10 Junho 2024
"Que papel exerciam os discípulos escravizados no ato de escrever? Eles anotavam literalmente palavras ditadas por outrem, ou gozavam de uma relativa liberdade? Qual a relação entre o texto que hoje lemos e a tradição oral anterior?", questiona Eduardo Hoornaert, historiador, ex-professor e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
A biblista inglesa Cândida Moss publicou recentemente um livro, intitulado: God’s Ghostwriters: Enslaved Chistians and the Making of the Bible, em que levanta uma questão intrigante: será que os autores reconhecidos dos textos do Novo Testamento, como Paulo, Mateus, Lucas ou João (Marcos é um caso à parte, como se verá em seguida), efetivamente ‘escreveram’ seus textos, ou há quem escrevia por eles? Ou, de modo mais premente: existiram pessoas escravizadas que foram contratadas para escrever textos, a serem creditados aos que comumente consideramos autores do Novo Testamento?
Na época do surgimento do cristianismo, apenas 5 a 10 % da população era alfabetizado. Os apóstolos eram analfabetos, à exceção de Paulo de Tarso. O ato de escrever, naqueles tempos, era uma tarefa penosa, árdua e cansativa. Estamos aqui falando de uma época em que não existiam óculos (hoje, 40 % da população mundial usa [ou pode usar] óculos); em que a prolongação do ato de escrever podia provocar artrite, ou seja, desgaste das cartilagens dos dedos; uma época sem eletricidade, sem imprensa, sem meios de copiar textos mecânica ou eletronicamente.
Um segundo dado: a escravidão. As sociedades, em tempos de Império Romano, eram escravocratas. Com toda naturalidade, pessoas livres (como Paulo, por exemplo) dispunham de escravos, como comprovam os próprios textos. Isso era tão natural que nem se falava do assunto. Era natural também que se relegava a escravos, devidamente preparados, a tarefa de escrever textos. Nisso, a escravidão antiga se diferenciava da atlântica, dos tempos modernos, que mantinha os escravos no analfabetismo. Nos tempos do Império Romano, havia muitos casos de escravos alfabetizados a serviço de ‘senhores’ analfabetos.
A tese de Cândida Moss implica em afirmar que, ao longo dos primeiros duzentos anos da tradição cristã, os escritos, salvo raras exceções, foram produzidos por cristãos escravizados ou ‘libertos’. Só a partir do século IV, os trabalhos, no sentido de escrever, copiar e recopiar textos do Novo Testamento, foram assumidos pelos mosteiros.
Mesmo alfabetizado e muito culto, Paulo não costumava escrever suas Cartas. No fim de diversas delas se encontra uma frase escrita por ele do próprio punho (em grego: ‘tè emè cheiri’, ‘com minha mão’) (2 Tess. 3, 17-18; Col. 3, 13; Gal. 6, 11; 1Cor. 16, 21; Filemom, 19). Uma espécie de assinatura, a garantir a autoria. No fim da Carta aos Gálatas (6, 11), Paulo insiste: essas palavras, escritas em GRANDES LETRAS, são a prova que a carta é minha. E, na parte final da Segunda Carta aos Tessalonicenses (3, 18), ele lembra: eu deixo um sinal (em grego: ‘sèmeion) em cada carta. Paulo tinha, então, à sua disposição, ‘discípulos de Jesus’, provavelmente escravos ou libertos, que executavam a tarefa de escrever as Cartas.
Supõe-se, então, que Paulo ditava-as, que as cartas teriam sido ‘copiadas’ por seus ajudantes. Mas há uma frase, no fim da Carta aos Romanos, que nos faz duvidar acerca do controle integral que Paulo teria mantido sobre o que ia escrito nelas. Em Romanos 16, 22, o ‘secretário’ Tértio envia uma saudação pessoal aos/às leitores/as da Carta, em que declara: Eu, Tértio, que escrevi esta carta, os saúdo no Senhor. Tértio, reconhecidamente, é nome de escravo. Como ‘Epafrodito’, ‘Fortunato’, ‘Hermas’ ou ‘Febe’, outros nomes que aparecem na primeira literatura cristã. Então, nos perguntamos: Tértio só taquigrafou e copiou palavras ditadas por Paulo, ou teve um papel mais criativo na redação da carta? Não o sabemos.
A mesma dúvida paira sobre o Evangelho de João. No fim (21, 24), lê-se a seguinte frase: este é o discípulo (em grego ‘mathètès’) que dá testemunho destas coisas e as pôs por escrito (em grego: ‘ho grapsas tauta’). Quem é esse discípulo? A frase ganha peso quando lemos os versículos seguintes: Ora, Jesus fez ainda muitas coisas. Se todas elas fossem escritas, creio que nem o mundo inteiro poderia conter os livros escritos. Aqui, o ‘discípulo’ acena para o fato que houve, ao longo dos setenta anos entre a morte de Jesus e a redação do Evangelho de João, um intenso intercâmbio, entre comunidades do discipulado de Jesus, de histórias oralmente contadas e recontadas. Eis um dado de fundamental importância, principalmente quando ficamos atentos/as ao fato que as sociedades, em tempos de Império Romano, eram escravocratas. Outro dado que ajuda a refletir: em culturas orais costuma vigorar o ditado: quem conta um conto, aumenta um ponto. É normal que, ao longo das transmissões, de boca em boca, da história da transformação de água em vinho, nas Bodas de Caná (Evangelho de João, capítulo 2), por exemplo, apareçam exageros.
Esses exageros, recorrentes em relatos evangélicos, nos levam a fazer algumas perguntas acerca da credibilidade de dados fornecidos por eles: que relação existe entre essas histórias oralmente transmitidas durante um período de pelo menos quarenta anos (entre a morte de Jesus e a redação do primeiro evangelho, o de Marcos), e os escritos evangélicos que hoje lemos? A memória de Jesus não teria circulado entre escravos antes de ser escrita? Que papel exerciam os discípulos escravizados no ato de escrever? Eles anotavam literalmente palavras ditadas por outrem, ou gozavam de uma relativa liberdade? Qual a relação entre o texto que hoje lemos e a tradição oral anterior?
Um terceiro exemplo nos é fornecido pelo escritor Papias de Hierápolis (ca. 60-130 d.C), que, por volta de 120, escreve: Marcos tornou-se intérprete de Pedro e escreveu com precisão tudo o que Pedro se lembrava. O apóstolo analfabeto era, pois, acompanhado por um ‘interprete’ que sabia escrever. Provavelmente um escravo, de nome Marcos, o autor do primeiro Evangelho.
Esse dado leva a um questionamento: Marcos transcrevia literalmente ditos de Pedro, ou gozava de certa liberdade ao escrever? A repetição quase invariável da conjunção aditiva e, ao longo de todo o Evangelho de Marcos, ligando os mais variados episódios, e (Jesus) dizia, e entrava, e viajava, e subia etc. (raramente aparece um logo depois ou um naqueles dias) leva a pensar num texto fielmente anotado por Marcos, a partir de informações ditadas por Pedro. De outro lado, o texto contém manifestos exageros. Por exemplo, o número de beneficiados, nas duas histórias da Multiplicação de Pães, é exagerado: em 6, 30-56, são 5 mil que se saciam com pães e doze cestos a recolher os restos; em 8, 1-10, 4 mil se saciam e sobram sete cestos com os restos de comida. A quem atribuir a autoria dessas informações? A Pedro, testemunha ocular da multiplicação de pães, ou a Marcos? O ‘copista’ tinha como dar livre curso ao seu entusiasmo, exagerando (como nos relatos de Jesus andando sobre as águas e mandando na tempestade)?
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A tese de Cândida Moss, embora amplamente baseada em suposições, tem tudo para provocar uma boa discussão, pois nos ajuda a ver coisas que não estamos acostumados a enxergar.
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Escravos na composição do Novo Testamento? Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU