por ele é o então Governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo e seus auxiliares imediatos, o Secretário de Segurança Pública e Justiça do Estado de Goiás, Jônathas Silva e o Comandante Geral da Polícia Militar do mesmo Estado, Cel. Marciano Basílio de Queiroz. São eles que - como já disse em outros escritos - devem ser processados e julgados. Ora, pela lógica, se o criminoso é o Estado de Goiás, ele não vai investigar a si mesmo. Cai, assim, por terra o parecer da Comissão Especial a respeito do terceiro requisito, acima mencionado.
Enfim (falo como alguém que, afetiva e efetivamente solidário com os Sem-Teto, experienciou e viveu de perto o bárbaro despejo de Goiânia), a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República - presidida atualmente pela Ministra, Professora Maria do Rosário Nunes - tem a obrigação constitucional e, sobretudo, ética de “federalizar” - com urgência e sem enrolação - esse crime bárbaro do Parque Oeste Industrial, em Goiânia - GO.
Infelizmente, apesar de tantos discursos e tantas promessas, até o momento, nada foi feito de concreto. São nove anos de omissão do Governo Federal. Com isso, ele se torna conivente e corresponsável da pior barbárie de toda a história de Goiânia (e uma das piores do Estado de Goiás e do Brasil), praticada contra os Direitos Humanos.
Enfim, renovo o pedido (já feito anteriormente), que é, ao mesmo tempo, uma advertência: não comprem apartamentos nos empreendimentos imobiliários, que começaram a ser implantados no terreno da ex-Ocupação “Sonho Real”, no Parque Oeste Industrial, em Goiânia. Ninguém pode ser feliz num apartamento construído em cima de um terreno ensopado de sangue inocente. É um terreno que deve ser resgatado da expeculação imobiliária, desapropriado por interesse social e utilizado em benefício dos trabalhadores/as com obras públicas, como: escola, hospital, parque de diversões e outras. Só assim voltará a ser um terreno abençoado por Deus.
Termino, fazendo minhas as palavras do Juíz de direito, Gerivaldo Neiva: “Apesar da Lei, do Poder e das Sentenças dos Juízes, eu creio na Justiça!” (www.gerivaldoneiva.com - 23/01/12).
Assine o Abaixo-assinado “Federalização já” clicando aqui.
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16 de fevereiro de 2005: uma data que não pode ser esquecida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU