09 Novembro 2024
Em nota conjunta, entidades pastorais analisam impactos de grandes obras ferroviárias em Mato Grosso e a invisibilização de povos indígenas e comunidades tradicionais em estudos técnicos
A nota é de Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Grupo de Trabalho Infraestrutura e Justiça Socioambiental, publicada por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 07-11-2024.
O Mato Grosso está batendo todos os recordes para se tornar um estado sem Amazônia Legal, sem Cerrado, sem Pantanal, sem água e, logo, sem vida. O rumo tomado busca transformá-lo em um grande deserto de monoculturas que produzem commodities para atender o mercado externo. Parte dos estoques de grãos são transportados por empresas ferroviárias como a Rumo Logísticas até os portos marítimos das regiões sul e sudeste para lá embarcarem em direção ao mercado europeu e chinês.
Para isso, o estado mato-grossense tem feito parcerias públicas-privadas confusas, atualmente tais como a Ferrogrão, a Ferrovia Norte Brasil, a Ferrovia Autorizada de Transporte Olacyr de Moraes (Ferrovia Estadual do Mato Grosso) e a Ferrovia de Integração do Centro-Oeste. Essas ferrovias estão em diferentes estágios de construção, mais ao sul já estão em operação, mais ao norte em fase de planejamento e entre leste e oeste, sendo construídas.
A construção de ferrovias no estado de Mato Grosso envolve uma série de implicações sociais e ambientais, especialmente ao se considerar a vasta extensão de novas linhas ferroviárias previstas, aproximadamente 1.700 quilômetros.
Também é preocupante a falta de análise global e integrada dos impactos socioambientais e violações de direitos humanos desses empreendimentos. Grupos sociais que vivem nos territórios por onde passam estas estradas de ferro estão sendo deixados de lado, sem serem escutados nos processos decisórios de obras de infraestrutura.
Alguns dos principais pontos de preocupação são:
Impacto Ambiental
Impacto Social
Estratégia Isolada e Fragmentada
A abordagem para se discutir esses projetos tem sido feita de forma isolada, na tentativa de se evitar uma maior mobilização e resistência por parte da sociedade civil e grupos ambientalistas. Obras de infraestrutura devem servir para o desenvolvimento de uma região no seu aspecto social, ambiental e econômico. Sem uma visão integrada, os impactos cumulativos de múltiplos projetos podem passar despercebidos, levando a um aumento significativo de riscos sociais e ambientais. Afinal, para quem serve a infraestrutura de logística que está sendo implementada para o estado de Mato Grosso.
O modelo de desenvolvimento adotado pelo estado aponta para um problema recorrente: a ganância humana, desconectada das realidades sociais e ambientais, geram projetos grandiosos e de grande impacto (obras faraônicas), cuja motivação principal é o favorecimento de interesses econômicos, de setores como o do agronegócio, mineração e petroleira. Por que não podemos ter uma infraestrutura que mantenha as florestas e os que lá vivem? Para nós, a infraestrutura é a própria floresta e devemos pensar em projetos que fomentem esta visão antes que seja tarde.
Há um desequilíbrio entre o ganho econômico imediato e os prejuízos a longo prazo, tanto para o meio ambiente quanto para as pessoas afetadas. Em um mundo onde as questões climáticas e de justiça social são cada vez mais urgentes, essa desconexão entre os interesses econômicos e a realidade socioambiental representa um grande desafio, ou melhor, uma catástrofe anunciada. Vide exemplo da usina hidrelétrica de Belo Monte.
Mapa de ferrovias do estado do Mato Grosso. Crédito: Sinfra
No mês de setembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou a retomada dos estudos da Ferrogrão, que ligará Sinop (Mato Grosso) ao Porto de Miritituba e Santarém (Pará). Trata-se da ampliação da malha ferroviária até Lucas do Rio Verde. O traçado original do projeto contempla 933 km de extensão, interligando todas as ferrovias do estado de Mato Grosso ao restante do Brasil.
É urgente atualizar os estudos e projetos das ferrovias para incorporar os impactos climáticos, as realidades socioambientais atuais e incluir povos indígenas e povos e comunidades tradicionais no processo decisório durante a fase de licenciamento. No contexto do Mato Grosso e do Brasil, onde os efeitos das mudanças climáticas são cada vez mais evidentes, a desconsideração desse componente nos estudos e nas obras ferroviárias é uma grande falha pois, como já mencionado, são projetos que geram desigualdades nas regiões por onde passam.
A Ferrogrão, assim como outras ferrovias em planejamento, tem sido alvo de críticas não apenas pelo impacto ambiental, mas também pela falta de atenção aos conflitos fundiários e à complexidade social da região. A expansão de ferrovias sem resolver os problemas fundiários e sem incluir um plano robusto de mitigação de impactos climáticos pode agravar ainda mais as tensões sociais e aumentar os danos ambientais. Dentre elas:
Incorporação dos impactos climáticos: A desconsideração de critérios socioambientais nos estudos técnicos é uma omissão crítica. Com a crescente degradação ambiental e as consequências das mudanças climáticas, qualquer projeto de infraestrutura precisa incluir cenários climáticos para evitar maiores desastres ecológicos e sociais.
Conflitos fundiários: As ferrovias não podem avançar sem a resolução adequada dos conflitos de terra, principalmente em estados como Mato Grosso, onde há uma longa história de disputas por terras entre proprietários de terra, comunidades tradicionais e indígenas. Esses conflitos tendem a se intensificar com obras de grande porte se não forem abordados de maneira justa e transparente.
Grandes impactos: Faz-se necessário avaliar os impactos de uma obra em um raio maior que 10 quilômetro, pois muitas vezes eles ultrapassam as previsões técnicas, afetando populações e ecossistemas a grandes distâncias. Isso inclui desmatamento indireto, deslocamento de comunidades e alteração dos ciclos hídricos locais.
Uma análise estratégica e participativa, envolvendo todas as partes interessadas, é essencial para mitigar esses impactos. Isso incluiria a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) abrangentes e consultas públicas verdadeiramente representativas intermediadas pelo Estado.
Propomos uma visão que vai além da simples atualização técnica dos projetos: uma conversão para a Ecologia Integral e o reconhecimento dos Direitos da Natureza como base ética para qualquer empreendimento. Esse pensamento, inspirado por princípios ecológicos e de justiça social, reflete a necessidade de uma mudança profunda na forma como concebemos o desenvolvimento econômico e sua relação com o meio ambiente.
A Ecologia Integral, um conceito amplamente difundido por movimentos ambientais e até por encíclicas papais como a Laudato Si’, defende a ideia de que as questões ambientais, sociais, econômicas e culturais estão interconectadas. Quando consideramos os impactos de um projeto de infraestrutura, como uma ferrovia, devemos olhar para o conjunto de relações entre os seres humanos, a sociedade e a natureza. Isso implica pensar não só na eficiência econômica, mas também nos direitos das comunidades locais e na preservação dos ecossistemas.
Respeitar os Direitos da Natureza: Esse conceito sugere que a natureza deve ser tratada como um sujeito de direitos, e não apenas como um recurso a ser explorado. Isso implica que ecossistemas, florestas, rios e a biodiversidade devem ter o direito à preservação e regeneração. Qualquer empreendimento que ameace esses direitos estariam em desacordo com uma ética da ecologia integral.
Planejamento que considere o todo: Não se trata apenas de cumprir exigências ambientais mínimas, mas de pensar em soluções que integrem o desenvolvimento humano e a proteção ambiental. Obras de infraestrutura deveriam ser planejadas com participação dos grupos impactados para minimizar o impacto ambiental, utilizando tecnologias sustentáveis, traçando rotas que causem menores danos e compensando adequadamente qualquer impacto inevitável.
Justiça social e resolução de conflitos fundiários: Reconhecer os direitos das comunidades afetadas, sejam elas tradicionais, indígenas ou rurais, é parte da Ecologia Integral. Um verdadeiro processo de escuta e participação é necessário para garantir que os interesses dessas populações sejam respeitados e que os conflitos fundiários sejam resolvidos de forma justa, evitando o deslocamento forçado ou a marginalização.
Longo prazo: A conversão para uma Ecologia Integral exige um foco em sustentabilidade a longo prazo. Projetos como ferrovias precisam ser pensados para que seus benefícios sejam duradouros e não causem danos irreparáveis ao meio ambiente. Isso significa avaliar seus impactos sobre o clima, a biodiversidade e as populações humanas não só hoje, mas também nas próximas décadas.
Ao incorporar esses princípios, estaríamos avançando para um modelo de desenvolvimento que não apenas gera “riqueza”, mas também garante que essa “riqueza” seja distribuída de forma justa e que o meio ambiente seja protegido para as gerações. Isso é vital em um contexto como o do Brasil, onde a biodiversidade e os bens naturais são fundamentais para nossa existência, mas também são vulneráveis e finitos.
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Estratégias de destruição: Ferrogrão e outras ferrovias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU