19 Fevereiro 2020
"Se responder a cada época da história quem é Jesus e o que significa acolhê-lo, segui-lo e anuncia-lo, o leitor tem em mãos um valioso material trabalhado com seriedade por Paolo Mascilongo", escreve Eliseu Wisniewski, Presbítero da Congregação da Missão Província do Sul (padres vicentinos), mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e Professor na Faculdade Vicentina (FAVIC), em artigo sobre o livro O discipulado no Novo Testamento. Reflexões bíblicas e espirituais (São Paulo: Paulinas, 2020, 232 p., 135 x 21mm – ISBN 9788535645774), de Paolo Mascilongo.
Muitas vezes e de diversos modos se falou sobre o discipulado cristão. Praticamente há uma década e meia, a Conferência de Aparecida (2007), trouxe no seu tema o binômio “discípulos missionários”, entendendo o discipulado como seguimento de Jesus, enquanto continuação de sua obra. No entanto, não é porque já falamos de um assunto que ele esteja resolvido. O que a primeira vista pode parecer óbvio, na verdade, não é óbvio. Daí sua relevância e necessidade de retomar mais uma vez este tema essencial para a vida cristã.
Paolo Mascilongo (1969) doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de Sagradas Escrituras e membro do Setor de Apostolado Bíblico da Conferência Nacional Italiana – na obra: O discipulado no Novo Testamento. Reflexões bíblicas e espirituais - descreve o discipulado à luz do Novo Testamento (NT). A volta às fontes e a frequentação direta do texto bíblico permanecem um elemento imprescindível da experiência e da compreensão da vida cristã, portanto, também do discipulado. É nelas que o cristão encontra o critério da verdade do próprio ser e do próprio agir como seguidor de Jesus. Quanto mais o anúncio cristão estiver ancorado na experiência original descrita na Escritura, mais será capaz, inclusive hoje, de fascinar e atingir intimamente quem dele se aproximar sem preconceito.
O presente livro quer favorecer o contato com a riqueza da reflexão dos autores neotestamentários e busca responder as seguintes perguntas: O que significa e o que implica ser discípulo de Jesus Cristo, segundo o NT? Como são descritos o nascimento e o desenvolvimento do discipulado cristão? Que orientações podem ser dadas à vida cristã? Traçando as linhas mestras sobre o discipulado, o autor, esclarece que esse tema se mostra vasto e complexo, pois, de um lado o NT é um conjunto de textos muito diferentes entre si (uma coisa é analisar um Evangelho, texto narrativo; outra, bem diferente é abordar uma Carta, repleta de reflexões teológicas e exortações); o modo de falar do discipulado varia consideravelmente de livro para livro (cada evangelista ou autor do NT tem um vocabulário próprio e pode nuançar de modo diferente, expressões iguais), alguns livros do NT não falam de discipulado nem utilizam a palavra discípulo (outros vocábulos são utilizados: Doze, apóstolos).
Unindo o rigor da exegese, a facilidade de leitura e a máxima proximidade dos textos, o livro está subdividido em três partes: as duas primeiras são uma ampla apresentação dos textos do NT mais pertinentes ao discipulado: textos narrativos na primeira parte (os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos) e textos não narrativos na segunda parte (as Cartas e o Apocalipse); a terceira, mais breve, é uma síntese organizada dos principais resultados alcançados: traçando algumas linhas essenciais do discipulado cristão.
A primeira parte, intitulada “O discipulado nas narrativas do Novo Testamento” tem como objeto de estudo os livros nos quais prevalece a dimensão narrativa. As narrativas oferecem as principais informações e descrições da vida do discípulo conforme a apresenta o NT. O que significa seguir Jesus pode ser compreendido, sobretudo, observando aqueles que por primeiro de fato o seguiram, conforme é descrito em particular nos Evangelhos e nos Atos dos Apóstolos. Desta forma, o autor, sintetiza os traços do discipulado:
1) Marcos, o evangelho mais antigo (Mateus e Lucas de algum modo usaram o texto marcano, ampliando-o e modificando-o segundo suas próprias exigências), mostra a dependência dos discípulos de seu Mestre, a importância de sua relação com Ele e de sua permanência com Ele. Mais do que compreender, mais que agir, é decisivo a relação com Ele. Essa relação pode permanecer também se os discípulos fracassarem. Marcos insiste que se trata de uma relação assimétrica, na qual o elemento fundante (e fiel) é o próprio Deus, seu chamado. Tudo isso, em Marcos emerge da primeira até a última página, mais que em ensinamentos específicos (Mateus e Lucas fornecerão de maneira mais abundante reflexões e instruções de Jesus sobre a vida pedida a seus seguidores).
2) Mateus entrelaça três elementos fundamentais para o discipulado: a comunhão de vida com Jesus é o primeiro elemento fundamental. Jesus mesmo no Evangelho é aquele que chama para si convidando a esse compartilhamento de vida. Trata-se de uma comunhão particular, determinada pela pessoa de Jesus, que é o Deus-conosco, como se afirma sem hesitação no início e no fim do Evangelho, chamada a grande inclusão (1,23 e 28,20); o segundo elemento importante do discipulado mateano é o aprender de Jesus, o discipulado em sentido estrito. O convite a aprender percorre todo o Evangelho e no final se torna o convite a ensinar e a fazer discípulos. O aprender não é somente um repetir de palavras, mas prevê a implicação de toda a vida na intimidade com o mestre; a terceira característica emerge da breve passagem do capítulo onze: “Eu vos darei conforto [...]; encontrares conforto para vossa vida” (11,28.29-30). Esse conforto nasce da ligação entre Jesus e o Pai, que ele abre a todo discípulo. A ação de Jesus não somente abriu a relação de comunhão com Ele e entre irmãos, mas abriu realmente uma nova relação com Deus: a vida boa de discípulo não é mérito ou mera conquista humana, mas, de uma revelação gratuita de Deus.
3) Lucas–Atos: a obra completa de Lucas ajuda a entender a passagem entre o tempo posterior e o anterior do Jesus terreno descrito no Evangelho. O traço mais claro e caracterizador da concepção lucana do discipulado é a decisão de escrever a continuação do evento de Jesus nos Atos. A dupla pintura de Lucas veicula suas ideias mestras sobre os discípulos: a continuidade entre a situação de Jesus e a situação de seus seguidores, a ideia de testemunho, as diferenças entre apóstolos e seguidores posteriores, a missão de anunciar o Evangelho como prioritária para todo discípulo. A estrada do discipulado se encontra inevitavelmente com o plano divino que quer levar a salvação de Jerusalém até os confins da terra. Graças primeiro a Jesus e depois ao Espírito Santo, estes homens se encontram envolvidos em uma história maior que não é conduzida por eles, mas da qual e tornam atores necessários.
4) João: mediante uma técnica narrativa própria, com o amplo espaço dado a tantos personagens e a forte ligação entre discípulo e leitor, João pode narrar o discipulado em termos novos: fé, testemunho, amor, serviço, amizade, Espírito, comunhão. Os discípulos são os protagonistas dos comentários de João (dentro da narrativa, João intervém em numerosas ocasiões com seus próprios comentários que exprimem explicitamente um ponto de vista sobre os acontecimentos do evangelista, e não da história narrada) - assumindo duplo papel: em primeiro lugar, eles interpretam a experiência de Jesus à luz da Escritura; em segundo lugar, tornam-se figuras da fé pascal, crendo, após a sua ressurreição na Escritura e na palavra de Jesus, de que fizeram recordação. Nos capítulos 13-17 – João coloca imediatamente (13,1) toda a narrativa dentro da moldura do amor. Amor a Jesus e amor reciproco que se mostra no serviço: é o traço distintivo do discípulo. O capítulo 14 ressalta o tema da fé que não se desvincula do amor como condição para reconhecer em Jesus o Pai e reconhecer suas obras. O fruto do amor é a possibilidade de continuar a permanecer em comunhão com Jesus. Neste mesmo sentido entende-se o capítulo 16. O capítulo 15 fala dos frutos do discipulado e o tema da relação entre os discípulos e o mundo: o destino inevitável do discípulo é o ódio do mundo. O capítulo 17 é o ápice sobre o discipulado: Jesus pede ao Pai que proteja os discípulos no mundo e do maligno, que os torne uma só coisa e que sejam consagrados na verdade. No conjunto, os capítulos 13-17 do Evangelho permanecem para todo discípulo do Senhor uma atestação comovente da grandeza da missão que é chamado, e da comunhão com Deus, no Espírito, a que a vinda do Verbo na carne lhes deu acesso, enquanto o envio ao serviço e ao amor fraterno representa um dos ápices de todo o testemunho do NT sobre o discipulado.
A segunda parte explora as páginas (textos não narrativos do NT) com as quais alguns discípulos de Jesus – os autores das Cartas de Paulo, Pedro, João, Tiago, Judas, dos Hebreus e do Apocalipse – enriqueceram o testemunho do NT através de reflexões, exortações profissões de fé e argumentação teológicas:
1) As Cartas de Paulo: em nenhuma de suas Cartas são utilizados os vocábulos discipulado e discípulo, por isso o autor, recolhendo as temáticas que parecem mais características de seu pensamento, delineia alguns elementos da concepção paulina da vida cristã, partindo de algumas de suas Cartas:
a) Carta aos Romanos: em primeiro lugar se é discípulo por uma vocação; em segundo lugar, essa vocação apresenta a um serviço definitivo segundo uma pertença total a Cristo- vocação e serviço são para uma missão específica, qual seja, o anúncio do Evangelho, o qual faz do anunciador uma pessoa segregada para este objetivo;
b) Cartas aos Coríntios: desenvolvendo o tema da identificação, que interessa e intersecciona a temática do discipulado de dois modos diferentes: no sentido do discípulo-Paulo que imita Cristo e na busca da imitação por parte de Paulo a seus destinatários. Outro elemento interessante presente na correspondência com os coríntios é a ligação entre o discípulo e a caridade;
c) Carta aos Gálatas: os capítulos 2 e 5 oferecem os elementos teológicos do discipulado: o cristão é aquele que vive em Cristo (identificação e pertença); é aquele que vive a liberdade - não como ausência de critérios morais ou pretexto para uma vida libertina. Ela se torna amor operativo, frequentemente no serviço aos outros. Exatamente neste ser livres quando se serve no amor está todo paradoxo da liberdade do cristão;
d) Carta aos Efésios: da visão eclesiológica (Igreja como corpo, da qual Cristo é a cabeça), o apóstolo, extrai consequências específicas para a existência cristã: a diversidade dos membros se torna chamado à comunhão e convite ao serviço da unidade eclesial ligado ao amor. A imagem do corpo aí utilizada evidencia o tema da comunhão;
e) Carta aos Filipenses: o tema da imitação liga-se diretamente à cristologia: ter os mesmos sentimentos de Cristo. Aqui se desenvolve também o tema da alegria: tornar plena a alegria;
f) Carta aos Colossenses: o discípulo é aquele que modela a vida segundo Cristo- é em Cristo que devem caminhar- possibilitando uma vida nova. A vida nova tem como raiz e seiva a ação de Cristo, passada e presente, e a salvação é o fruto da coparticipação em sua morte e ressurreição;
g) Cartas aos Tessalonicenses: as duas cartas colocam em evidência o chamado, para o discípulo à santidade ou santificação;
h) Cartas Pastorais (1 e 2 Timóteo, Tito): dentro do seguimento de Jesus Cristo emerge, com maior amplidão, o aspecto da reta compreensão e transmissão do ensinamento recebido, seja diretamente das palavras do Senhor, seja por meio dos apóstolos. O discípulo é aquele que é capaz de aprender retamente os ensinamentos dos mestres, que os vive integralmente e que está disposto a transmiti-lo a outros;
i) Carta aos Hebreus: os temas da fé e da perseverança caracterizam o discipulado: é preciso ter o olhar fixo em Jesus (12,2).
2) As Cartas Católicas e o Apocalipse:
a) Carta de Tiago: o caráter exortativo destaca a importância para o cristão viver a verdadeira sabedoria. Outro tema aí desenvolvido é o a riqueza relacionando-o entre fé e obras;
b) Carta de Pedro: desenvolve o tema do sofrimento do discípulo e o liga ao sofrimento de Cristo;
c) Primeira Carta de João: das três cartas de João- somente a primeira contém uma exposição ampla e algumas indicações úteis sobre o discipulado. Exorta para uma vida conforme a mensagem recebida- caracterizada pela comunhão e pela alegria. Convida a caminhar na luz - pois esta desvela a mentira do pecado do qual o discípulo foi liberto por Cristo. O convite a observar os mandamentos, para permanecer na verdade e no amor - quem observa os mandamentos vive na luz e ama seus irmãos. O convite para guardar-se do mundo, o qual está em contraste com Cristo. A filiação se liga estreitamente ao amor recíproco: o amor é vida e deriva do amor de Deus recebido e acolhido. O convite à fé e a confiança total em Cristo- concluem as exortações aos discípulos;
d) Apocalipse: as sete cartas (1,4-3,22) permitem identificar as características pedidas aos discípulos e às comunidades cristãs: as Obras, a perseverança, a suportação, a pobreza, a firmeza, a caridade, a fé, o serviço, a fidelidade à Palavra. Convidam a fugir da mistura com a mentira e com seus representantes e da tepidez. As exortações pedem a necessidade da conversão, da fidelidade, da solidariedade, do acolhimento e da escuta da palavra, da vigilância, da perseverança, da força, do ser quente. A Jerusalém celeste (21,1-22,21) aponta para o destino último de quem é discípulo do Senhor e permanece fiel até o fim. O discipulado não priva seu olhar do Alto, pois, não há discipulado sem que ele se exprima na oração como mendicância da vida do Senhor.
A terceira e última parte do livro, intitulada: Linhas essenciais do discipulado cristão à luz do Novo Testamento – recolhe as principais indicações surgidas nas duas partes precedentes, traçando algumas linhas essenciais do discipulado cristão.
Uma primeira característica que emerge dos textos do NT é a estreita ligação entre o discipulado cristão e a figura de Jesus. Ser discípulo implica relação. O Senhor deseja fazer de cada um de nós um discípulo que vive uma amizade pessoal com Ele. Para realizar isso, não basta segui-lo e escutá-lo exteriormente; é preciso também viver com Ele e como Ele. Isso é possível tão somente no contexto de uma relação de grande familiaridade, permeada do calor de uma total confiança.
Na dinâmica dos Evangelhos é sempre um chamado de Deus e resposta do homem: o discipulado cristão tem aqui seu início, em todos os tempos. Aceitar o chamado significa, sobretudo, seguir Jesus, estar com ele fisicamente e percorrer a estrada que ele percorre. O mistério da resposta está na pessoa de Jesus; o seguimento cristão é, assim, característico porque tem sua raiz na própria forma da vida terrena de Cristo que se fez companheiro do homem e se colocou caminho com ele. Seguir Jesus é também compartilhar seu destino. A dependência de Jesus, a referência contínua e pessoal a Ele é uma característica do discipulado de todos os tempos, não somente um elemento próprio dos primeiros seguidores. A ligação com o único mestre é fundamental e constitutiva em todos os tempos também para a Igreja em seu conjunto.
O chamado a seguir Jesus é uma proposta feita para todos. Sinal evidente da ausência de limites na proposta do discipulado é a presença de mulheres entre os destinatários do chamado. A aceitação do chamado, indicado pela expressão “vida nova” traz como consequências: a conversão, a fé, a coragem de deixar tudo com a disponibilidade a segui-lo em todas as situações, mesmo com risco da própria vida e a disponibilidade de abandonar as próprias riquezas.O discípulo submete-se ao Reino de Deus, entra e vive neste reino. Reconhece a vinda do reino e reconhece Deus como seu Senhor; por consequência a lógica do reino que Jesus manifestou em sua pregação e em sua vida. O amor e a comunhão tornam-se os fundamentos da vida cristã, uma vez que, o cristão é aquele que está intimamente guiado e sustentado pelo Espírito de Jesus.
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Se responder a cada época da história quem é Jesus e o que significa acolhê-lo, segui-lo e anuncia-lo, o leitor tem em mãos um valioso material trabalhado com seriedade por Paolo Mascilongo. Uma reflexão altamente necessária e oportuna em nossos dias – identificando e percebendo que conteúdo é dado para uma das questões centrais por onde passa a ação evangelizadora. O significado, critérios, exigências do autêntico discipulado se dá no contato com a Palavra de Deus. Está é a razão pela qual na esteira de Aparecida – as Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora, entendendo a Igreja como a Casa da Palavra, colocam a animação bíblica da vida e da pastoral (esse também será o tema central da 58ª Assembleia Geral da CNBB) como uma necessidade, pois, o contato pessoal e comunitário com a Palavra de Deus é um lugar privilegiado de encontro com Jesus Cristo. Daí decorre as consequências para o discipulado.
Um manancial inesgotável no tratamento da temática sobre o discipulado cristão no Novo Testamento. O livro com linguagem acessível, didaticamente bem estruturado serve como fonte de informação para o público geral, mas, poderá ser usado com muito proveito por estudantes de teologia, catequistas e estudiosos da Bíblia. Poderá se constituir também num material a ser usado em retiros. Além disso, apresenta excelente seleção bibliográfica sobre o assunto em questão.
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O discipulado no Novo Testamento. Reflexões bíblicas e espirituais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU