Os surpreendentes ‘escritores’ do Novo Testamento. Artigo de Eduardo Hoornaert

Foto: Adam Kucharczyk | Canva

03 Dezembro 2024

"Enfim, a tese de Cândida Moss, embora largamente baseada em suposições, ajuda a assentar nossa reflexão sobre Jesus em bases mais históricas e nos instiga a estudar melhor o ambiente escravocrata em que surgiu o cristianismo", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).

Eis o texto.

A biblista inglesa Cândida Moss publicou recentemente um livro instigante e intrigante, intitulado: God’s Ghostwriters: Enslaved Chistians and the Making of the Bible (New York, Little Brown, 2024), em que levanta uma questão nova: será que os autores reconhecidos dos textos do Novo Testamento, como Paulo, Pedro, Mateus, Lucas ou João (Marcos é um caso à parte, como se verá em seguida), efetivamente ‘escreveram’ seus textos, ou há quem escrevia por eles? Ou, de modo mais direto: interferiram, na escrita (e talvez até na redação) de textos fundantes do Novo Testamento, cristãos escravizados, contratados para escrever textos a serem posteriormente creditados aos que comumente consideramos autores do Novo Testamento?

Livro "Ghostwiters de Deus: cristãos escravizados e a criação da Bíblia", de Cândida Moss (Editora Little, Brown and Company, 2024).

Eis uma questão instigante, que nos leva a considerar a relação existente, em tempos de Jesus, entre alfabetização e escravidão. Na época do surgimento do cristianismo, apenas 5 a 10 % da população era alfabetizado. Os apóstolos, em geral, eram analfabetos, sendo Paulo de Tarso uma exceção. As sociedades, que viviam sob o comando do Império Romano, eram escravocratas.

Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam os próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto.

Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da moderna, atlântica, que mantinha os escravos no analfabetismo. Mas como, nos tempos do Império Romano, o ato de escrever era uma tarefa penosa, árdua e cansativa, havia casos de escravos alfabetizados que se punham a serviço de escritores analfabetos. A expressão ‘escritores analfabetos’ parece contraditória, mas ela expressa uma realidade. Estamos falando de uma época em que não existiam óculos (hoje, 40 % da população mundial dispõem [ou pode dispor] de óculos), em que a prolongação no ato de escrever provocava artrite, ou seja, desgaste das cartilagens dos dedos, uma época sem eletricidade, sem imprensa, sem meios de copiar textos mecânica ou digitalmente.

A tese de Cândida Moss implica em admitir que, ao longo dos primeiros duzentos anos da tradição cristã, os textos, salvo raras exceções, tenham sido escritos por cristãos escravizados ou ‘libertos’. Só a partir do século IV, tarefas como escrever, copiar e recopiar textos do Novo Testamento, foram assumidas por monges, nos mosteiros.

O caso de escravos ‘escritores’ fica patente nas Cartas de Paulo. Mesmo alfabetizado e muito culto, Paulo não costumava escrever suas cartas. No fim de diversas delas se encontra uma frase escrita por ele do próprio punho (em grego: ‘tè emè cheiri’, ‘com minha mão’) (2 Tess. 3, 17-18; Col. 3, 13; Gal. 6, 11; 1Cor. 16, 21; Filêmon, 19), como se fosse uma ‘assinatura’ a garantir a autoria intelectual de Paulo. No fim da Carta aos Gálatas (6, 11), Paulo insiste: essas palavras, escritas em grandes letras, são a prova que a carta é minha. E, no fim da Segunda Carta aos Tessalonicenses (3, 18), ele lembra: eu deixo um sinal (em grego: ‘sèmeion) em cada carta. Isso permite afirmar que Paulo tinha, então, à sua disposição, ‘discípulos de Jesus’, provavelmente escravos ou libertos, que executavam a tarefa de escrever suas cartas.

Mas será que esses ajudantes eram apenas ‘copistas’ a anotar textos ditados pelo apóstolo? Há uma frase, no fim da Carta aos Romanos, que nos faz duvidar. Em Romanos 16, 22, o ‘secretário’ Tértio envia uma saudação pessoal aos/às leitores/as da Carta, em que declara: eu, Tértio, que escrevi esta Carta, os saúdo no Senhor. Tértio, reconhecidamente, é nome de escravo. Então, surge a dúvida: Tértio só taquigrafou palavras ditadas por Paulo, ou teve um papel mais criativo na redação da carta? Não o sabemos. A mesma dúvida paira sobre o Evangelho de João. No fim (21, 24), se lê a seguinte frase: Este é o discípulo (em grego ‘mathètès’) que dá testemunho destas coisas e as pôs por escrito (em grego: ‘ho grapsas tauta’). Quem é esse discípulo? A frase ganha peso quando lemos os versículos seguintes: Ora, Jesus fez ainda muitas coisas. Se todas elas fossem escritas, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros. Um texto como esse faz crer que houve, ao longo dos setenta anos entre a morte de Jesus e a redação do Evangelho de João, um intenso intercâmbio, entre comunidades do discipulado de Jesus, de histórias oralmente contadas e recontadas. Que rol cabia a cristãos escravizados nesse intercâmbio?

A hipótese de Cândida Moss nos ajuda a refletir sobre a transmissão da mensagem cristã nos primeiros anos do movimento de Jesus. Em culturas orais costuma vigorar o ditado: quem conta um conto, aumenta um ponto. É de se supor que, ao longo das transmissões, de boca em boca, histórias (como a da transformação de água em vinho, nas Bodas de Caná, por exemplo, ou de Jesus andando sobre as águas) tenham assumido feições sempre mais impressionantes.

Os patentes exageros, recorrentes em relatos evangélicos, nos levam a fazer algumas perguntas: que relação existe entre essas histórias, oralmente transmitidas durante um período de pelo menos quarenta anos (entre a morte de Jesus e a redação do primeiro evangelho, o de Marcos, por volta do ano 70), e os escritos evangélicos que hoje lemos? Que papel coube a discípulos escravizados no ato de transmitir essas histórias? Qual a relação entre o texto que hoje lemos e a tradição oral anterior?

Enfim, a tese de Cândida Moss nos instiga a estudar com maior profundidade a relação entre cristianismo emergente e escravidão. O caso de Marcos evangelista nos faz refletir nesse sentido. Se acreditarmos numa informação do escritor cristão Papias de Hierápolis, por volta dos anos 120 dC, então é provável que Marcos tenha sido um escravo. Papias escreve: Marcos tornou-se intérprete de Pedro. Ele escreveu com precisão tudo o que Pedro se lembrava. Imaginamos Pedro, apóstolo analfabeto, sendo acompanhado por Marcos, escravo ou ‘liberto’, que sabia escrever e se tornou o primeiro evangelista. Marcos gozava de certa liberdade, ao escrever, ou transcrevia literalmente os ditos de Pedro? A repetição quase invariável da conjunção aditiva e (kai, em grego), ao longo de todo o Evangelho de Marcos, que aparece ligando os mais variados episódios, (e (Jesus) dizia, e entrava, e viajava, e subia etc.; raramente aparece um logo depois ou um naqueles dias) leva a pensar em sucessivas ‘sessões de ditado’: Pedro ‘ditando’ suas memórias a Marcos. Mas, será que Marcos foi apenas copista? Ele não retrabalhou o que Pedro lhe tinha contado? Um indicativo seria o fato de manifestos exageros em determinados relatos de Marcos. Por exemplo, o número de beneficiados, nas duas histórias da ‘Multiplicação de Pães’, é impressionante: em 6,30-56, são 5 mil que se saciam com pães e doze cestos a recolher os restos; em 8,1-10, 4 mil se saciam e sobram sete cestos com os restos de comida. O entusiasmo é patente. Entusiasmo de Pedro ou de Marcos? Ou de ambos? O ‘copista’ tinha como dar livre curso ao seu entusiasmo? Não sabemos.

Enfim, a tese de Cândida Moss, embora largamente baseada em suposições, ajuda a assentar nossa reflexão sobre Jesus em bases mais históricas e nos instiga a estudar melhor o ambiente escravocrata em que surgiu o cristianismo. Como o estudo da historiadora/exegeta Moss, passamos a perceber elementos da formação do cristianismo que não estamos acostumados a enxergar.

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