06 Dezembro 2024
"Novo documentário acompanha as viagens pelo mundo do ex-presidente uruguaio, com sua mensagem humanista e ecológica. Não cai no erro de retratá-lo como “apóstolo gratiluz”, mas combatente lúcido, íntegro e até feroz contra o neoliberalismo" escreve José Geraldo Couto, crítico de cinema, em artigo publicado por Outras Palavras, 05-12-2024.
Entra em cartaz nesta quinta-feira, infelizmente em poucas salas, um documentário precioso: o uruguaio Os sonhos de Pepe, de Pablo Trobo, que registra as ideias e ações de José “Pepe” Mujica, em especial suas viagens pelo mundo durante e depois de seu mandato como presidente do Uruguai (2010-15).
O risco que se corre ao retratar uma figura gigantesca da história como Mujica é cair na hagiografia, na exaltação chapa-branca de uma personalidade sem mácula. O documentário de Trobo dribla esse perigo ao se concentrar na pregação do retratado nos anos de maturidade. É o périplo de um missionário a divulgar nos quatro cantos do mundo sua visão humanista, ecológica e igualitária.
O filme se desenvolve então em torno dessas jornadas, partindo sempre da pequena chácara de Mujica nos arredores de Montevidéu para lugares tão diversos quanto Estados Unidos, Brasil, Reino Unido e Japão.
Em nosso tempo de culto às celebridades, ele é recebido em toda parte com o entusiasmo devotado aos pop-stars por multidões de pessoas de todas as idades, mas sobretudo jovens. Para muitos, talvez se trate apenas de um velhinho simpático e pitoresco que cultiva suas próprias flores e dirige seu fusquinha do século passado. Mas à medida que o filme avança vemos que não se trata de um apóstolo gratiluz a espalhar frases edificantes de autoajuda, mas sim de um combatente – um combatente lúcido, íntegro e ocasionalmente feroz.
Em Oxford, por exemplo, declara: “Sou uma ovelha negra na história desta universidade. Sou antimonarquista, republicano, anticolonialista. Não venho aqui para adulá-los. Venho para espicaçá-los para que se deem conta do mundo em que nos toca viver.”
E que mundo é esse? Um pouco mais adiante Mujica expõe com clareza cristalina a sua visão: “Temos mais recursos do que nunca. Mas estamos destruindo o planeta. Por que se necessita hoje de uma Jacuzzi que usa 200 ou 250 litros de água para banhar um velho pelotudo? A puta que o pariu! Se multiplicar 250 litros por 7 bilhões, vai precisar de um rio como o Amazonas a cada banho. (…) Enquanto isso, na África, uma mulher anda cinco quilômetros para conseguir um pouco de água”.
Conduzido pelo discurso caloroso de Mujica, o filme ocasionalmente se limita a ilustrar o que ele diz com imagens documentais. Quando ele fala, por exemplo, sobre a existência, no deserto do Atacama, de uma montanha de roupas descartadas por não ter mais valor de mercado, vemos em imagens aéreas impressionantes a tal montanha. Não são palavras vãs; têm espessura e dureza.
No mais, o que se vê é Mujica e sua esposa, a senadora Lucía Topolansky, viajando pelo planeta em trens, aviões, automóveis, ou caminhando pelas ruas, falando nos fóruns mais importantes ou conversando com pessoas anônimas.
Conectando e ilustrando esses pronunciamentos e conversas, introduz-se todo tipo de imagem (natureza virgem ou devastada, fábricas, fazendas, pastagens, combates, favelas, passeatas, cidades abandonadas ou destruídas pela guerra…) e todo tipo de recurso audiovisual (animação, CGI, material de arquivo, time-lapse), formando um conjunto dinâmico que potencializa a vitalidade das palavras do retratado.
A singularidade de Mujica, entre os estadistas de nosso tempo, consiste em conectar, como dimensões inextricáveis, a atuação política e a vida pessoal. Sua reflexão sobre a acumulação e o consumo excessivos induzidos pelo neoliberalismo voraz une as duas coisas. A seu ver, há que combater esse movimento suicida que conduz à destruição do planeta, à opressão dos povos e à infelicidade dos indivíduos.
Aos 89 anos, Mujica parece ter vivido muitas vidas. Por isso fala com tanta propriedade sobre o tempo e o que fazemos com ele. A trilha sonora sublinha isso de forma sutil e sagaz.
São três as músicas que se alternam nos vários momentos do documentário: nas viagens, o “Trenzinho do caipira”, que faz parte das Bachianas nº 2, de Villa-Lobos; no triunfo das ovações públicas, a ária “Nessun dorma”, da ópera Turandot, de Puccini; nos momentos mais íntimos e autorreflexivos, o tango Volver, de Gardel e Le Pera.
As três obras são tocadas em versões instrumentais, sem letra, mas o espectador pode suprir mentalmente as palavras. No primeiro caso, “lá vai o trem com o menino,/ lá vai a vida a rodar”. No segundo, “Vincerò! Vincerò!” (Vencerei!). No terceiro, “es un soplo la vida”. A vida é uma viagem, a vida é combate, a vida é um sopro: eis a lição de Mujica, esse homem imenso.
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Na estrada com Pepe Mujica. Artigo de José Geraldo Couto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU