09 Dezembro 2024
"Que a Rússia é invasora, é claro! Mas quem não é? As invasões estão enraizadas na alma da Europa. E a América, talvez para compensar a sua tardia participação em expedições escravagistas e coloniais, tem, desde que se tornou grande, aproveitado cada vantagem que os seus dólares e mísseis lhe proporcionam para desfigurar o destino de inúmeras nações em todo o mundo", escreve Manuel Marques Carlos, escritor.
Num discurso apelativo durante a visita presidencial a Moscou, em 2009, Obama afirmou que "a América quer uma Rússia forte, pacífica e próspera". Estas palavras foram repetidas pelo então vice-secretário de estado, Antony Blinken, numa entrevista em 2017. A aproximação entre a Casa Branca e o Kremlin começou a dar errado precisamente quando ficou claro que não tinham o mesmo entendimento do que significa uma Rússia forte. Para Washington, uma Rússia forte traduz-se num Estado que não tem ambições imperiais, que consegue enquadrar-se adequadamente na sua esfera de influência. No entanto, na visão do Kremlin, uma Rússia forte é sinónimo de um Estado que não é satélite de ninguém, uma nação que lembra o grande império russo no auge da sua glória. Estas visões contrastantes sobre o que a Rússia precisa de ser explicam o conflito em curso em pleno coração da Europa.
Embora a maior parte das pessoas no Ocidente já tenha decidido que as ambições geopolíticas de Vladimir Putin são a causa da guerra russo-ucraniana, a verdade é que este não é o quadro geral. As evidências sugerem que há um segundo ego envolvido, que viu o desejo de Kiev de aderir à NATO como a munição certa para terceirizar um conflito que não poderia travar diretamente, com vista a instigar a mudança de regime no Kremlin, conter o avanço da influência de Moscou, paralisar a economia russa, expor as fraquezas do exército russo, minar a aproximação entre Moscou e Berlim, e reforçar a consciência dos europeus sobre a importância da América na sua própria segurança.
A caminho do terceiro ano, o exército russo, que antes desta prolongada ‘‘operação especial’’ era percebido como uma força militar demolidora, vê agora o seu status ser fortemente questionado; a Alemanha, que era um dos principais parceiros comerciais da Rússia na Europa, tornou-se o terceiro maior financiador do esforço de guerra ucraniano; a economia russa, que atravessava uma das suas melhores fases desde os tempos soviéticos, vem sendo pressionada a desacelerar com inúmeros pacotes de sanções; e Putin, o até então aparentemente líder vitalício, vê de alguma forma o seu futuro político refém do dimensão da vitória no final da guerra.
Dito isto, os termos das guerras por procuração se acumulam neste conflito e são irrefutáveis. Revelam claramente que o inimigo da Federação nesta contenda é muito maior do que o exército ucraniano. Embora seja inegável que todo este caos também tem muito a ver com o orgulho da Rússia, esta guerra é principalmente sobre o orgulho da América, que pretende consolidar a sua posição de número um sem ser seguido por um número dois – ou pelo menos não por um número dois tão determinado em conquistar o trono. E se a isto somarmos a adesão da Suécia e da Finlândia à aliança transatlântica após rumores de que assim que a Rússia terminasse na Ucrânia avançaria para outras partes da Europa, torna-se mais evidente que Washington precisa continuar a retratar Moscou como um monstro insaciável, já que a subserviência dos europeus em grande parte depende disso.
Na entrevista de fevereiro com o antigo âncora da Fox News, Tucker Carlson, Putin revelou que foi repetidamente rejeitado pelos presidentes Bill Clinton e George Bush, ambas as vezes em que expressou o desejo da Rússia de aderir à OTAN. Numa terceira tentativa de regenerar os laços com o Ocidente, propôs a criação de um sistema comum de defesa antimíssil, que também foi solenemente rejeitado.
A recusa a uma parceria estratégica que iria ajudar a estancar as fissuras herdadas da Guerra Fria sugere uma razão óbvia: Washington precisa manter o Kremlin do lado oposto da trincheira da OTAN, ou pelo menos no lado de fora, o mais longe possível do perímetro da aliança, para não atrapalhar o seu domínio sobre a Europa e, consequentemente, enfraquecer o seu posicionamento global.
Vale recordar que em 2005, Bush, um dos presidentes americanos que recusou a entrada da Federação Russa na OTAN, anunciou o apoio dos Estados Unidos à adesão da Ucrânia à aliança. Paralelamente, quando analisamos a composição da organização, especialmente os Estados-membros que foram admitidos nos últimos vinte e cinco anos, torna-se claro que não há nenhuma razão lógica para vetar a adesão da Rússia. Senão, que vantagens Estados como a Lituânia, Letônia e Monte Negro, minúsculos e com indústrias de defesa insipientes, podem oferecer a OTAN e a Rússia não? Aqui, certamente o critério da democracia consolidada também não se aplica. A Turquia não é um grande exemplo de democracia liberal, mas é um membro histórico da coligação.
A única explicação que faz algum sentido é que acolher a Rússia na aliança transatlântica passa uma mensagem errada aos europeus. Desconstrói a narrativa sobre a força ‘maligna’ que opera o Kremlin e que precisa ser desmantelada – uma caricatura amplamente propagada no Ocidente, de um monstro terrível que os europeus aprenderam a odiar de forma religiosa. No entanto, quando os líderes europeus perceberem que a sua fé na narrativa exagerada de Washington nublou o seu julgamento, verão que, apesar de certos excessos, o regime de Moscou não é nenhuma espécie de aberração, é apenas o último garanhão na Europa que se recusa a ser castrado. Por conseguinte, deixarão de viver assombrados, e desse dia em diante, a América e a OTAN não serão mais centrais.
Embora a China, a Coreia do Norte e o Irã também estejam no Radar da NATO, o alvo significativo da aliança é a Federação Russa, que, como sucessora da União Soviética, herdou o status de adversário histórico da América na liderança global. O argumento de que as bases americanas na Alemanha, Bélgica, Espanha, Grécia, Mar Negro, Polônia, Portugal, Reino Unido e nos Balcãs servem para proteger a Europa da ameaça iraniana é claramente um falso pretexto. Os europeus não precisam de ajuda externa para se defenderem dos mísseis balísticos do Irã. Muitas das forças nacionais da Europa têm mais poder de fogo do que a Guarda Revolucionária Islâmica. E se considerarmos a unidade dos europeus, torna-se ainda mais evidente que o velho continente não necessita da ajuda de terceiros para travar um exército comparativamente marginal.
Num cenário em que a Rússia passa de nação hostil a aliada, é provável que as bases americanas e da OTAN na Europa corram o risco de serem desativadas, já que muitos dos estados-membros terão sérias dificuldades em justificar a continuidade de contingentes militares estrangeiros nos seus territórios. Mas se a aliança se mantiver, a Rússia também quererá participar na guarnição da Europa, o que tenderá a expandir a sua influência em zonas sob o domínio da América. Isto é obviamente inaceitável para Washington, uma vez que o declínio da influência militar pode abrir caminho ao declínio de outros tipos influência – política, econômica, cultural e até fazer com que o espírito avassalador da Europa, nocauteado na Segunda Guerra Mundial, se reanime e entre na fila para disputar a coroa.
Nestes tempos pós-Guerra Fria, marcados pela ampla manipulação da opinião pública, os corações e as mentes tornaram-se os principais campos de batalha entre Washington e Moscou. Embora a Rússia também tem somado alguns pontos, os Estados Unidos têm sido retumbantes devido a sua notável capacidade de transformar o seu medo de ser derrotado pela Federação Russa numa ameaça crítica à segurança da Europa. E hoje, o medo está tão impregnado na percepção de Bruxelas que desconsidera que com a abordagem certa, é possível trazer a Rússia de volta a família europeia.
Mas mesmo que as desconfianças e os receios entre europeus e russos sejam justificáveis, não existem diferenças que sejam verdadeiramente irreconciliáveis, que impeçam povos da mesma matriz de viverem lado a lado, superarem as divergências e avançarem de qualquer forma. Se existe uma nação no espaço europeu cujo crime merece a cadeira elétrica, essa nação é a Alemanha. Nada do que os russos disseram ou fizeram em oitenta anos se compara aos doze anos de terror da Alemanha nazi. Mas se apesar de tudo foi possível deixar de lado velhas mágoas, perdoar, sarar as feridas e seguir em frente, por que não é possível dar à Rússia a chance de se tornar parte de uma irmandade europeia mais ampla, algo que ela já é histórica, cultural e geograficamente?
Que a Rússia é invasora, é claro! Mas quem não é? As invasões estão enraizadas na alma da Europa. E a América, talvez para compensar a sua tardia participação em expedições esclavagistas e coloniais, tem, desde que se tornou grande, aproveitado cada vantagem que os seus dólares e mísseis lhe proporcionam para desfigurar o destino de inúmeras nações em todo o mundo. A ocupação catastrófica do Haiti; a participação no assassinato de Lumumba; a deposição de Nkrumah e Allende; o embargo injusto e cruel a Cuba; os bombardeamentos na Síria; o caos no Iraque, no Afeganistão e na Líbia – são apenas alguns dos empreendimentos sangrentos da América ao longo da sua jornada insana.
Hoje, quando se observa o desnorte do Congo, sessenta anos após a morte de Lumumba, fica evidente o impacto sísmico que o assassinato do melhor líder de uma nação na fase mais decisiva da sua história é capaz de causar. Portanto, o Congo, sob diversos parâmetros, é o melhor exemplo do pior que se pode fazer a uma nação, e não foram os russos, os chineses, os norte-coreanos ou os iranianos que fizeram isso. Tão grave quanto as barbáries é o cinismo com que o Ocidente minimiza os seus próprios pecados e inflama os defeitos dos seus adversários. E o que é surpreendente é que esta grosseira hipocrisia não se esgota nas elites. Mesmo as pessoas comuns que não estão envolvidas com nenhuma forma de poder fazem vista grossa às atrocidades cometidas pelos seus governos fora de porta, preferindo acreditar que são apenas incidentes isolados ou danos colaterais resultantes de esforços genuínos para a democratização do mundo.
O ponto mais alto de todo este cinismo, geralmente de fundo racista, encontra-se na mentalidade de grande parte dos académicos ocidentais, cuja unanimidade relativamente à ameaça que o grupo de nações consideradas hostis supostamente representa para a paz mundial contrasta com o que recomenda à academia – mesmo nos casos em que a direção apontada pelas evidências parece óbvia. Este tipo de certeza popular, ou unanimidade coletiva, que não dá espaço ao mínimo de dúvida racional, deixa claro que, tal como o chamado novo eixo do mal, o Ocidente também tem se servido da propaganda e da desinformação para ‘‘formatar’’ a opinião dos seus cidadãos.
Conspirar contra o Kremlin é uma forma equivocada de influenciar a política interna russa. Esta estratégia funcionou há pouco mais de trinta anos, nos últimos suspiros da União Soviética. Mas não funciona mais. Ainda é certamente útil em muitos lugares – mas não contra um regime altamente coeso – não contra a Federação Russa. Insistir em desmantelar os tentáculos de Moscou apenas dá ao regime mais munições para continuar a silenciar a dissidência e reforçar os sentimentos nacionais. E é precisamente para blindar o nacionalismo russo que surge a infame mídia russa – muitos diriam terrível, mas compreensível – um país praticamente sitiado, cujo adversário e os seus satélites atiram de todas as direções, não pode se dar ao luxo de ter uma imprensa que fragmenta a opinião pública – não, se quiser virar o jogo, ou pelo menos resistir. Nem o ocidente se permite ter uma mídia plural, que opere fora do espectro transatlântico.
As práticas de que a imprensa russa é amplamente acusada não são estranhas à atuação da grande mídia ocidental. A única diferença é que a comunicação social russa é autêntica no seu alinhamento político – não finge ser plural. De qualquer modo, todas padecem da mesma doença – a agenda estatal. O tratamento depreciativo que os veículos de mídia ocidentais dão aos regimes não alinhados na órbita de Washington, como forma de fortalecer a unidade transatlântica, expõe dramaticamente o casamento entre a pauta editorial da chamada imprensa do ‘‘mundo livre’’ e as agendas estatais. Esta abordagem unilateral explica porquê parece que os meios de comunicação transatlânticos estão sempre tentando convencer o público da suposta superioridade moral do Ocidente. Explica também porque razão, nos Estados Unidos, os militares que destruíram o Iraque são amplamente apresentados como homens e mulheres valentes que fizeram enormes sacrifícios pela segurança nacional. Se transformar agressores em heróis nacionais não é doutrinação, então precisamos ressignificar o conceito de doutrinação.
Como quase todas as disputas pelo trono, a Nova Guerra Fria também não é entre o número dois e o número quatro. É entre o número um e o número dois. O resto são apenas meios de manutenção e de conquista do poder. Defender que o Ocidente está a travar uma guerra contra a Rússia é apenas uma forma pomposa que a Europa encontrou de se sentir nobre entre os súbditos da América. Os europeus precisam compreender que o lema de que ‘‘o inimigo do seu melhor amigo também é seu inimigo’’, não se aplica quando esse indivíduo é o seu vizinho mais poderoso. O melhor a fazer é reconciliá-los, para evitar que comecem a chover bombas no seu quintal. Tentar pessoalizar a rivalidade entre estes Golias, depois de escolher um lado, também não facilita a compressão do problema. É uma maneira pouco sensata de encarar a questão. É simplificar demais as causas de uma guerra assente num perpétuo duelo de influências que remonta a quase um século. E no caso do desdobramento na Ucrânia, embora pareça ser um ato inequívoco de agressão, é na verdade uma ação preventiva de autodefesa – o último recurso da Rússia para parar a OTAN onde está, depois de várias tentativas fracassadas de resolver a questão através de meios diplomáticos.
Até aqui, se a Europa pode aprender alguma coisa com este conflito que eclodiu dentro das suas fronteiras, é que quanto mais o Estado russo se vê forçado a defender-se, mais perigoso se torna, e quanto mais isto acontece, mais insegura consegue deixar todo o espaço europeu. Isso deve forçar Bruxelas a considerar outro tipo de abordagem. Infelizmente, os líderes europeus parecem estar tão preocupados em cimentar a glória da América, que se esqueceram do que é mais importante: a Europa. Existem formas não explosivas de moldar o rumo da política interna da Rússia, que não incluem a militarização da sua vizinhança com armamento pesado dos Estados Unidos. E tratar Kremlin como o gigante que é também ajuda.
Como é óbvio, ao longo desta guerra, a Ucrânia continuará a tentar, em vão, reafirmar as prerrogativas da sua soberania. Mas no final não terá outra escolha senão renunciar ao sonho de compartilhar a armadura da OTAN, lamber as feridas e seguir em frente. Alguém poderia perguntar: ‘‘O que o povo ucraniano ganha com isso?’’ O óbvio: a paz – a chance de pôr fim a uma gigantesca trilha de corpos que se alarga todos os dias, bem como encerrar o ciclo de destruição massiva da sua preciosa infraestrutura. Isso é tudo o que uma nação pequena ganha quando se deixa arrastar para uma guerra que não é sua. Nós, em Angola, também aprendemos isso do jeito difícil.
Noutras circunstâncias, diria que transformar o direito de escolha de um Estado soberano numa linha vermelha é absolutamente injusto e, por conseguinte, errado. O problema é que a justiça não é o critério que define o certo e o errado na política internacional. O certo e o errado dependem dos atores, dos lugares e dos interesses envolvidos. E na arena interestatal estas variáveis estão sempre a mudar, e com elas o significado de justiça. Ou, na melhor das hipóteses, na política internacional, a justiça é subjetiva, como fica expresso na resposta dura do Ocidente à Rússia – e, em contraste, na conivência da Europa e no patrocínio amplo e inabalável dos Estados Unidos ao genocídio de Israel em Gaza.
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Os perigos de um mundo unipolar. Artigo de Manuel Marques Carlos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU